Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Tivemos, recentemente, acesso a um conjunto de documentos que permitiram conhecer a existência de vestígios arqueológicos romanos relevantes para a história da nossa Cidade. No entanto, mais uma vez, o camartelo do “progresso”, a fim de construir o anfiteatro da Faculdade de Direito, sumiu-os e reduziu-os a meros documentos, mais ou menos amarelecidos pelo tempo, que jazem inertes, apenas vivos para quem os pretenda consultar, num dos inúmeros arquivos estatais.
Relatório das escavações de emergência realizada nas imediações da alcáçova de Coimbra 1997 (finais de junho e julho de 1997)
... As sondagens praticadas pontualmente revelaram níveis amplamente remexidos, observação confirmada pelos sequentes trabalhos arqueológicos.
Na fase terminal dos trabalhos mecânicos, o empreiteiro resolveu dar um arranjo um pouco mais cuidado à zona concretizado numa limpeza geral, no aplainamento das superfícies, e nas barreiras limítrofes ao fosso destinado a receber o anfiteatro.
…. Este tipo de trabalho foi determinante no revelar ocasional de estruturas da ocupação romana - muros e pavimento de opus signinum.
Embora imprevisível, não foi surpresa. Inexplicável seria se nada de romano existisse a poucos metros da cintura do que foi a acrópole romana.
A ocorrência de vestígios romanos verificou-se em dois locais no corte oblíquo do lado oeste, quando os trabalhos de remoção de terras se encontravam no seu termo.
….
O edifício do séc. XVI
No séc. XVI, a zona conheceu uma fase de desenvolvimento urbano. Pelas estruturas existentes à superfície e muros que surgiram após a decapagem mecânica da área do futuro anfiteatro de Direito é possível apreender a evolução do sector. Confirma-se que, nalguns pontos, nomeadamente até à rocha, as construções anteriores são arrasadas.
Um grande edifício aparece então (Fig. 3) com uma sólida construção.
Fig. 3. Op. cit.
… O edifício, que conservava uma altura de cerca de 10m, foi agora arrasado com exceção do muro meridional, hoje parcialmente encoberto pela rampa que descai para a R. Guilherme Moreira;
…. Assim o edifício afeto a um plano retangular fecha a poente a área que … revela ser um espaço essencialmente aberto para o interior.
As evidências arquitetónicas, a fachada contrafortada … levam a aparentá-lo cronologicamente com a imponente colunata levantada a Este, que o contexto convida a pôr em relação com as transformações efetuadas na zona no séc. XVI.
Fotografia anexa ao documento transcrito
O edifício foi a certa altura parcialmente abandonado ou melhor, transformado em instalações para a Faculdade de Farmácia, em data que não podemos precisar. Estas instalações viriam a ser demolidas no plano de trabalhos da cidade universitária.
As estruturas romanas
Analisemos as estruturas que se identificam com a época romana.
A zona compreendida entre o grande edifício e a arcada quinhentista, a meia encosta, sobre o afloramento rochoso, revelou a presença de estruturas romanas, que, após a remoção da terra até ao aparecimento do nível do muro 6, foram objeto de “escavação”.
Fotografia anexa ao documento transcrito
…. Três muros perpendiculares ao muro 6, com dimensões mais reduzidas, dirigem-se para ocidente. O primeiro muro, 9, determina o canto nordeste e termina sobre o afloramento rochoso com pouco mais de 2,00 metros de comprimento.
Forma com o muro 8, uma pequena divisão, apontada como D5, parcialmente talhada na rocha, de pavimento térreo. O segundo muro, 8, forma o angulo nordeste da divisão D4, com 8,30m de comprimento e 4,9m de largura. A partir de 3m, testemunha algumas transformações no tipo de construção, passa a ser construído de pedras soltas dispostas muito irregularmente, provavelmente impostas como acrescentos ou transformações efetuadas em época tardia. O terceiro muro, 7, também de boa qualidade, com 0,5m de largura, mediano das divisões D4 e D3 apresenta um pavimento de opus signinum reduzido a uma pequena porção danificada pelo muro 4.
…. Pelo tipo construtivo da canalização poder-se-á definir a sua funcionalidade? Destinar-se-ia a evacuar as águas pluviais ou teria servido de alimentação a fontenário ou tanque? Na primeira hipótese é preciso supor que a recolha das águas pluviais, nesta situação à profundidade de 1m, se fazia por um sistema de caixas de esgoto das quais não se notam quaisquer vestígios e com este fim não parece lógico o acabamento do fundo da canalização em opus signinum com ligeira elevação do lado direito, tipo meia cana. O género de acabamento pressupõe uma conduta de águas limpas para alimentar qualquer reservatório.
…. O vestígio mais significativo é o opus signinum muito bem conservado com uma área aproximada de 20m2 e com 0,12m de espessura.
…. O conjunto de estruturas é muito pouco significativo, pelo que os dados cronológicos recolhidos na zona ocidental da alcáçova são raros. Apenas o elenco dos fragmentos do mobiliário cerâmico em confronto com as diversas concordâncias estratigráficas confinadas às prospeções e “escavações”, são elementos suscetíveis de abordar, com alguma reserva, a sua cronologia.
…. A destruição das estruturas romanas deve ter sido efetuada no séc. XVI com a implantação, nesta época, do outro imóvel descrito.
Auditório da Faculdade de Direito. Foto de José Manuel Alvarez Ilarri. Acedida em: https://www.google.pt/search?q=coimbra&sca_esv=2a19a3414e05e997&sxsrf...
Pinto. A.N. Relatório das escavações de emergência realizada nas imediações da alcáçova de Coimbra 1997.
Foi, recentemente, publicado mais um número – o 57-2023 – da Rua Larga. Revista da Reitoria da Universidade de Coimbra» que integra vinte e cinco artigos. Trata-se de uma reunião de saberes, escritos numa linguagem acessível, cuja leitura merece o nosso interesse.
Rua Larga. Revista da Reitoria da Universidade de Coimbra, n.º 57-2023, capa
Nesta entrada olhamos para o artigo Modelações 3D de Projetos e Edifícios da Reforma Pombalina da Universidade, (pg. 35 a 41) assinado pelos Professores do Departamento de Arquitetura da Faculdade de Ciências e Tenologias, Rui Lobo e Carlos Moura Martins, magnificamente ilustrado onde, nomeadamente, é dito.
Em 2022, comemoraram-se os 250 da Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra A Reitoria da Universidade de Coimbra (UC), através do vice-reitor professor Delfim Leão, contactou o Departamento de Arquitetura no sentido de se produzir uma coleção de modelos 3D, em formato digital, dos projetos dos edifícios da Reforma, aprofundando um trabalho começado no âmbito da unidade curricular de História da Arquitetura Portuguesa, no ano letivo de 2020-21.
Em 29 de setembro de 1772, em sessão solene na Sala Grande dos Atos, Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal, apresentava com pompa e circunstância, os novos Estatutos ao corpo reunido da Universidade. Eram criadas as novas Faculdades de Filosofia e de Matemática (substituindo a extinta Faculdade de Artes), mantendo-se as restantes faculdades de Teologia, Direito, Cânones e Medicina, ainda que esta última em formato renovado. Para as novas faculdades e para a reformulada Faculdade de Medicina, promovia-se um novo ensino de caráter prático e experimental, apoiado em novos estabelecimentos criados para o efeito: os Gabinetes de Física Experimental e de História Natural, o Laboratório «Chimico» e o Jardim Botânico para a Faculdade de Filosofia; o Observatório Astronómico para a Faculdade de Matemática; e o Teatro Anatómico e Dispensatório Farmacêutico para a Faculdade de Medicina, além da junção do Hospital Público da cidade à Universidade. Para executar a Reforma no terreno, nos seus mais variados aspetos, foi nomeado Reitor-Reformador D. Francisco de Lemos, verdadeiro «braço-direito» do Marquês em Coimbra.
Para instalar estes novos estabelecimentos pedagógicos e científicos, estavam disponíveis os edifícios do Colégio de Jesus (dos expulsos jesuítas), o antigo castelo (a nascente da Alta, para o Observatório), conseguindo ainda o Marquês a cedência de parte da cerca do Colégio de S. Bento para o Jardim Botânico. Seria também criada a Imprensa da Universidade, instalada no claustro da Sé Velha, já que a catedral passava a ser a antiga igreja dos inacianos, agora Sé Nova. Para realizar os projetos de arquitetura dos novos estabelecimentos, veio com o Marquês o tenente-coronel Guilherme Elsden, inglês radicado em Portugal, que havia feito carreira no exército português, realizando levantamentos cartográficos e territoriais e dirigindo algumas obras infraestruturais. Trabalharia com Elsden uma equipa de engenheiros militares, que incluía os capitães Izidoro Paulo Pereira e Joaquim Oliveira, e ainda os ajudantes Ricardo Franco de Almeida Serra, Theodoro Marques Pereira da Silva, Guilherme Francisco Elsden (filho do «Diretor das Obras»), Manuel de Sousa Ramos e o discípulo do número Inácio José Leitão.
Após a coordenação dos primeiros levantamentos, realizados durante a estada do Marquês em Coimbra em setembro-outubro de 1772, Elsden e a sua equipa regressariam a Lisboa, onde produziriam as plantas dos edifícios existentes (incluindo uma notável planta conjunta dos colégios de Jesus e das Artes, hoje no Rio de Janeiro) e umas primeiras ideias de adaptação dos mesmos aos novos estabelecimentos, como a proposta de adaptação da torre quadrangular do castelo de Coimbra a um primeiro e modesto observatório astronómico.
Figura 1: Guilherme Elsden. Primeiro projeto para o Observatório Astronómico, aproveitando a torre de planta quadrada do castelo: desenho de 24 de novembro de 1772, Fundação Nacinal, Rio de Janeiro (modelo 3D: Rita Rodrigues). Op. cit., pg. 34
Figura 2: Guilherme Elsden. Segundo projeto para o Observatório Astronómico, aproveitando ambas as torres do castelo: desenho do verão de 1773. Museu Nacional Machado de Castro (modelo 3D de Rita Rodrigues). Op. cit., pg. 37.
Figura 4: Manuel Alves Macomboa. Observatório Astronómico do Paço das Escolas, construído entre 1791 e 1799, demolido em 1951 (modelo 3D: Rita Rodrigues). Op. cit., pg. 38
Elsden voltaria a Coimbra em março de 1773, dando início às obras de transformação do corpo nascente do antigo Colégio de Jesus, correspondente à atual fachada do Museu de História Natural, que definia o também novo espaço urbano do Largo do Museu, atual Praça Marquês de Pombal.
Figura 6: Guilherme Elsden. Segundo projeto para o Laboratório Chimico (teatro das demonstrações químicas) desenho do verão de 1773, Departamento de Quimica da FCTUC, (modelo 3D: Júio Vidotti, Rafaela Alves e Rita Rodrigues). Op. cit., pg. 40.
Figura 7: Guilherme Elsden. Projeto final para o Laboratório Chimico (teatro das demonstrações químicas) desenhos de finais de 1773 ou inícios de 1774, Livro dos Riscos das Obras da UC, Júlio Vidotti, Rafaela Alves e Rita Rodrigues). Op. cit., pg. 40.
Lobo, R. e Martins, C. Modelações 3D de Projetos e Edifícios da Reforma Pombalina da Universidade. 2023. In: Rua Larga. Revista da Reitoria da Universidade de Coimbra, n.º 57-2023, pg. 35 a 41.
Assisti no passado domingo, dia 4 de Junho, pela segunda vez, a um concerto dos seis órgãos da Basílica de Mafra.
Tomei então conhecimento da existência da ECHO (Europae Civitates Historicorum Organorum) que foi fundada em 1997 e tem como objetivo desempenhar um papel unificador em projetos a nível europeu das cidades com órgãos de valor histórico e de origem europeia.
Integram esta rede Alkmaar (Holanda), Bruxelas (Bélgica), Freiberg (Alemanha), Fribourg (suíça), Innsbruck (Áustria), Mafra (Portugal). Toulouse (França), Treviso (Itália) e Trondheim (Noruega).
Órgão da Igreja de Santa Cruz
Coimbra, por direito próprio, podia e devia pertencer a este Rede, porque:
- Dispõe de três grandes órgãos históricos – Igreja de Santa Cruz, Universidade e Sé Nova – recentemente recuperados, e ainda o órgão do Seminário de Coimbra de muito boa qualidade e operacional e o da Igreja do Colégio Novo que foi objeto de recuperação no início da segunda metade do século passado;
Órgão da Capela da Universidade
- Existem ainda nos Concelhos limítrofes dois outros órgãos recentemente recuperados e de valor inestimável: o do Mosteiro de Lorvão (Penacova); e o do Convento de Semide (Miranda do Corvo);
- Teve Coimbra duas escolas de música de referência do nosso País, com produção organística própria: a do Mosteiro de Santa Cruz; e a da Universidade.
De tudo o que atrás refiro sugiro o seguinte conjunto de perguntas:
- Quantas cidades do Mundo se podem orgulhar de um património organístico desta dimensão?
- Depois dos vultuosos investimentos feitos e sendo condição necessária para a boa manutenção destes instrumentos o seu uso regular, o que se tem feito a Cidade para que a mesma aconteça?
- Não tem Coimbra capacidade económica para ter um organista residente que assegure aquele uso regular?
- Não será este um elemento muito importante não só para a vida cultural de Coimbra e da Região onde se insere, bem como para o desenvolvimento do turismo cultural que todos defendem?
- Não é possível a conjugação de vontades entre os Municípios de Coimbra, de Penacova, de Miranda do Corvo, da Diocese, da Universidade, da Misericórdia de Coimbra, da Direção Regional de Cultura do Centro e da Região de Turismo Centro de Portugal, tendo em vista a potenciação do património organístico aqui existente?
Eu tenho as minhas respostas. Acho que todos devem ter as suas.
Rodrigues Costa
... narrativa de António Francisco Barata que, escrevendo em 1864, fala acerca do “Rancho da Carqueja” e, portanto, de alguns episódios de exercício da ‘praxe’ no início do século XVIII, até 1720.
“Os costumes académicos têm tido em Coimbra um certo cunho de originalidade.
É imemorial o tempo em que deram princípio em Coimbra as caçoadas, ou ‘troças’ feitas aos novatos, vulgarmente chamados ‘caloiros’.
Sendo nos princípios apenas no tributo da ‘patente’, que o novato pagava para almoços, ou merendas, foi, com o andar dos tempos, crescendo esse tributo. Já não era só o tributo pecuniário; o caloiro tinha de ser apupado, caçoado, graduado.
Se algum havia que se negava ao cumprimento religioso daqueles costumes e praxes académicas, esse lavrava, com a recusa, a sentença condenatória que o obrigava a provações mais sérias e tremendas.
E, assim, o ‘grau’, com a prévia tonsura, a defesa das teses, e, pior que tudo, a prova do ‘esquife’, eram trabalhos a que se não eximia nenhum; era a forca caudina de todo o novato valentão e desobediente.”
... outro testemunho sobre as praxes, o de João Eloy, que frequentou a Universidade na década de 90 do passado século XIX, e a quem se deve a ideia dos festejos do “Centenário da Sebenta”, em 1899.
“Era o ‘Palito Métrico’ ... o Código pelo qual se regia a ‘briosa’, e, nos casos omissos, recorria-se à tradição oral.
... Depois da última badalada da ‘cabra’, nenhum ‘caloiro’, ‘bicho’ ou ‘formigão’ podia andar na rua sem proteção.
Mas só o quintanista, o quartanista e o pastrano – ou seja o repetente do primeiro ano – gozavam de plena liberdade de trânsito, pois o semi... digo o segundanista, não podia passar do Arco de Almedina para baixo depois das nova da noite, e o terceiranista, para além da ponte depois das dez.
... Cada ‘troupe’ tinha, como figuras principais, o ‘chefe’ e os portadores, da tesoura, para os cortes de cabelo, e da colher, para as palmatoadas.
Várias formas havia de cortar o cabelo: umas vezes à escovinha, outras cortado em ‘crista de galo’, deixando-se apenas um traço de cabelo, da testa à nuca, outras ainda à Santo Antoninho ... Normalmente todos os da troupe andavam embuçados, para o que se dava à capa uma disposição especial, que não prendia os movimentos e só deixava à vista os olhos ... Para se escapar à alçada das troupes havia o recurso à ‘proteção’. Considerava-se protegido o caloiro montado por ‘veterano’, e o que fosse acompanhado por senhora, pais, irmãos, parente próximo ou bacharel, formado pela Universidade.
... Apesar da troça aos caloiros, das troupes, das imposições de grau, etc., etc., a Academia de Coimbra era um modelo de boa camaradagem e solidariedade ... Todos nos tratávamos por ‘tu’ sem necessidade de apresentações; uma ofensa a um ‘saca de carvão’ afetava toda a Academia”.
Ribeiro, A. 2004. As Repúblicas de Coimbra. Coimbra, Diário de Coimbra. Pg. 93 a 99
No âmbito da Academia de Coimbra e naquilo que comummente dela se diz, desde sempre foi usada uma terminologia muito peculiar, como que procurando definir em conceitos formais algo que talvez não seja tão facilmente definível.
... um pequeno estrato da obra de Borges de Figueiredo:
“A Academia de Coimbra parece-se, em geral, com todas as academias do mundo; em particular, porém, não se parece com outra ... Nesta academia nunca houve distinções por línguas ... Mas houve sempre, mais ou menos a natural separação, em grupos, de estudantes da mesma província, formando os corpos mais unidos os ilhéus e os brasileiros
... O aluno da Universidade dizia: “Eu sou estudante de Coimbra”; estas palavras constituíam a sua divisa.
... na palavra de Antão de Vasconcelos e de José do Patrocínio ... O fidalgo e o plebeu, o rico e o pobre, igualmente uniformizados, entram na comunhão da vida académica, com o mesmo direito, com a mesma alegria, com o mesmo sentimento de posse ... Na igualdade que a capa e batina estabeleceu entre a mocidade universitária, reside o segredo do viço espiritual perpétuo de Coimbra.
... Um exemplo, dos muitos que poderemos enunciar, é a Sociedade Filantrópica Académica ... surgiu ... pela intuição solidária de um estudante madeirense, Feliciano Augusto de Brito Correia, quando este, corria o ano de 1849, implorou a proteção dos seus contemporâneos em favor daqueles a quem a falta de meios tolhesse o estudo.
... diz Antão de Vasconcelos “Era uma associação exclusivamente de estudantes e que formava por ano um certo número de colegas pobres, concorrendo com matrículas, mesadas, e demais despesas ... Não poucos se formaram em Portugal a expensas dessa associação.
... Ajudava os “Broeiros” ... estudante pobre das imediações de Coimbra, que recebia de casa em pequenas parcelas a alimentação: feijão branco, broa, orelha de porco, linguiça, etc., por mesada uns magros pintos para cigarros. Moravam sempre juntos e faziam bolsa com aqueles comestíveis para o mês ou semana.
A associação os socorria nas ocasiões de abrir e fechar matrículas.
Seus benefícios iam até ao que “andavam à lebre”.
Quando o estudante por estroina, jogador ou vagabundo perde as mesadas ... fica ‘à pauperibus’, como ali se diz. Então explora as repúblicas amigas. Almoçando aqui, jantando acolá, ceando além, dormindo com alguns amigos ou algures embrulhado na capa, até que melhorem os tempos e sopre a bonança.
Este estado é ali denominado ‘andar à lebre’,
Quando chegava ao conhecimento da Associação que algum companheiro ‘andava à lebre’, mandavam-lhe pequena quantia e logo abria uma subscrição, sem nunca declinar o nome do ‘caçador’. Era assim:
Um pegava no gorro, abeirava-se dos grupos ao cavaco e dizia: ‘Oh, coisas; deitai aqui o que quiserdes’. Toda a gente dava ... Feita a coleta, embrulhava-se a quantia em um papel; espreitava-se o tipo e logo que era encontrado, o portador descia o gorro pela cara abaixo, mascarando-se, e entregava-lhe o embrulho sem balbuciar palavra ... o ‘caçador’ não sabia quem lho dava e os académicos não sabiam para quem davam, mas sabiam a que fim se destinava.
Ribeiro, A. 2004. As Repúblicas de Coimbra. Coimbra, Diário de Coimbra. Pg. 79 a 85
Se considerarmos que uma comunidade de estudantes que designamos por “República”, comporta um número mínimo de quatro indivíduo.
... no ano letivo de 1872-1873 ... existiriam trinta e três dessas comunidades.
... no ano letivo de 1883-1884 ... existiriam ... pelo menos quarenta e sete comunidades.
... Em 1925 existiam mais de dez “Repúblicas” com um total aproximado de oitenta e cinco membros ... a percentagem de “repúblicos” relativamente à população académica era de 3,2%.
... Em 1960 existiam dezoito “Repúblicas”, com um total de 153 membros que constituíam 3,1% da população académica.
... Em 1968 ... existiam 187 deles (“repúblicos”) que viviam nas 22 “Repúblicas” existentes, o que nos dá uma percentagem de 1,99%.
... Em 1993, o número de “Repúblicas” era de 25, vivendo em “regime repúblico” 212 estudantes ... uma percentagem de 1,17%.
... Em 1996, nas 28 “Repúblicas” existentes viviam 238 estudantes ... uma percentagem de 1,25%.
... Se algum dia, que não desejamos, a instituição “República” se extinguir, com ela se extinguirá também a Academia, morrerá o “espirito de Coimbra” e a “Nossa Universidade” será apenas mais uma escola de ensino superior ao lado das muitas que proliferam já no nosso País.
Informações adicionais
- No período que vai de 1838 a 1990 são identificadas como extintas 106 “Repúblicas” a que acrescem mais de 20 outras das quais só se sabe que existiram.
- À data da edição da obra citada é referida a existência de 27 “Repúblicas” e “Solares”
Ribeiro, A. 2004. As Repúblicas de Coimbra. Coimbra, Diário de Coimbra. Pg. 144, 147 a 161, 186 a 188
... o que é uma “República” e o que são as “Repúblicas” ... Tomando a palavra de Agostinho Correia de Sousa ... “Criadas há séculos, as “Repúblicas” mantém-se como outrora – núcleos destinados a permitir o convívio dos estudantes, desde a faceta habitacional à do convívio puro, e a potenciá-lo, o que não é virtude menos importante. Mantêm-se os aspetos tradicionais da praxe e juntam-se-lhe as outras funções de raiz que as determinaram – criação de uma ambiência especial e harmónica.”
... as Repúblicas têm sido sempre o modo mais tradicional da vida académica e o mais seguro baluarte das suas tradições, englobando uma parte da Academia que constitui uma espécie de classe dentro da classe académica, com os seus problemas próprios, o seu espírito próprio e os seus interesses específicos, os quais são comuns às diversas Repúblicas que têm existido. E esses problemas e interesses específicos são de todas as ordens, de todos os tempos e de todas as “Repúblicas”.
... à semelhança do que acontecia em outros países, a junção de estudantes, em pequenos grupos, cada um dos quais com comunhão de mesa e habitação, formando as célebres “repúblicas, com os nomes das terras de naturalidade, ou das ruas onde se situavam e ainda outros. Assim, por exemplo: República Minhota; Transmontana; Scalabitana; dos Grilos, dos Palácios Confusos; dos Sete Telhados; das Cozinhas; dos Apóstolos; da Matemática; Soviete Supremo. Na sua quase totalidade situavam-se no Bairro Alto, que podia dizer-se ser inteiramente académico.
Cada agremiado mobilava o seu quarto, e bem modestos eram os trastes no meu tempo, que já se compravam apropriados: uma cama de ferro com o respetivo colchão e travesseiros; um lavatório também em ferro, com bacia, jarro e balde, mesa cadeira e uma pequena estante, tudo em madeira de pinho ou de cerejeira, pintados de uma cor avermelhada e um candeeiro de petróleo.
Cada mês administrava um, que colhia dos colegas a respetiva mensalidade e tomava diariamente à ‘servente’ as contas do mercado e da mercearia.
A ‘servente’, além do arrumo dos quartos e da limpeza da casa, cozinhava o almoço e jantar, recolhendo seguidamente a sua casa. Em regra não se serviam pequenos-almoços nas “Repúblicas”.
... Conheci casas muito antigas nos Largos do Castelo e da Feira, nas ruas do Borralho, dos Militares, da Matemática, das Flores e em outros, que desde há muitas dezenas de anos, algumas rondando por duas ou mais centenas, deviam ter servido quase sempre para habitações dos estudantes.
... É muito comum dizer-se que “República” é a casa em que vive um conjunto de estudantes”. Eu direi que “República” é o conjunto de estudantes que habita uma mesma casa em espírito de República”. Porque, o importante aqui, não é a casa, é a comunidade humana constituída por aqueles estudantes.
Ribeiro, A. 2004. As Repúblicas de Coimbra. Coimbra, Diário de Coimbra. Pg. 101 a 104
Mas, a existência dos colégios, se serviu para minorar o problema de falta de habitação em Coimbra no que se refere à população escolar, não significou de forma alguma que não continuassem a existir carências.
Quanto se sabe, nunca os proprietários de casas devolutas tiveram dificuldades em as arrendar... praticar-se-iam preços especulativos, se não mesmo exorbitantes, se não existisse toda uma série de legislação régia que protegia os escolares da especulação dos senhorios. Assim, de três em três anos, quatro taxadores, sendo dois da Universidade e dois da cidade, taxavam as casas do reitor, dos mestres e dos estudantes. Quanto ao senhorio, este recebia a importância da renda em três prestações, não podendo exigi-la junta, ou aumentá-la, sob pena de a perder todo.
... E não eram apenas os indivíduos de linhagem, os nobres, e os de largos proventos que moravam em casas arrendadas. Era uma larga fatia do corpo escolar, seculares e leigos, que, dispondo de tão largos privilégios no tocante a moradas e abastecimento de bens e produtos necessários ao seu suprimento, habitavam em casas de particulares, continuando-se esta situação pelos tempos fora.
Da época de D. João V fala-nos Ribeiro Sanches ... dizendo que os estudantes viviam aos dois e aos três (tal como acontece nas repúblicas), e servia-os uma ama e um, dois ou mais criados como era permitido à sua condição social pelos Estatutos.
... as condições de alojamento evoluíram sempre. Mas, agora é a primeira vez que alguém nos fala duma vida comunitária de estudantes que habitam uma casa e têm uma “ama”, que não será mais do que a “servente” das repúblicas contemporâneas.
... ao tempo da Reforma de Pombal, com o decréscimo do número de estudantes, terá aumentado a oferta de habitação em Coimbra. Mas a situação iria durar pouco tempo. Na realidade, se houve uma inversão no crescimento da população universitária durante a Reforma, com o passar dos anos há um crescendo que volta a trazer-nos à situação anterior.
... este crescendo acaba por atingir ... uma situação... mais gravosa, quando se atinge a revolução vintista (1820) e, muito particularmente, com a extinção das ordens religiosas e a passagem dos colégios universitários para as mãos do Estado.
É nesta época que começa a dar-se o nome de “República” à comunidade de estudantes que vivem em regime de autogestão, comungando da mesma casa, da mesma mesa, e quiçá, do mesmo espirito e estilo de vida, àquele conjunto de estudantes com vida em comum que ... existe desde os primórdios da Universidade, ou melhor, do Estudo Geral em Coimbra.
Ribeiro, A. 2004. As Repúblicas de Coimbra. Coimbra, Diário de Coimbra. Pg. 77 e 78
... Quando, no tempo de D. João III, a Universidade foi estabelecida definitivamente em Coimbra, também o monarca providenciou... no sentido de que aos escolares fosse dada a necessária morada e os mantimentos bastantes... É neste sentido que concorrem muitos dos alvarás régios.
... Acerca das casas que, logo após 1537, D. João III mandara construir, citas à rua de S. Sebastião, poderemos afirmar que a intenção do monarca seria a de providenciar moradas do tipo comunitário aos estudantes carecidos delas. Realmente, a forma como as casas estavam arquitetadas, mormente no que concerne ao número e distribuição das divisões, leva-nos a pensar que assim seria... Algumas das moradias dispunham, em cada andar, de uma sala de maiores dimensões, a clássica sala de comer das futuras ‘repúblicas’ coimbrãs... por cada habitação seria possível enquadrar entre oito a dez estudantes.
... Em nosso entender, não menosprezando a nossa ideia inicial da fase embrionária das ‘repúblicas’ ou casas de estudantes nos tempos dionísios, é D. João III quem, de alguma forma, vai instituir as “primeiras repúblicas” de facto, isto é comunidades de estudantes que, em comum, partilhavam a mesma casa, fruindo igualdade de condições e comungando também, eventualmente, duma mesma refeição, pelo menos é lícito supô-lo.
... Entretanto, alguns anos depois, novas possibilidades de alojamento e de vida comunitária surgem em Coimbra para os escolares. Estamos a falar dos colégios que nessa época começam a proliferar na cidade, sempre acompanhados da solicitude régia, mas, na generalidade dos casos, propriedades das Ordens Religiosas, para que os seus membros pudessem vir a estudar para a Universidade. Mas também havia os colégios das Ordens Militares, para os membros destas e ainda colégios para clérigos pobres e para seculares... os colégios absorveram, para além dos seus próprios membros estudantes, muitos outros indivíduos que, em boa parte, não tinham recursos bastantes para estudar e que, entrando para uma determinada ordem, podiam fazê-lo. Aconteceram até situações em que as próprias ordens disputavam entre si o ingresso no seu colégio de jovens bem dotados intelectualmente.
Ribeiro, A. 2004. As Repúblicas de Coimbra. Coimbra, Diário de Coimbra. Pg. 72 a 76
Relativamente ao período que se segue à “Restauração”, damos a palavra ao Doutor M. Lopes d’Almeida:
“Na segunda metade do século XVII e na primeira do século XVIII... pode dizer-se que não houve modificações importantes na orientação dos estudos superiores em Portugal ... A corporação académica desviara-se do seu trilho normal e deixara tornar regulares e frequentes certos abusos prejudiciais às boas normas do ensino e à atividade docente.”
... A Universidade tinha então um avultado número de estudantes, que só o eram, os mais deles, por assim se designarem, e a atividade discente empregava-se sobretudo no jogo dos partidos e nas questões extraescolares.
O estudante limitava-se a escrever as “postilas” ditadas e rubricadas pelo mestre de modo a poder provar a sua frequência, mas esta formalidade era iludida frequentemente com a aquisição das “postilas” e a atestação de assiduidade comprovada por dois condiscípulos.
A assistência nas aulas tornou-se por vezes tão rara que no primeiro quartel do século XVIII se deixara quase totalmente de ler nas escolas, chegando os estudantes teólogos a preferir as lições nos seus colégios às da própria Universidade. Houve que obrigá-los a frequentar os gerais.
Uma grande parte dos estudantes só vinha a Coimbra para se matricular acostumados a provar os seus cursos ‘os mais deles sem residir nem cursar’ (as matrículas realizavam-se três vezes por ano: na abertura da Universidade a 18 de Outubro, a meio do ano escolar, e finalmente a 15 de Maio). O mal era já bastante antigo, pois que em Novembro de 1640 Filipe IV... entendia que a ‘causa principal de os estudantes serem menos curiosos procede da falta que os lentes proprietários fazem na lição de suas cadeiras’.
Como só havia exames nos últimos anos e a matéria sobre que versavam era conhecida muitas vezes com antecedência, faziam-se então os estudantes lecionar para esse efeito por um graduado, na generalidade um doutor. Assim, ‘qualquer estudante, por mais ignorante que fosse, podia aspirar ao doutoramento’.
Para obviar à falta de residência dos estudantes ordenou-se que se fizessem duas matrículas incertas... medida não resultara... É que aos estudantes chegava sempre notícia do primeiro dia de tais matrículas, e prevenidos por pressurosos correios pagos apresentavam-se no momento preciso.
Esta irregularidade de frequência escolar corria parelhas com as turbulências provocadas pelos estudantes na cidade, que se agrupavam para cometer os maiores excessos, cuja repressão teve de ser violenta e tenaz.
Em 1648, 1651 e 1671, várias provisões tentaram expungir os escândalos originados pela vida ociosa e libertina dos estudantes, que persistiam ainda na primeira metade do século XVIII, em andar de dia e de noite com capotes por toda a parte, com espadas e outras armas debaixo do braço.
... ‘que todo e qualquer estudante que por sua obra ou por palavra ofende a outro com o pretexto de novato, ainda que seja levemente, lhe sejam riscados os cursos’
Ribeiro, A. 2004. As Repúblicas de Coimbra. Coimbra, Diário de Coimbra. Pg. 36 a 38
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.