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Parece ter andado confundida durante muito tempo a designação de Tricana, isto é, o mesmo título deve ter cabido à mulher do povo de Coimbra e à dos seus arredores.
No «Álbum de costumes portugueses», edição de David Corazzi, vem entre os cinquenta cromos, cópias de aguarelas originais, uma camponesa dos arredores de Coimbra, lindo trabalho do grande artista Manuel de Macedo, acompanhado dum artigo do notável escritor Manuel Pinheiro Chagas.
Op. cit., pg. 574
A confusão é manifesta, ou ter-se-á de aceitar que o trajo era por então igual nas mulheres do povo – citadinas e arrabaldinas.
A saia, o avental, o traçado do xaile, o atar do lenço é, por assim dizer, o que veio até nossos dias.
Na descrição de Pinheiro Chagas, às mulheres dos arredores de Coimbra chama-se Tricana, não distinguindo a situação ostentosa daquelas que habitavam na cidade...
… Fica averiguado o caso das mulheres da cidade terem usado o trajo descrito pelo autor [Borges de Figueiredo] da «Coimbra Antiga e Moderna», ou seja o capote e lenço, e as outras, de mais elevada categoria, mantilha e mais ademanes que referi.
Ainda é dos nossos tempos o final deste trajo em mulheres do povo.
Op. cit., pg. 566
…. Parece, pois, que o trajo das raparigas da cidade, vindo até nossos dias, se afastou daquele modelo para tomar o aspeto do usado pelas mulheres dos nossos arredores. Pelo menos o figurino é tão aproximado que o próprio historiador Manuel Pinheiro Chagas, na interpretação da aguarela de Manuel de Macedo, junta-as num só epíteto — Tricanas.
Ora esse trajo, o vestir das nossas Tricanas, vindo às ruas e às Fogueiras de S. João, nesta roda de mais de meio século, é o que se considera dentro da tradição popular.
…. Está consagrado pelos literatos, poetas e prosadores, é o lindo modelo de muitos trabalhos dos nossos Artistas.
Op. cit., pg. 620
Comecemos por Manuel da Silva Gaio, conimbricense insigne, poeta e prosador de admirável sentido, verdadeiro Mestre na nossa literatura, espírito de requintada delicadeza:
«Ninguém como ela traja
A gôsto do namorado;
Lenço de pontas atraz,
Chalinho de sobraçado,
Chinela curta, a fugir,
Embora o pé seja leve
E pequenino de ver
Na meia branca de neve;
Corpete todo a estalar,
Saia subida e ligeira,
Aventalinho tamanho
Como Rilha de figueira...»
Não é possível melhor descritivo, em verso, do trajo das nossas tricanas.
Depois vem o consagrado Trindade Coelho, no seu livro sempre novo, «In illo tempore»:
«Sua chinelinha de biqueira, em que só lhe cabe metade do pé; sua meia branca, ou às riscas, muito esticada; saia de chita, das cores mais claras, deixando ver os tornozelos e acima dos tornozelos duas polegadas de perna; aquele aventalinho muito pequenino, que é mais um chic do que outra coisa; o chambre de chita clara, aberto no peito em decote quadrado; e então o xaile de barras, ou a capoteira, passando por debaixo do braço direito e lançado (com elegância que se não descreve, mas que os estudantes copiaram para as suas capas) por cima do ombro esquerdo! »..
A descrição do trajo da Tricana em Trindade Coelho é perfeita, dando-nos em pormenores a forma como se vestiam na época em que foi escolar de leis na nossa Universidade.
Também me permiti a descrição do trajo da Tricana para uma das minhas crónicas de «O Primeiro de Janeiro», depois reproduzida no meu livro - Nos Domínios de Minerva:
- «Vestiam chambres brancos, talhados em quartos, ornamentados à altura dos peitos com uma rendinha quási gomada, a contorná-los, e muitos deles, nesses quartos que lhes subiam até ao pescoço, formando uma pequena gola de lindo enfeite, tinham umas pregas para maior realce ou fantasia. As mangas fofas, apertadas nos pulsos, terminavam por uns punhos largos e rendados, vindo esses chambres a meter-se, à altura da cinta, debaixo das saias.
Estas eram sempre de pano preto lustroso, rodadas, até à altura do artelho, tendo a maior parte dessas saias uma barra larga de veludo e debruadas em toda a roda com uma fitinha de lã.
Usavam então os saiotes encarnados, de pano próprio para ajudar a fazer o rodado das saias de fora.
As meias, confecionadas por elas, eram brancas, de interessantes rendados.
O avental, descaindo até aos joelhos, era um adorno interessante pelas fantasias delicadas, que quebravas a monotonia das saias negras.
A chinelinha, a brincar-lhes no peito do pé, a desprender-se com o andar cadenciado, saltitante, de gáspeas de verniz, formando bico, tinha arte nos pospontos ou no debruado, em arrebiques e bordados semelhando rendas de bilros.
Op. cit., pg. 579
Por último, o xaile, de várias cores, liso, ou de ramos e cercadura vistosa, franjado, tomava aspetos, sobre o busto, no contorno das formas, duma graciosa e caprichosa escultura saída das mãos de artista portentoso. Vinha prender-se ao alto no ombro esquerdo, num delicado nó, para deixar livres os braços, como asas soltas para os espaços infindos...».
Op. cit., pg. 570
Sá, O. 1942. A Tricana no Folclore Coimbrão. In: O Instituto, vol. 101, pg. 361-632. Coimbra, Imprensa da Universidade. Acedido em: Acedido em: http://webopac.sib.uc.pt/search~S17*por?/tinstituto/tinstituto/1,291,309,E/l856~b1594067&FF=tinstituto&1,1,,1,0
E também os futricas: os livreiros … os funcionários, os alfaiates … os comerciantes … os tipógrafos, os penhoristas … as serventes, as figuras típicas, desde o negociante pretensioso ao vagabundo castiço, e estou-me a lembrar do Merzendó, do Rabino, do Pitonó, do Newton, assim chamado porque sabia de cor o binómio do célebre cientista, do Cobra Ladrão, do Jinó e do Horta, que uma noite estava estendido como morto junto a uma tasca, e que quando um estudante condoído lhe perguntou se estava a sentir-se mal, a resposta veio rápida – qualquer coisa como isto:
“ – Não senhor doutor. Estou à espera que venha a polícia para me levar às costas, porque estou muito cansado para ir a pé.”
E os litógrafos, que faziam as úteis e odiadas sebentas, como o cego Pacheco ou o Manuel das Barbas, a quem em vida fizeram o famoso epitáfio:
‘Aqui jaz Manuel; descansa!
Trabalho muito, e bebeu …
Litografava as sebentas
Mas foi feliz: - nunca as leu!’
Sebentas que, à noite, eram distribuídas de porta em porta, pela célebre Maria Marrafa, figura central do Centenário da Sebenta, de parceria com o “Almirante Rato” … que fazia umas caldeiradas maravilhosas.
E já se vê, as tascas, como a da Ana dos Ossos ou a da Tia Camela, que pontificava, e que durante o curso de Trindade Coelho foi por Deus chamada para o céu, para continuar ali a cozinhar o seu delicioso peixe frito, que regalara durante anos sucessivas gerações de académicos.
E quando, depois das aulas, os quintanistas iam para a Baixa com as suas fitas para as mostrar, “… das janelas, lindas donzelas, atrás dos vidros, a suspirar”.
E é claro, as fogueiras, com a lendária ligação do estudante e da tricana, em que o calor das cantigas e da música provocava, quantas vezes, as tradicionais desavenças, mais ou menos violentas, entre os “filhotes” e os “sacas de carvão”.
… o autor do ‘In Illo Tempore’ soube relatar, como pouco, a sua vivência, dar-nos um testemunho vivo, alegre e vibrante dos acontecimentos, das pessoas e das situações. E transporta-nos, nas asas da imaginação às ruas de Coimbra, às récitas e às fogueiras, ao tédio das aulas e à alegria das festas. E sentimo-nos figurantes do livro, vestidos com a pele dos seus personagens, vendo e ouvindo com os nossos olhos e os nossos ouvidos as preleções monocórdicas dos mestres, o ruido das latas nas pedras das ingremes ruas da cidade, as piadas chistosas, a voz dos mandadores das fogueiras, o colorido das fitas, os harmoniosos cânticos e os maneios das tricanas.
E sentimos os encontrões nos tumultos, as vozes altissonantes das assembleias, o fragor das festas académicas, o grito estridente dos gaiteiros e o som ensurdecedor dos bombos zurzidos sem piedade.
Andrade, C.S. 2003. O ‘In Illo Tempore’ de Trindade Coelho. In Centenário da Publicação do ‘In Illo Tempore’ deTrindade Coelho. Coimbra, Câmara Municipal de Coimbra. Pg. 34 a 36
Trindade Coelho tinha todos os ingredientes para escrever o se livro, fazendo jus ao subtítulo: ‘Estudantes, Lentes e Futricas’.
Os primeiros, os colegas, como não podia deixar de ser: as suas aventuras e desventuras, a que acrescenta, aqui e além, episódios de gerações anteriores que andavam na memória de todos, de João de Deus ou João Penha, de Guerra Junqueiro ou Gonçalves Crespo. E, numa galeria cheia de cor, passam a vida das repúblicas, os “ursos” e os “flautistas”, as praxes, as tertúlias dos cafés, o “Lusitano” e o “anda a Roda”, as ceias, as inflamadas assembleias, os despiques literários, os habituais conflitos com a polícia e as autoridades, as festas das latas, as récitas, o Orfeon Académico, de João Arroio, fundado no seu tempo, aquando das celebrações do centenário camoniano. E será aqui de recordar a risada que acompanhou as palavras que aquele dirigiu a Trindade Coelho, comentando as suas “aptidões” orfeónicas: “- É que você e o porco … só têm três notas”.
E os lentes, claro. E na galeria passa agora o “velho” Pereira Jardim, que na sua juventude aproveitava os intervalos do seu ofício de tanoeiro para estudar e que chegou a catedrático; o Padre Pita, em cujas aulas se jogava a “santa lotaria”; Lopes Praça ou Avelino Calisto, que se passeava a cavalo pelas ruas de Coimbra fardado de granadeiro; Bernardo de Albuquerque, com os seus grandes bigodes, que foram imortalizados em verso:
‘Não haverá por aí quem merque
(Gritava um homem na feira)
Vassouras da bigodeira
Do Bernardo de Albuquerque?’
E Sanches da Gama, figura avantajada que fazia jus à sua fama e proveito de apreciador da boa mesa; Pedro Monteiro, de seu nome completo Pedro Monteiro de Azevedo Castelo Branco, tão célebre como a quadra que o retratou:
‘Se vires um homem de pernas muito altas
Olhos em guerra e cara de mau
Prostrai-vos por terra, beijai-lhe as sandálias.
É Pedro Penedo da Rocha Calhau.’
E tantos outros, como Assis Teixeira, que mais tarde o Pad’Zé imortalizaria … E Chaves e Castro … Cronómetro vivo, o “praxista-mor” rigoroso no cumprimento dos regulamentos universitários, e que também não escapou à veia poética de um aluno, inspirado pela figura de Minerva que, lá no alto, estava colocada sobre o professor:
‘Minerva, faz-nos a esmola,
Se o pai dos deuses consente.
Deixa cair essa bola
Sobre a cabeça do lente’
… E assim se ia quebrando a monotonia das aulas sempre iguais, com os expedientes das “farpas” e das “dispensas” … Quanto ao que o mestre debitava, lá estava o aluno “sebenteiro” que se encarregava de coligir diariamente a lição …
Andrade, C.S. 2003. O ‘In Illo Tempore’ de Trindade Coelho. In Centenário da Publicação do ‘In Illo Tempore’ deTrindade Coelho. Coimbra, Câmara Municipal de Coimbra. Pg. 32 a 34
A bibliografia coimbrã de memórias académicas é hoje bastante vasta. Ao longo dos anos, vários artigos estudantes, quando o cabelo começa a branquear e as saudades a estarem mais presentes, deixaram-nos o seu depoimento em letra de forma. Mas entre os vários livros publicados - de tão desigual merecimento, diga-se de passagem – o ‘In Illo Tempore’ ocupa um lugar com um relevo muito especial, sendo ainda hoje uma das obras mais representativas da vida académica coimbrã.
Quais as razões desse facto? Julgo que, para o êxito do livro, que logo no ano da publicação teve duas edições, muito contribuiu a colaboração de António Augusto Gonçalves com os seus desenhos que, infelizmente, não acompanharam as edições posteriores.
…
O livro seria editado … por Júlio Monteiro Aillaud, ele próprio natural de Coimbra, descendente de uma família de livreiros … Aillaud não deixou de pôr a sua marca no cólofon da obra que, apesar de impressa em Paris, era tão coimbrã:
“Este livro com desenhos originais de António Augusto Gonçalves e photografias coligidas em Coimbra por Antonio Luiz Teixeira Machado e Adriano Marques acabou de imprimir em Paris nas oficinas do editor Julio Monteiro Aillaud, natural de Coimbra, aos 27 dias do mês de Abril de MDCCCCII”.
… Trindade Coelho não se limitou a pôr no papel as suas recordações coimbrãs, recorrendo apenas às suas memórias. Ao longo da obra insere documentos que, certamente durante a sua vida académica foi recolhendo, copiando, quer se tratasse de folhetos, programas ou poemas que, de mão em mão, circulavam pelas aulas ou pelos locais frequentados pela Academia. E valoriza-os, anotando cada nome, referindo pos seus autores, explicando o seu significado, um trabalho que é precioso para o seu melhor conhecimento e as circunstâncias em que foram feitos e que, de outra forma, seriam hoje desconhecidas ou ininteligíveis. E todos esses elementos complementam as suas histórias, as figuras que retrata, os episódios que descreve. Com uma vivência estudantil muito participativa, movimentando-se no meio académico mas também com à-vontade na vida citadina, relacionando-se com as personagens da urbe de diversos quadrantes.
Andrade, C.S. 2003. O ‘In Illo Tempore’ de Trindade Coelho. In Centenário da Publicação do ‘In Illo Tempore’ deTrindade Coelho. Coimbra, Câmara Municipal de Coimbra. Pg. 31 e 32
Tags: Coimbra séc. XX, In Illo Tempore, Trindade Coelho, António Augusto Gonçalves, Júlio Monteiro Aillaud, António Luiz Teixeira Machado, Adriano Marques, Vida académica
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