Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
O Senhor Juiz-conselheiro, Dr. Mário Araújo Torres, prosseguindo o seu notável e benemérito esforço, em boa hora reconhecido pelo Município, de relembrar textos esquecidos sobre a história de Coimbra, acaba de editar mais um trabalho, este dedicado ao Rancho da Carqueja que protagonizou uma página negra da história da Cidade, desconhecida pela grande maioria dos conimbricenses de hoje.
Ao Dr. Mário Araújo Torres, mais uma vez, há que manifestar, quer em meu nome quer, por certo, em nome de muitos conimbricenses, o nosso obrigado.
Op. cit., capa
O «Rancho da Carqueja - Tentativa de romance histórico baseado nos acontecimentos académicos do século passado» (Coimbra, Imprensa Literária, 1864), da autoria de António Francisco Barata (Góis, 1836 – Évora, 1910) – que viveu em Coimbra de 1848 a 1869, exercendo a profissão de barbeiro nas Ruas de S. João e do Norte, e iniciando uma assinalável atividade de publicista, com centena e meia de títulos em diversos domínios (história, arqueologia. filologia. Literatura, etc.) - com destaque para oito romances históricos. dois deles com segundas edições, baseia-se nos distúrbios desencadeados, em 1720 e 1721, por um grupo de estudantes de Coimbra, que ficou conhecido por Rancho da Carqueja.
Op. cit., badana da capa
Inspirou-se Barata num manuscrito (com “má sintaxe, detestável gramática, nenhuma ortografia e medonha caligrafia), coevo dos factos. que ele encontrara em 1863, e com base no qual começara a publicar um folhetim no «Comércio de Coimbra».
O interesse suscitado pela publicação e o incentivo de amigos, entre os quais destacados académicos, levaram-no a transformar o folhetim neste romance, com preciosas descrições da vida em Coimbra, seus monumentos e meandros do "bairro alto" e do "bairro baixo", relações entre os estudantes, o clero e os futricas, e praxes académicas.
Op. cit.,pg. 23
A ação começa com um ataque dos «carquejeiros» que desbaratou, na Rua das Fangas (atual Rua Fernandes Tomás), o solene préstito que da Universidade seguia para Santa Cruz, comemorar o 1.° de dezembro de 1720.
O nome do bando relaciona-o Barata com a realização das suas reuniões magnas numa casa do Beco da Carqueja, fronteiro à Sé Velha: "Próximo do antigo e venerando templo de Nossa Senhora da Assunção - a Sé Velha - cujas paredes denegridas pelo hálito destruidor do tempo assistiram, segundo uns, à fundação da Monarquia, sem terem maior antiguidade; e, segundo outros, ergueu-as ali a raça islamita, depois de 714 da nossa era; isto é, da invasão árabe, ainda hoje existe, e já existia em 1720 o Beco da Carqueja, que fica quase fronteiro ao templo, e que, bifurcando numa extremidade, vai dar à Rua do Correio, ou de S. Cristóvão [atual Rua Joaquim António de Aguiar], e manda outro ramo para cima, para a Rua da Ilha, Grilos, etc. Neste beco é que iremos encontrar agora os nossos estudantes...''.
O nome do grupo não constituía homenagem a um facinoroso bandido de Viseu alcunhado de «Carqueja», como chegou a pensar Camilo Castelo Branco.
…. A morte de um alfaiate, numa briga junto à Ponte, terá determinado o envio por D. João V de uma força militar, que, em 20 de fevereiro de 1721, cercou Coimbra e capturou a maioria dos membros do grupo.
O seu chefe, Francisco José Aires, de 24 anos, bacharel em Cânones, filho do capitão-mor de Santa Maria da Feira, com o mesmo nome, foi condenado à morte e decapitado em Lisboa, em 20 de junho de 1722. sendo a cabeça remetida para Coimbra, onde ficou exposta, no topo de um pinheiro, frente à Igreja de S. Bartolomeu, até se consumir com o tempo.
Neste volume, além da reprodução da 2.ª edição do romance (Lisboa, Empresa da História de Portugal, 1904), transcreve-se a sentença condenatória da Relação de Lisboa (que atribui a designação do grupo a terem queimado com carqueja a porta da casa de um João de Sequeira, onde entraram para o maltratarem), publicada em «O Conimbricense», de 22 e 26/12/1868, além de outros elementos pertinentes e desenvolvida notícia biobibliográfica de António Francisco Barata.
Mário de Araújo Torres
Barata, A.F. O Rancho da Carqueja. Tentativa de romance histórico baseado nos acontecimentos do século XVIII. Recolha de textos, introdução e notas por Mário Araújo Torres. 2024. Lisboa, Edições Ex-Libris.
Augusto de Oliveira Cardoso Fonseca, em 1911, publicou um outro relato dos acontecimentos decorrentes do carnaval de 1854, identificando o autor do arremesso da panela, que terá originado toda a contestação, como sendo o “Lima Valentão”.
Imagem acedida em: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=43505
João Lúcio de Figueiredo Lima era natural de Sandomil, distrito da Guarda, e formou-se em Filosofia no ano de 1855. Também frequentou o primeiro ano matemático, em 1855 para 1856, assim como, de 1856 a 1858, o primeiro e segundo de Direito. Havia casado em Coimbra com a filha de um negociante de panos, estabelecido no largo de Sansão, hoje praça 8 de maio, e, com sua esposa, residia no 2.º andar do prédio em que o sogro tinha o seu estabelecimento.
Tinha bazofia de ser valente, pelo que era conhecido por Lima Valentão.
Foi ele, se pôde dizer, o principal provocador dos celebres tumultos por ocasião do entrudo de 1854.
Nesse tempo as brincadeiras de entrudo eram verdadeiras batalhas, cujos combatentes despediam, uns contra os outros, ovos, laranjas e outros que tais projeteis, que por vezes se tornavam ofensivos. Numa das janelas da casa de sua residência estava Lima Valentão com sua esposa e outra senhora, quando de um grupo de estudantes, que no largo se divertiam, simulando uma corrida de touros, partiu um ovo que foi bater em cheio no peito de uma daquelas senhoras. Tanto bastou para que Lima Valentão, num indesculpável impulso de arrebatamento, fosse buscar uma panela de barro, com que atirou ao grupo; e ainda, completamente desorientado, e empunhando uma espingarda, ameaçou os estudantes de lhes atirar.
Praça de Sansão.
Foi este o grande rastilho dos graves tumultos que por essa ocasião se deram.
Muitos estudantes correram em massa a casa de Lima Valentão, chegando a subir a escada, mas não o encontrando por se haver ele evadido pelo telhado.
Nesse tempo era governador civil o conselheiro António Luiz de Sousa Henriques Seco, lente de direito, e administrador do concelho o bacharel António dos Santos Pereira Jardim.
António Luís de Sousa Henriques Seco. Col. RA
Devido aos esforços destas autoridades serenaram.
Fonseca, A.O.C. A entrudada de 1854 e o Lima Valentão, In: Outros Tempos ou velharias de Coimbra, 1850 a 1880, pg. 91-96.
Última entrada sobre o texto de Joaquim Martins de Carvalho, reacionado com os desacatos acontecidos no Carnaval de 1854.
Os acontecimentos do entrudo tinham dado lugar a processos, de que resultara serem alguns estudantes riscados da universidade, e pronunciados diferentes outros indivíduos. O governo, porém, concedeu uma amnistia a todos os que se achavam envolvidos nestas ocorrências; e além disso mandou abonar aos estudantes que estavam em Tomar os meios de que carecessem para se transportarem ou para Coimbra, ou para as terras da sua naturalidade.
Tendo voltado os académicos para Coimbra, havia da parte deles, em resultado das rixas do entrudo, uma grande irritação contra os habitantes da cidade. Por causa disso, trataram alguns académicos de fundar uma sociedade secreta, a que deram o nome de Liga Académica, que tinha por fim o mútuo auxílio dos sócios, a independência da academia, e o afastamento de todas as relações com os habitantes de Coimbra. Chegou até a haver o projeto de fazer vir de fora da cidade por conta dos sócios os objetos de consumo, o que, porém, não levaram a efeito. Esta sociedade secreta tinha uma organização quase semelhante á Carbonária.
As iniciações eram feitas numa casa da rua dos Militares, onde habitavam alguns estudantes ilhéus. As sessões eram celebradas ao ar livre; e algumas delas se fizeram de noite no Penedo da Saudade.
Rua dos Militares, localização
Colégio dos Militares, já adaptado a hospital, que deu nome à rua
Penedo da Saudade
O presidente da Liga Académica era o estudante do 4.º ano de direito, Manuel Joaquim da Fonseca. Esta sociedade secreta compunha-se de 120 sócios, divididos em turmas de 10. Em cada 10 havia um decurião, que os governava; e a todos superintendia um conselho. No poder dos membros do conselho estava a cifra da correspondência. Era a conhecida vulgarmente pelo nome de cifra de Napoleão, mas um pouco mais simplificada.
A chave da correspondência era «Fé viva”; a palavra de reconhecimento era «Sym-pa-thi-a»; e a de socorro «A mim, filhos de Minerva!»
Da Liga Académica ê que saíam as numerosas correspondências, que por essa época apareciam publicadas em diferentes jornais do reino, em que se tratava de justificar o procedimento dos estudantes nas ocorrências do entrudo, e se acusavam várias pessoas estranhas à academia. Os estudantes encarregados de escrever as correspondências eram os srs. Luiz António Nogueira, Duarte Gustavo Nogueira Soares, Francisco Joaquim de Sá Camelo Lampreia, e outros. Este trabalho era dividido por turno; e da mesma forma se fazia uma ronda noturna que pelas ruas da cidade tinham disfarçadamente os membros da Liga Académica, a fim de evitar que houvesse conflitos entre algum académico mais apaixonado e os habitantes da cidade.
Duarte Gustavo Nogueira Soares. In: “O Ocidente” de 1886.07.11
Esta sociedade secreta teve pouca duração. Como havia sido fundada por motivo de uma contenda com muitos habitantes de Coimbra, e se foi de parte a parte desvanecendo a inimizade, voltando por fim tudo ao estado normal, deixou por isso de ter razão de ser. Quando os estudantes vieram frequentar os estudos em outubro do mesmo ano de 1854, tinha a Liga Académica por si mesmo acabado, não se tornando mais a reunir.
Carvalho, J. M. Graves conflitos em Coimbra pelo entrudo de 1854. In: Apontamentos para a História Contemporânea, 1868: Coimbra, Imprensa da Universidade, pp. 241-248. Acedido em: https://drive.google.com/file/d/1v-_FRydFPXvB6h6mwq3J2w75ylFmkMsd/view?fbclid=IwAR3I0Zqi_2y3soFLcZe6r5fLsX-Q2qn4McLYJbRj10EtL39pkTqs53l7Oys
Na continuação da entrada anterior, importa assinalar que, na época, a deslocação de parte da Academia até Tomar foi referida por “Tomarada” ou por “Entrudada”.
No texto que, como já se especificou, é da autoria de Joaquim Martins de Carvalho, um profundo conhecedor de Coimbra e do seu passado, surge a referência às “Escadas de Santa Cruz”, designação toponímica que eu, bem como outros apaixonados pela história da Cidade, desconhecíamos,
O restante trajeto percorrido pelos académicos não levanta grandes dúvidas e passaria por descer a Couraça dos Apóstolos, a atual Rua do Colégio Novo e no cimo da antiga Rua das Figueirinhas, agora “batizada” de Rua Martins de Carvalho, descer para Sansão.
O problema coloca-se neste local, pois talvez os jovens pudessem descer umas escadas do Mosteiro crúzio que iam desembocar na sua horta e eram utilizadas polos cónegos regrantes para, por uma passagem secreta de que ainda restam alguns vestígios, se deslocarem até ao Colégio de S. Agostinho.
Avento a hipótese de serem estas as referidas “Escadas de Santa Cruz”, e lanço o desafio a outros conhecedores da cidade para se pronunciarem sobre esta possibilidade.
O itinerário referido, desde que, na época, fosse possível utilizar as alegadas “Escadas”, permitiria aos dois grupos de estudantes em confronto entrarem, simultaneamente, em Sansão, uns pelo lado Norte e outros pelo lado Sul.
Fica a hipótese e o desafio.
Feito este parêntesis, prosseguimos com o texto que temos vindo a utilizar.
À noite reuniu-se a maior parte da academia no largo da Feira, e aí se espalhou a falsa noticia de que os habitantes do bairro baixo da cidade tratavam de se armar para os ir atacar no bairro alto. Os ânimos, que estavam excitados em virtude dos acontecimentos da tarde, mais se exasperaram com tal boato.
Sé Nova e Largo da Feira. Col. RA
Alguns estudantes menos prudentes, querendo ostentar força, e julgando-se vitoriosos dos acontecimentos da tarde, começaram a incitar os seus condiscípulos para virem ao bairro baixo, e assim mostrar que nenhum medo tinham. Não faltaram conselhos e pedidos para que se não efetuasse semelhante resolução: esses esforços, porém, foram inúteis. Mostrando-se alguns, ainda que poucos, estudantes resolvidos a vir ao bairro baixo, todos os outros os seguiram, uns por espírito de camaradagem, e outros até para evitar as cenas desagradáveis que podiam ocorrer. Desceram em número de perto de 600, parte pelo Arco de Almedina, e outra pelas escadas de Santa Cruz, juntando-se em Sansão.
Largo de Sansão, hoje Praça 8 de Maio. Inicio do séc. XX. Col. RA
Mal constou que os estudantes vinham ao bairro baixo, receou-se que se repetissem os excessos da tarde; e por isso resolveram-se alguns indivíduos, no caso de ser preciso, a repelir a força com a força. Ao mesmo tempo dizia-se, posto que infundadamente, que os estudantes queriam incendiar a cidade; e por isso quando eles desciam a rua do Cego para a praça, foram recebidos por algumas descargas, que lhes atiraram da esquina próxima da igreja de S. Bartolomeu, de que resultou ficarem alguns estudantes feridos, e corresponderem estes também com alguns tiros.
Reconhecendo a imprudência do passo que tinham dado, retiraram-se os estudantes para o bairro alto, dirigindo-se uma parte deles pela Portagem, onde a guarda lhes não consentiu que passassem para a Couraça de Lisboa, senão a dois de fundo. Assim o fizeram, terminando por essa noite os tumultos.
Na quarta feira de cinza correram boatos de que nesse dia haveria ainda maiores desordens. Em lugar, porém, dos sinistros acontecimentos que se receavam, tomaram muitos académicos a resolução de sair da cidade, dirigindo-se para Lisboa.
Os académicos participaram esta deliberação ao seu prelado, o qual não pôde fazê-los mudar de parecer; e por isso resolveu em conselho de decanos não mandar tocar o sino para as aulas, esperando ainda que se acalmasse tal estado de irritação.
Chegada a questão a estes termos, foi convocado o claustro pleno para confirmar a deliberação do conselho de decanos; porém, sendo chamado a assistir a ele o sr. governador civil, este instou e fez tomar a decisão de que houvesse aulas no dia seguinte e continuasse aberta a universidade.
Na quinta feira de madrugada, 2 de março, mais de 200 académicos se reuniram no largo da Feira, e dali marcharam para Lisboa, a fim de representar contra os habitantes de Coimbra.
Em cumprimento da resolução do claustro pleno, abriram-se as aulas, e os professores foram para as suas cadeiras; mas raros alunos compareceram, havendo classes em que faltaram totalmente os discípulos.
Os académicos que tinham saído de Coimbra caminharam a pé até Tomar. Aí os veio encontrar o sr. Roussado Gorjão, encarregado pelo presidente do conselho, duque de Saldanha, e pelo ministro do reino, Rodrigo da Fonseca Magalhães, de os persuadir a voltar para Coimbra. Os académicos acederam ás razões que lhes foram expostas, e pela maior parte vieram outra vez para esta cidade.
Pelo ministério do reino foi primeiro concedida aos académicos a faculdade de se apresentarem na universidade até ao dia 25 de março, para continuar as aulas, na certeza de que lhes seriam abonadas as faltas que desde o dia 28 de fevereiro tivessem dado nos exercícios escolares. Depois, em portaria de 17 de março, atendendo a que poderia haver alguns académicos ou muitos deles, que, tendo ido para as terras da sua naturalidade como o governo lhes permitira, ou por quaisquer outros motivos, não pudessem concorrer dentro do tempo prescrito para prosseguir nos seus estudos, á semelhança dos que de Tomar tinham regressado á universidade, foi-lhes prorrogado o prazo para se poderem apresentar até ás ferias da Páscoa.
Carvalho, J. M. Graves conflitos em Coimbra pelo entrudo de 1854. In: Apontamentos para a História Contemporânea, 1868: Coimbra, Imprensa da Universidade, pp. 241-248. Acedido em: https://drive.google.com/file/d/1v-_FRydFPXvB6h6mwq3J2w75ylFmkMsd/view?fbclid=IwAR3I0Zqi_2y3soFLcZe6r5fLsX-Q2qn4McLYJbRj10EtL39pkTqs53l7Oys
Dos festejos dos Carnaval de 1854 e dos incidentes então ocorridos, existem, como refere a publicação do Arquivo Histórico Municipal de Coimbra a que aludimos na entrada anterior, outras narrativas menos jocosas, mas mais rigorosas e minuciosas.
Tanto esta entrada, como as outras duas que se lhe seguem, servem-se da informação saída da pena de Joaquim Martins de Carvalho.
Joaquim Martins de Carvalho. Imagem acedida em: https://arepublicano.blogspot.com/2018/09/joaquim-martins-de-carvalho-1822-1898.html
Pelo entrudo de 1854 houve em Coimbra alguns acontecimentos muito deploráveis. Essas tristes ocorrências eram tanto mais para lamentar, quanto todas as pessoas prudentes reconhecem, que muito convém que entre os habitantes desta cidade e a academia reine a harmonia mais cordial.
Nos dias do carnaval os académicos entregavam-se aos costumados folguedos dos mais anos, arremessando ovos às pessoas que das janelas das suas casas presenciavam as mascaradas que transitavam pelas ruas. Aos habitantes da cidade desagradava este género de divertimento pelo incómodo e prejuízos que lhes causavam.
No domingo gordo, 26 de fevereiro, houve por tal motivo principio de desordem na praça de S. Bartolomeu, pelo que o prelado da Universidade, o sr. conselheiro José Manuel de Lemos, atual bispo de Coimbra, deliberou mandar rondar de dia, na segunda feira, pelas ruas da cidade, os empregados de policia académica, recomendando-lhes que usassem de todos os meios suaves e persuasivos para evitar as cenas do dia anterior.
Praça de S. Bartolomeu, hoje Praça do Comércio. Inícios do séc. XX. Col. RA
Os desejos do prelado foram em parte atendidos, dando-se, contudo, nesse dia a circunstância de ser a ronda académica recebida por alguns estudantes com vozerias e apupos.
Á noite um grupo numeroso de estudantes percorreu as ruas da cidade, dando vivas á independência académica e gritos contra os archeiros. Chegando as coisas a este estado, entenderam as autoridades que convinha como medida preventiva distribuir a pequena guarnição militar pelos principais pontos da cidade, a fim de acudir a qualquer conflito que pudesse aparecer, visto que os habitantes mostravam desagradar-lhes o procedimento dos estudantes.
Largo de Sansão, hoje Praça 8 de Maio. Desenho de José Carlos Magne. In: Monumentos, 25, p. 147. Praça de Sansão, 1796.
Ás três horas da tarde desse dia uma mascarada dava no largo de Sansão uma corrida de touros em caricatura. Estavam algumas famílias ás suas janelas, e nessa ocasião dos grupos dos estudantes partiram ovos para várias casas. Daí resultou que um individuo clamasse contra os estudantes, e, insistindo estes, arremessou-lhes da varanda uma panela de barro, não resultando, contudo, daí nenhum mal para ninguém. Os estudantes julgaram-se ofendidos por tal motivo; e os habitantes da cidade, pela maior parte artistas, que presenciavam o espetáculo na rua, tomaram logo um aspeto ameaçador, e daí resultou travar-se entre uns e outros altercação, que redundou prontamente em vias de facto.
Por maiores que fossem os esforços que algumas pessoas empregaram para apaziguar a desordem, o conflito continuou, as portas e janelas fecharam-se, e o terror espalhou-se por toda a cidade. Acudiu então o posto militar da antiga porta fidalga de Santa Cruz, que foi envolvido pela multidão, e não pode empregar a força para restabelecer a ordem.
Imagem onde são visíveis as portarias do Mosteiro.Pormenor do desenho de José Carlos Magne. In: Monumentos, 25, p. 147. Praça de Sansão, 1796.
Apareceu pouco depois o governador civil, que então era o sr. conselheiro António Luiz de Sousa Henriques Seco. S. Ex.ª empregando todos os esforços, conseguiu restabelecer a ordem naquele ponto, tranquilizando-se os paisanos, retirando-se os académicos para a Calçada, e entrando em formatura os soldados que tinham ali acorrido.
A desordem agravou-se de novo, quando pouco depois correram da Calçada a Sansão muitos estudantes, bradando vingança contra os paisanos. O tumulto prolongou-se logo pela rua da Sofia, a despeito dos gritos de ordem que soavam por parte das autoridades e outras pessoas.
A força militar do posto de Santa Cruz, vendo que o tumulto tomava um aspeto medonho, correu a marche-marche pela rua da Sofia, para separar os grupos dos tumultuários. Fazendo, porém, alto, foi logo envolvida pelos académicos.
Neste momento chegou o resto da guarnição disponível, que com a que estava não chegaria a 50 praças, e formou toda em linha. Conseguiu-se finalmente apaziguar a desordem na Sofia e Sansão pelos esforços do administrador do concelho, bacharel António dos Santos Pereira Jardim, e outras pessoas de influência que ali estavam, empregando-se particularmente o meio de mandar recolher os paisanos a suas casas, e dirigir para a Calçada os estudantes.
Parecia terminada a desordem, da qual tinham resultado alguns ferimentos, posto que leves; mas os estudantes, reunindo-se novamente na Calçada, continuavam a agredir os paisanos, deixando-se arrastar pela excitação, e não cedendo aos conselhos de algumas pessoas, entre as quais se contavam vários académicos, que tratavam de restabelecer o sossego.
Foi ainda necessário que o sr. governador civil marchasse com a força toda para a Calçada, para onde tinha já ido o sr. administrador do concelho, achando-se também aí o sr. presidente da camara, dr. Cesário Augusto de Azevedo Pereira, Aires Tavares Cabral, e outras pessoas, que tentavam dispersar os estudantes antes da chegada da tropa. Junto desta tinha o sr. governador civil exigido que marchassem também dois bedéis e alguns archeiros, a fim de reconhecer os estudantes que "estavam envolvidos na desordem”.
Logo que apareceu a tropa na Calçada, o ajuntamento académico, que estava defronte do Arco de Almedina, começou a gritar — fora os soldados! As pessoas empenhadas na pacificação correram para os soldados, rogando que se retirassem: e daí resultou que, aproximando-se os tumultuados da tropa, esta calou instintivamente baioneta, mas sem avançar, retida pelas instâncias do sr. governador civil, a fim de evitar derramamento de sangue; e pela mesma razão a fez recuar para o principio da rua do Coruche.
Alguns estudantes bateram então palmas, e a esta demonstração parou a tropa, por ordem do sr. Governador civil, para não ser exautorada a força publica.
Graças aos esforços pacificadores o tumulto dissipou-se, recolhendo a tropa a quartéis.
Carvalho, J. M. Graves conflitos em Coimbra pelo entrudo de 1854. In: Apontamentos para a História Contemporânea, 1868: Coimbra, Imprensa da Universidade, pp. 241-248. Acedido em: https://drive.google.com/file/d/1v-_FRydFPXvB6h6mwq3J2w75ylFmkMsd/view?fbclid=IwAR3I0Zqi_2y3soFLcZe6r5fLsX-Q2qn4McLYJbRj10EtL39pkTqs53l7Oys.
O Arquivo Histórico Municipal de Coimbra, ao divulgar os documentos mais relevantes e mais interessantes ali depositados, tem vindo a realizar um meritório trabalho.
Ultimamente, com transcrição da Dr.ª Paula França, revelou a existência de dois documentos que que nos dão a conhecer como, em meados do século XIX, se vivia, em Coimbra, o carnaval ou o entrudo, como então se dizia.
Transcrevemos, de seguida, o documento divulgado, embora, a fim de facilitar a leitura, tenhamos atualizado a grafia.
Tudo era alegria, tudo contentamento, Sansão estava povoada até as orelhas.
Homens mulheres rapazes, cães, tudo isto enchia e animava com um esplendor maravilhoso o Largo de Sansão mas, não se entenda que tudo era desordem; não, ao contrário, todo este povo se tinha arranjado e disposto na forma de um ovo, quero dizer, num círculo oval, de sorte que todos, ou pelo menos a maior parte dos constituintes desta figura geométrica, podiam gozar do que no meio da mesma figura se passava.
Largo de Sansão, hoje Praça 8 de Maio. Inícios do séc. XX
Era uma cena do Carnaval, era uma corrida de burros arvorados em touros, pela simples adjunção de uma armação bicórnea, que estava oferecendo um espetáculo vistoso e divertindo a jovial e variadíssima multidão.
Três touros tinham vergado sob o peso da infatigável destreza e habilidade com que os peritos capinhas os atormentavam de dor de ilhargas, porém, três homens eram levados em braços, vítimas também do seu excesso de dedicação!
Eram mártires da tauromaquia, deviam ser respeitados, todos os circunstantes pagaram o seu tributo de compaixão aos infelizes.
Enquanto isto se passava, dois amáveis estudiosos discutiam acaloradamente uma questão que tinha por objeto a referida forma geométrica em que o povo se tinha agrupado, para gozar do espetáculo. Para melhor explicar esta figura ao seu antagonista, o defensor da preposição sacou de um ovo e o expôs a vista do seu adversário, porém, não foi só este que o viu, foi um terceiro amável, que passando por este belo julgar descobrir um belo meio de transtornar as rubicundas faces ao seu amigo da análise tornando-lhas amarelas!
Foi por isso que ele imprimiu, sobre a mão que segurava o ovo, uma tão grande porção de movimento que não só este saltando do seu invólucro rastejou pelas faces do seu admirador, que ficando aterrado, por um golpe tão violento, e ao mesmo tempo tão imprevisto, porque apenas teve tempo de se lembrar que um vácuo se operara na mão que sustentava o ovo, e que era esse mesmo ovo, que rolava agora por seu despeitado rosto; mas até, como íamos dizendo, correu a observar as leis que lhe eram impostas pela natureza, vindo por isso a formar um ângulo de reflexão, igual ao de incidência em virtude da sua elasticidade, operação que teve lugar na cara daquele com quem já estava relacionado. Foi, pois, furando o ovo a natureza, e que ia ser refreada a sua fúria por um transparente vidro, parte constituinte de uma vidraça, que indignado por ver um atentado inaudito, entesou as fibras segurou se no betume e revestindo-se de ânimo esperou o inimigo a pé firme, vendo o ovo preparativos tão hostis redobrou de coragem e velocidade e zás cai sobre o miserável que reduz a mil pedaços, mas ah! Coitado que ele foi vitimado seu furor! Caiu feito em pedaços sobre o ferro frio e impassível!
Foi um som lúgubre e sinistro que anunciou a morte destes dois heróis. Inconcebível desígnio da sorte adversa! O génio mau não quis pôr termo a tão desastrosa catástrofe!
Prosseguiu avante, irritado o senhor da vidraça pela fraqueza de um seu súbdito, começou em contrações nervosas e tão violentas, que de certo as grades voariam, se não fora um novo incidente, que veio pôr termo a um ataque tão terrível.
Uma desgraçada panela rolava furiosamente impelida pela casa, fazendo as delícias duma travessa circunvizinha, que dava agudíssimos gritos ao ver as ligeiras da mísera paciente. Ao rouco e rachado som da panela volta-se exasperado o recém epilético e tomando como insulto feito à sua dignidade, as expressivas cabriolas com que a panela o mimoseava, salta denodadamente sobre a infeliz, que ainda rolava, atraca pelas azas e arroja ao meio do largo o último suspiro, acompanhado dum roufenho gemido. Momento terrível de dor, com imprecações, desordem, tumulto e agitadas desesperações!
Sensações diagonalmente opostas incendiaram e agitaram a multidão e se apoderaram de seus ânimos!
O quarto touro, que ia experimentar a perícia e rigor de seus terríveis e hábeis
perseguidores, foi despojado das armas e completamente reduzido a impassibilidade de um burro!
Os três atores da tragedia altercaram com uma eloquência de Cícero, porém foram interrompidos em sua discussão por uma bravejante coorte de Ciclopes que se arremessaram em todos os sentidos causando mil encontrões e zig-zags. Tarde espantosamente celebre e notória!
Os sucessos que tu viste serão memorizados pelos vindouros por milhares de modos! A História te consagrara duas linhas para eterno monumento de glória!!
Sem Autor. Episódios do carnaval de 1854, manuscrito. Transcrição Paleográfica de Paula França. Arquivo Histórico Municipal de Coimbra. JMC/n.º 14, fl. 119
Continuando a debruçar-nos sobre a obra Coimbra e a República. Da propaganda à proclamação, de Carlos Santarém Andrade, abordaremos de seguida o último capítulo dedicado à Proclamação da República em Coimbra.
Segunda parte.
Na tarde do dia 13 de Outubro teria lugar a tomada de posse da Comissão Administrativa Municipal. Leia-se, sobre o acto, «A Defesa", do dia seguinte: "Foi ontem aclamada e tomou posse a comissão administrativa que há-de gerir os negócios municipais até às próximas eleições. Pelas 2 horas e meia da tarde, a convite do administrador do concelho, reuniu-se na sala nobre dos Paços Municipais o povo desta cidade". O jornal prossegue a descrição do acto, com a relação dos membros efectivos, constituída, entre outros vultos republicanos, pelo Dr. Sidónio Pais e António Augusto Gonçalves, respectivamente presidente e vice-presidentes da comissão, acrescentando: "Uma estrondosa salva de palmas acolhe a leitura desta lista, que se prolonga à medida que o Sr. Secretário da Câmara vai proclamando cada um dos nomes dos escolhidos e estes vão tomando o lugar que lhes é reservado".
Sidónio Pais, 1.º Presidente da Comissão Administrativa Municipal. Op. cit., pg. 151
António Augusto Gonçalves. Vice-Presidente da Comissão Administrativa. Op. cit., pg. 151
Seguem-se vários discursos: "Todos os oradores são muito aplaudidos, e entusiasticamente correspondidos os vivas soltados à República Portuguesa, à Pátria, ao Exército, à Marinha, ao Povo de Lisboa, à Câmara Republicana". Continua o jornal: “Encerrada a sessão, repetem-se os aplausos e os vivas à nova vereação, que se prolongam por vários minutos". E a terminar, "A banda do 23 tocou a «Portugueza» no átrio dos Paços Municipais.
A proclamação da República em Coimbra, que decorrera com normalidade, viria a ter um incidente que ocorreu na Universidade, quando um grupo de estudantes radicais, auto-denominado de ”Falange Demagógica'', provocou, no dia 17 de Outubro, distúrbios nas instalações universitárias, partindo peças de mobiliário, rasgando algumas vestes doutorais, destruindo mesmo diversos adereços na Sala dos Capelos, em que foram disparados tiros que atingiam os retratos de D. Carlos e de D. Manuel II.
Distúrbios na Universidade. Op. cit., pg. 150
O acto, reprovado geralmente, incluindo a imprensa republicana, foi justificado pelos seus autores, num manifesto "Aos Espíritos Livres», no dia 18, em que declaravam: "Eis porque meia dúzia de caracteres impolutos que não se deixaram arrastar por essa onda de corrupção ignominiosa, vêm agora, impelidos por um nobre e altivo sentimento, livres das peias de preconceitos atávicos, quebrar os grilhões malditos que arroxeavam os pulsos de centenas de gerações".
Entretanto é nomeado Reitor da Universidade Manuel de Arriaga, que chega a Coimbra acompanhado por António José de Almeida, Ministro do Interior, sendo recebidos por uma enorme multidão na Estação Nova.
Chegada de António José de Almeida e de Manuel de Arriaga à estação de Coimbra. Op cit., pg. 153
E no dia 19 de Outubro reabria a Universidade, sendo o novo Reitor empossado no cargo por António José de Almeida. O acto, que decorreu sem as tradicionais praxes académicas, foi relatado, no dia 27 de Outubro, pelo jornal "A Tribuna": "Usando da palavra, o Sr. Dr. António José de Almeida, começa por dizer que veio expressamente a Coimbra para, em nome do Governo Provisório da República, apresentar aos professores e alunos da Universidade o novo Reitor Manuel de Arriaga, a quem se faz uma entusiástica manifestação de carinho e respeito que profundamente o comove".
Manuel de Arriaga. Op. cit., pg. 153
Usou da palavra em seguida o novo Reitor, que agradeceu com um discurso, findo o qual, como acrescenta o jornal: “Muitos lentes, seus condiscípulos e amigos, correm a abraçar o venerando velhinho cuja suave figura todos infunde um respeito profundo, uma carinhosa simpatia. O público dispensa-lhe uma carolíssima manifestação em que os vivas e as palmas se sucedem e se prologam”.
Em favor das vítimas da revolução em Lisboa, tem lugar no dia 1 de Novembro, em Coimbra, um bando precatório para angariar fundos, que saiu dos Paços do Concelho, percorrendo várias ruas da Cidade.
Bando precatório para angariar fundos. Op. cit., pg. 154
ambém no dia 6 de Novembro, comemorando o 30.º dia da proclamação, é descerrada a lápide dando o nome de Praça da República ao largo até então denominado D. Luís.
Convite comemorativo do 30.º dia da proclamação da República. Op. cit., pg. 154
Andrade, C.S. Coimbra e a República. Da propaganda à proclamação. 2022. Coimbra, Edição Lápis da Memória.
Carlos Santarém Andrade, cerca de um mês antes da sua partida, apresentou aquele que foi o seu último livro, Coimbra e a República. Da propaganda à proclamação.
Carlos Santarém Andrade ( .Coimbra, 2022). Op. cit., badana
Coimbra e a República. Da propaganda à proclamação.
Op. cit., capa
O livro assenta num aturado trabalho investigativo que honra o seu Autor e que representa um muito digno fecho de uma vida dedicada à cidade de Coimbra.
Carlos Santarém analisa, na obra em apreço e ao longo de nove capítulos, o percurso do ideal republicano em Coimbra. No primeiro aborda o tema Da Patuleia à Geração de 60 e dele destacamos o que se segue:
À Universidade de Coimbra, em meados do século XIX, afluía a geração dos filhos dos revolucionários liberais de 1820, muitos dos quais deram a sua vida ao serviço da causa da liberdade, nos batalhões académicos da Guerra da «Patuleia» em 1844 e 1846, e que viriam a mostrar o seu desapontamento contra os termos da Convenção de Gramido, imposta por potências estrangeiras.
Era então Coimbra como que uma placa giratória, a que convergiam jovens de Lisboa e do Porto, onde as ideias liberais estavam mais difundidas, que aqui conviviam com outros jovens vindos dos mais variados pontos do país e que, no regresso às suas terras ou regiões levavam, a par do canudo de bacharel, o conhecimento dessas ideias, amplamente discutidas durante os anos do seu curso, quer em acaloradas reuniões e assembleias no Teatro Académico, quer nas mesas de pinho das tascas coimbrãs.
1848 é uma data importante nas lutas pela liberdade na Europa. Em 23 de Fevereiro é proclamada a II República Francesa, que levaria à abdicação do rei
Luís Filipe, a que se seguiu em Março a revolução liberal em Viena, que poria fim ao governo autoritário do príncipe Metternich. Ainda em Março desse ano tem lugar a revolução demo-liberal de Berlim, havendo igualmente levantamentos nacionalistas em Itália, então ainda não unificada. Todos estes factos se iriam repercutir na Europa de então.
Na sequência dos acontecimentos, surge em Coimbra uma mensagem dos estudantes da Universidade, datada de 9 de Abril de 1848, subscrita por mais de
400 assinaturas (sensivelmente metade da população académica), dirigida aos seus colegas de Paris, Viena, Berlim e Itália.
Texto da mensagem dos estudantes de Coimbra aos seus colegas de Paris, Viena, Berlim e Itália. Op. cit., pg. 10
Não podendo ser considerado um manifesto republicano é, porém, um hino à democracia, à luta contra a tirania, lembrando que eles próprios se sentiram traídos “pela santa aliança dos reis" que acabaria por "ingerir-se na nossa causa, arrancaram-nos as armas e atar o pobre Portugal ao poste dos vencidos para continuar a escarnecê-lo", e em que os princípios da Revolução Francesa - Liberdade, Igualdade, Fraternidade - estão bem patentes.
Não deixa de ser significativo o aparecimento, em 25 de Abril de 1848, de um jornal clandestino, em Lisboa, intitulado "A República".
Significativa é também a existência de uma participação policial, datada de 16 de Agosto de 1849, que nos dá conta de dois indivíduos, numa tasca da baixa coimbrã, terem dado vivas à república, sendo levados para a cadeia da Portagem, tidos por elementos das forças rebeldes e apodados de vadios.
Participação oficial de 16 de Agosto de 1849. (Cópia cedida pelo Dr. Paulino Mota Tavares). Op. cit., pg. 11
Na década de 60 do século XIX aflui a Coimbra uma geração a vários títulos notável. É fundada em 1861 a «Sociedade do Raio» que contava, entre os seus membros, além de outros, com Antero de Quental, figura maior dessa geração.
Andrade, C.S. Coimbra e a República. Da propaganda à proclamação. 2022. Coimbra, Edição Lápis da Memória.
Para terminar a divulgação do livro Coimbra de capa e batina, volume II, vamos às páginas 219 a 225, rever a conquista pela Associação Académica de Coimbra, em 1939, da Taça de Portugal, em futebol.
Emblema da AAC. Imagem acedida em https://www.academica-oaf.pt/historia/
Equipa que disputou a final da Taça de Portugal, ganhando ao Benfica por 4-3. Imagem acedida em https://www.academica-oaf.pt/historia/
Bola Académica
Golo!... E o abraço caiu como um raio em cima do companheiro do lado!... 0 homem, porém, era do Benfica! . . .
~Vá lá abraçar um raio que o parta…
A situação foi salva imediatamente por uns companheiros da «claque», que o nervosismo nunca deixava estar parados nos 90 minutos do jogo. Daí o engano da fúria daquele abraço. . .
Mas a realidade era aquela. A Associação Académica tinha metido um estupendo golo...
Ali, nas redes do Benfica e no campo das Amoreiras! com o Tibério a ser «metralhado» por detrás das balizas.
Intervenção do guarda-redes da AAC, Tibério. Imagem acedida em https://www.academica-oaf.pt/historia/
No retângulo do jogo, onze rapazes de camisola negra, davam luta de peito aberto a onze homens do Benfica e a uns milhares de adversários, espicaçados por aquele atrevimento dos «gajos» de Coimbra.
Sobre meia dúzia de adeptos da Associação começaram a cair as fúrias dos benfiquistas.
Mas, nem um passo de recuo… Nem uma vibração abalada. O grito era sempre o mesmo e redobrava de fé, a cada instante: é «Briosa»!!
Um fogo sagrado temperava aquela magnífica resistência dos estudantes de Coimbra. Havia ali a defender qualquer coisa de grande e de tradicional. Aquela equipe negra, impunha responsabilidades a jogadores e a adeptos.
Ninguém fugiu a dar. Os que jogavam aceitavam os ataques desleais dos adversários e procuravam destruí-los sem timidez. Os que aplaudiam, metidos entre agressões iminentes, mantinham a mesma atitude e continuavam a aclamar a Associação, que naquele momento se batia com um futebol e com uma alma, que um benfiquista traduziu, nesta expressão:
- Estes tipos são tremendos
Quando o árbitro deu por findo o encontro, o brio académico e a velha tradição da «malta» estavam perfeitamente salvos. O Benfica foi derrotado.
No final do desafio da Taça de Portugal- Fan, Fan, Fan, Auto Fan… Repare-se na derrota estampada na cara dum jogador do Benfica… Op.cit. 225
No final do desafio da Taça de Portugal. Imagem acedida em https://www.academica-oaf.pt/historia/
Uma espécie de loucura, atacou-nos então e ali, naquele campo das Amoreiras, mesmo nas barbas do Benfica e dos seus adeptos. Esqueceram-se posições sociais, conveniências próprias e o perigo de qualquer manifestação. Médicos, advogados funcionários públicos, alunos da Escola Militar, etc., deitaram cá para fora aquela alegria exuberante de incondicional estima pela Associação.
Que extraordinária vibração a desses momentos. Que admirável e sã energia, dum punhado de rapazes que traziam consigo aquela Coimbra eterna da nossa juventude!
Á saída, os jogadores estudantes, foram «assaltados» por nós. . . Um rapaz do grupo, que nunca estudou em Coimbra – Mas que ainda hoje é capaz duns bons murros para defender a Associação – queria por força abraçar as pernas do Faustino, que, no seu entender, foram as traves do desafio. Não sei se chegou a tal manifestação, o que sei, é que nessa noite levou a família ao Teatro. Chegou mesmo a «decretar» à mulher, que só iria nos dias em que a Associação ganhasse. Um empate merecia cinema. Uma derrota, não se jantava e ia tudo para a cama, com as galinhas, curtir a tristeza do chefe familiar.
Sou testemunha de que estas ordens foram algumas vezes cumpridas.
Nessa tarde, quando no Rossio continuavam as manifestações académicas, descobrimos, a entrar para a «Brasileira», um antigo estudante de Coimbra e diretor da Associação, com profundos traços de tristeza no fácies … Aquele seu antigo grupo vencer o Benfica era mágoa que o acompanharia até à eternidade … Infelizmente há disto…
Nobre, C. Coimbra de capa e batina. Volume II. 1945. Coimbra, Atlântida – Livraria Editora, Ld.ª.
Prosseguindo na divulgação do livro Coimbra de capa e batina, volume II, salienta-se que nas páginas 174 a 191 é apresentada a história do nascimento do Teatro Académico da Universidade de Coimbra. Desse texto selecionamos o que se segue.
O Teatro Académico, chegou a ser um sistema pedagógico, não só na Universidade de Coimbra como em outras da Europa. Mestres e alunos tomavam parte em representações e elas, por vezes, constituíam até uma parte do ensino que então se ministrava.
… Uma provisão de El-Rei D. João III, no ano de 1546, ordenou o seguinte, quanto ao Teatro Académico. «O lente de Gramática, da mais alta Regra, que lê no Colégio de São Gerónimo seja obrigado a fazer e a representar, em cada ano, uma comédia nas escolas, no tempo e nos lugares que pelo Reitor lhe for ordenado…»
E foi com muita graça e propriedade, que António José Soares – autor dos vários cenários dos autos de Gil Vicente e artista de rico temperamento – foi desenterrar a referida provisão aos Arquivos da Universidade, para a apresentar como sendo a «certidão de nascimento» do Teatro dos Estudantes de Coimbra que o Professor Doutor Paulo Quintela, com tanto brilho, vem dirigindo.
Talvez pareça estranho, mas é verdade: o Teatro dos Estudantes nasceu do Fado. Esta fatalidade nacional e coimbrã, foi sem dúvida, a origem do renascimento teatral na academia de Coimbra.
A sua história é esta: Em 1937 existia em Coimbra o «Fado Académico». foi seu fundador e dirigente Jorge de Morais (Xabregas) que à sua volta reuniu todos os guitarristas e cantores que então havia na Academia. O grupo tinha um interesse profundamente romântico. Xabregas, com a sua eterna fé por esta terra ribeirinha, pretendia criar uma escola de cantores e guitarristas ao jeito coimbrão. Profetizava que um dia, deixaria de haver rouxinóis a cantar baladas de amor e de saudade.
Apesar dos seus esforços, o «Fado» morria de dia para dia … Jorge de Morais pensou então em remodelar o seu grupo e surgiu-lhe a ideia dum conjunto dramático.
E assim, em Novembro de 1937, foi eleita uma direção [segue-se uma relação de 12 estudantes]. A ideia da criação dum grupo cénico tomou então, vulto e para ela, foi solicitada a colaboração do Professor Doutor Paulo Quintela.
Professor Doutor Paulo Quintela. Imagem acedida em: http://www.cvc.instituto-camoes.pt/seculo-xx/paulo-quintela.html#.Y0RA61LMJPY
Havia, porém, um grande problema a resolver: a inclusão, no grupo, de raparigas universitárias, sem as quais não seria possível realizar obra de vulto.
Mas esta Coimbra, mexeriqueira e maldosa criava sérias dificuldades, pois as raparigas num temor compreensível, negavam a sua colaboração. Até que surgiu a estudante Madalena Coelho de Almeida que de alma erguida se entregou devotadamente à realização de tão simpática iniciativa. Depois de vencer algumas resistências, apresentou uma lista de raparigas que se propunham colaborar no Teatro Académico. Vencido este obstáculo foi constituído o «Grupo Cénico» - designação inicial. [Segue-se uma relação de 9 alunas da Faculdade de Letras e de 10 alunos de diversas faculdades].
Numa sala do Museu Zoológico, iniciaram-se em seguida, os ensaios da peça «Braz Cadunha» do escritor Samuel Maia.
O Prof. Doutor Paulo Quintela, porém, tinha um Plano cultural mais vasto e o teatro clássico português desde o início que lhe merecia uma atenção especial. E assim, simultaneamente com o «Braz Cadunha» começaram os ensaios da «Farsa de Inês Pereira» de Gil Vicente. Estava dado o primeiro passo, para o que mais tarde viria a ser a coroa de glória do Teatro dos Estudantes. Três meses depois, o Grupo Cénico do «Fado Académico» apresentou-se no Teatro Avenida, em récita de gala, com a designação de «Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra». O «Fado Académico» morrera nessa noite.
Logotipo. Imagem acedida em https://www.facebook.com/photo?fbid=1007766936661205&set=pb.100022837253956.-2207520000..
Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra. Op. cit. Pg. 177
O TEUC em 2022. Imagem acedida em: https://www.facebook.com/photo/?fbid=7811227052228113&set=pb.100022837253956.-2207520000
… O Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra venceu. A sua fama espalhou-se por Portugal inteiro e em Coimbra.
Nobre, C. Coimbra de capa e batina. Volume II. 1945. Coimbra, Atlântida – Livraria Editora, Ld.ª.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.