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Vejamos o tradicionalismo das Fogueiras de S. João.
….. A. A. Gonçalves, na publicação literária, «O Zephyro, n.° 2», Coimbra, 29 de Fevereiro de 1872, sob o titulo «Fonte do Castanheiro».
«O movimento do rapazio, animados pela folgança da sua rua, começava ao pôr do sol. E as raparigas, de roupagens alvas e o tentador lenço branco a comprimir-lhes o seio e a abraçar-lhes a cintura, afinavam a voz pela afinação da viola e ansiavam pela noite.
«O esguio pinheiro lá se ostentava com o pé cercado de lenha. Arcos e grinaldas de folhagens e flores enfeitavam o largo, e as bandeiras variadamente coloridas tremulavam altas.
«E o estalar dos foguetes, anunciando festa, convidava para a reunião, e incitava à vertigem festiva do bailado.
«Aglomeravam-se em massa, eles e elas, em torno da pira; estalavam as fagulhas; redemoinhavam línguas de fogo; redobravam as gargalhadas; todos falavam; ninguém se entendia; moviam-se em redor com lentidão; retiniam violas e cavaquinhos; batiam as palmas; - «Ande roda» - gritava uma voz imperiosa e reforçada.
Op. cit., pg.584
«Estava começada a dança !... «Agora é vê-las travessas, ruborizadas, ofegantes, mas teimosas e incansáveis naquele lidar frenético!
Op. cit., pg. 582
E ouvia-se então, constantemente, a voz de um «marmanjão», marcando, corno se fosse um besouro, as voltas e reviravoltas:
- E virou!
- E vá de volta!
- E lá vai uma!
- Chegadinhos!
- Ainda outra!
- E vá mais. outra!
Assim até pela manhã!
Op. cit., pg. 594
Op.cit., pg. 589
Pela manhã roda forte e de braço dado para a «Fonte do Castanheiro», um arrabalde, onde as fogueiras todas .se juntavam!»
Op. cit., pg. 586
A tradição mandava a visita à Fonte do Castanheiro, ali para os lados da Estrada da Beira, e nessa fonte murmurante, recanto gracioso dessa paisagem de maravilha que é a encosta da Lomba da Arregaça, terminavam os folguedos os ranchos já quando as estrelas se recolhiam, braço dado os pares, corações em uníssono sentir, cantando alegremente a marcha:
Vamos seguindo,
Tocando no pandeiro...
Vamos beber água
À Fonte do Castanheiro.
Ou então:
Está-nos chamando
Cupido brejeiro...
Cantar e dançar
Na Fonte do Castanheiro.
Sá, O. 1942. A Tricana no Folclore Coimbrão. In: O Instituto, vol. 101, pg. 361-632. Coimbra, Imprensa da Universidade. Acedido em: Acedido em: http://webopac.sib.uc.pt/search~S17*por?/tinstituto/tinstituto/1,291,309,E/l856~b1594067&FF=tinstituto&1,1,,1,0
Foi com esta maneira de trajar que as Tricanas se apresentavam nas tradicionais fogueiras do Romal, da rua do Borralho, de Santa Clara e da Arregaça. Esse modelo foi aproveitado em pinturas, telas e cartões, e aberto na pedra por muitos artistas.
Há também o trajo referido no livro - «Cartas duma tricana» - do distinto advogado e escritor, Herlander Ribeiro, referente ao período de 1903 a 1908, assim descrito: - «saias pretas de barras de seda, meias de algodão em branco, chinela de verniz, blusas brancas e cor de rosa, de setineta, na cabeça lenços de tonalidades berrantes».
Ainda o sr. Dr. Vergílio Correia, em «Coimbra e arredores», 1939, … refere a Tricana nestes termos: «Terra de estudantes e tricanas costumam chamar a Coimbra. Se os estudantes persistem, as tricanas citadinas não aparecem senão em reconstituições literárias ou em festivais. A mulher da cidade veste-se atualmente segundo as modas correntes na classe a que pertence; mas cobrindo o busto airoso como xaile fino, e diademando a cabeça com a coifa negra, ou a mantilha, sabe distinguir-se entre todas pela elegância comedida das atitudes. A mulher dos arrabaldes conserva as suas saias de pregas, rodadas, os corpetes justos, o xaile traçado sobre o ombro, o lenço caído, elementos valorizadores da sua mobilidade desperta e da graça rítmica de movimentos, acorde com a paisagem e planura.
Op. cit., pg, 578
Assim, é que Mestre Quim Martins, o notável arqueólogo, crítico de arte e saudoso jornalista, já encontra a Tricana em Sexta-feira de Paixão:
- «O lenço de seda, branco enrolar de lírio, cai sobre o xaile preto retesado nos ombros delgados, puxados para diante, sobre o peito fraco, como duas asas. Adiante do cruzamento do chale cai a finura da sua mão talhada em mármore, branca como a cera, afilada como uma pétala de flor».
Rafael Salinas Calado, no seu livro - «Memórias de um estudante de Direito», no capítulo «Tricanas», indicando que ninguém definiu, com mais admiração, a donzela pobre de Coimbra que o «Quim Martins», escreve:
«Esguia, formas graciosas, estilizada, pé pequenino, de tamanquinha ou sapato de verniz, artelho fino, a saia caindo em pregas airosas, o xaile de merino cingido aos ombros delicados e ao corpo de sonho, o lencinho de seda preto deixando ver o seu rosto de delicado contorno de bandós negros, olhos grandes sonhadores e espirituosos, narizinho às vezes arrebitado, boca de maravilha sobrepujada da «ligeira penugem do pêssego a amadurecer», era, assim, a tricana de Coimbra».
Op. cit, og, 611
A forma de vestir que se encontra apontada no capítulo desse livro, revela a progressão do trajo das moças desta cidade.
Ao lenço de ramagem substitui-se o de seda e por último a mantilha.
Rocha Madail, bibliógrafo e publicista muito ilustre, no precioso livro «Alguns aspetos do trajo popular na Beira-Litoral», descreve também a Tricana, e transcreve do etnógrafo Luís Chaves estes belos períodos: «A Tricana é a mulher dos campos e baixas do Mondego inferior;
Op. cit., pg, 600
o seu tipo taful concentra-se em Coimbra, a cidade santa de todo o ribeirinho mondeguenho. Está afeita a todos os trabalhos dos campos, pelos arrozais, nas hortas, onde trabalha corno um homem a par dos homens, ora cavando, ora ceifando, ora tirando com movimentos rítmicos a água dos poços baixos com os engenhos primitivos de pau, que surgem de todos os lados, no meio das terras rasas, um aqui, dois acolá, como pernaltas de bico em riste, à espera do peixe que passe...
«Galantes, rápidas, saia curta, amarrada às coxas pela cinta que as enleia com arregaçá-las; camisota leve, de mangas a descobrir-lhes os braços, torneados pelo trabalho; o lenço na cabeça arrochado em nó sobre a nuca ou sobre o cocuruto, arrecadas pendentes das orelhas, elas tudo correm, em toda a parte as vemos; os pés, espalmados, quase não tocam no chão; cantam e riem; sobre o ombro traçam o chale que cruza o peito e a custo cobre as costas, deixando-lhes livres os braços no ritmo da marcha.
Op. cit., pg. 614
Em Coimbra enchem as margens dos rios, metidas na água como ninfas do Mondego.
Sá, O. 1942. A Tricana no Folclore Coimbrão. In: O Instituto, vol. 101, pg. 361-632. Coimbra, Imprensa da Universidade. Acedido em: Acedido em: http://webopac.sib.uc.pt/search~S17*por?/tinstituto/tinstituto/1,291,309,E/l856~b1594067&FF=tinstituto&1,1,,1,0
Parece ter andado confundida durante muito tempo a designação de Tricana, isto é, o mesmo título deve ter cabido à mulher do povo de Coimbra e à dos seus arredores.
No «Álbum de costumes portugueses», edição de David Corazzi, vem entre os cinquenta cromos, cópias de aguarelas originais, uma camponesa dos arredores de Coimbra, lindo trabalho do grande artista Manuel de Macedo, acompanhado dum artigo do notável escritor Manuel Pinheiro Chagas.
Op. cit., pg. 574
A confusão é manifesta, ou ter-se-á de aceitar que o trajo era por então igual nas mulheres do povo – citadinas e arrabaldinas.
A saia, o avental, o traçado do xaile, o atar do lenço é, por assim dizer, o que veio até nossos dias.
Na descrição de Pinheiro Chagas, às mulheres dos arredores de Coimbra chama-se Tricana, não distinguindo a situação ostentosa daquelas que habitavam na cidade...
… Fica averiguado o caso das mulheres da cidade terem usado o trajo descrito pelo autor [Borges de Figueiredo] da «Coimbra Antiga e Moderna», ou seja o capote e lenço, e as outras, de mais elevada categoria, mantilha e mais ademanes que referi.
Ainda é dos nossos tempos o final deste trajo em mulheres do povo.
Op. cit., pg. 566
…. Parece, pois, que o trajo das raparigas da cidade, vindo até nossos dias, se afastou daquele modelo para tomar o aspeto do usado pelas mulheres dos nossos arredores. Pelo menos o figurino é tão aproximado que o próprio historiador Manuel Pinheiro Chagas, na interpretação da aguarela de Manuel de Macedo, junta-as num só epíteto — Tricanas.
Ora esse trajo, o vestir das nossas Tricanas, vindo às ruas e às Fogueiras de S. João, nesta roda de mais de meio século, é o que se considera dentro da tradição popular.
…. Está consagrado pelos literatos, poetas e prosadores, é o lindo modelo de muitos trabalhos dos nossos Artistas.
Op. cit., pg. 620
Comecemos por Manuel da Silva Gaio, conimbricense insigne, poeta e prosador de admirável sentido, verdadeiro Mestre na nossa literatura, espírito de requintada delicadeza:
«Ninguém como ela traja
A gôsto do namorado;
Lenço de pontas atraz,
Chalinho de sobraçado,
Chinela curta, a fugir,
Embora o pé seja leve
E pequenino de ver
Na meia branca de neve;
Corpete todo a estalar,
Saia subida e ligeira,
Aventalinho tamanho
Como Rilha de figueira...»
Não é possível melhor descritivo, em verso, do trajo das nossas tricanas.
Depois vem o consagrado Trindade Coelho, no seu livro sempre novo, «In illo tempore»:
«Sua chinelinha de biqueira, em que só lhe cabe metade do pé; sua meia branca, ou às riscas, muito esticada; saia de chita, das cores mais claras, deixando ver os tornozelos e acima dos tornozelos duas polegadas de perna; aquele aventalinho muito pequenino, que é mais um chic do que outra coisa; o chambre de chita clara, aberto no peito em decote quadrado; e então o xaile de barras, ou a capoteira, passando por debaixo do braço direito e lançado (com elegância que se não descreve, mas que os estudantes copiaram para as suas capas) por cima do ombro esquerdo! »..
A descrição do trajo da Tricana em Trindade Coelho é perfeita, dando-nos em pormenores a forma como se vestiam na época em que foi escolar de leis na nossa Universidade.
Também me permiti a descrição do trajo da Tricana para uma das minhas crónicas de «O Primeiro de Janeiro», depois reproduzida no meu livro - Nos Domínios de Minerva:
- «Vestiam chambres brancos, talhados em quartos, ornamentados à altura dos peitos com uma rendinha quási gomada, a contorná-los, e muitos deles, nesses quartos que lhes subiam até ao pescoço, formando uma pequena gola de lindo enfeite, tinham umas pregas para maior realce ou fantasia. As mangas fofas, apertadas nos pulsos, terminavam por uns punhos largos e rendados, vindo esses chambres a meter-se, à altura da cinta, debaixo das saias.
Estas eram sempre de pano preto lustroso, rodadas, até à altura do artelho, tendo a maior parte dessas saias uma barra larga de veludo e debruadas em toda a roda com uma fitinha de lã.
Usavam então os saiotes encarnados, de pano próprio para ajudar a fazer o rodado das saias de fora.
As meias, confecionadas por elas, eram brancas, de interessantes rendados.
O avental, descaindo até aos joelhos, era um adorno interessante pelas fantasias delicadas, que quebravas a monotonia das saias negras.
A chinelinha, a brincar-lhes no peito do pé, a desprender-se com o andar cadenciado, saltitante, de gáspeas de verniz, formando bico, tinha arte nos pospontos ou no debruado, em arrebiques e bordados semelhando rendas de bilros.
Op. cit., pg. 579
Por último, o xaile, de várias cores, liso, ou de ramos e cercadura vistosa, franjado, tomava aspetos, sobre o busto, no contorno das formas, duma graciosa e caprichosa escultura saída das mãos de artista portentoso. Vinha prender-se ao alto no ombro esquerdo, num delicado nó, para deixar livres os braços, como asas soltas para os espaços infindos...».
Op. cit., pg. 570
Sá, O. 1942. A Tricana no Folclore Coimbrão. In: O Instituto, vol. 101, pg. 361-632. Coimbra, Imprensa da Universidade. Acedido em: Acedido em: http://webopac.sib.uc.pt/search~S17*por?/tinstituto/tinstituto/1,291,309,E/l856~b1594067&FF=tinstituto&1,1,,1,0
Ficou a dever-se a Octaviano de Sá, um historiador de Coimbra, uma visão da tricana na vivência coimbrã bem diferente daquela que nos é dada por A Soares na “Illustração Portugueza” e que temos vindo a publicar.
O artigo A Tricana no Folclore Coimbrão, inicialmente publicado em O Instituto, edição de 1942, deu lugar, ainda no mesmo ano e por iniciativa da Comissão Municipal de Turismo, a uma separata.
Estamos perante um trabalho de investigação histórica, em que o autor faz uma recolha e uma análise profunda do tema, despido de opiniões que as não decorrentes da investigação realizada.
Imagem acedida em http://www.livro-antigo.com/autor/sa-octaviano/
Desse texto aguçamos o interesse dos nossos leitores, através dos seguintes trechos do mesmo.
«A Tricana», figura característica para o chamado «panorama coimbrão»; as cantigas os versos de inspiração vindos às suas gargantas • de oiro; e o bailar, inquieto, vivo e gracioso, interpretativo das canções próprias dos folguedos sãojoaninos.
Daqui resulta, naturalmente, um aspeto próprio, a caracterizar um povo ou um sector duma região.
Tricana de Coimbra. Imagem não identificada
A figura singular da Tricana e os seus cantares são, pois, tema agradável e impressionante, para o qual procuro certa largueza sem a pretensão de esgotar um assunto de si dilatadamente vasto, mas simples contributo, por sinal de mera curiosidade, uma expressão bem admirável, bem distinta, desse ambiente popular.
Procuro fixar como seu determinante aqueles pontos que constituem alguns fundamentos do «folclore». Na definição de Saintyves, no seu magnífico livro «Manual de Folclore», este «é a ciência da tradição popular».
Será, pois, baseado nessa tradição e nos muitos depoimentos daqueles que se lhe referiram, que vão ser tratados os seguintes aspetos do folclore coimbrão ligados com a etnografia e a canção popular:
- O trajo das Tricanas.
- As Fogueiras de S. João.
Como subsídios para tais factos, indicarei algumas produções literárias, prosa e verso, de inspiração dessas moças, e trabalhos artísticos onde se admira o vestuário das Tricanas, o modelo maravilhoso que tem sido para pintores e escultores.
As Fogueiras de S. João são também o melhor e mais completo e sempre admirado aspeto da tradição popular desta terra.
Assim orientado este programa, começarei por apreciar a indumentária da nossa Tricana.
Borges de Figueiredo, no livro - «Coimbra antiga e moderna» - dá-nos uma impressão do trajo feminino nesta cidade pelas alturas de 1858 para 1859.
Usavam então mantilha as mulheres da classe média, com este feitio, no seu dizer: — «Cumpunha-se duma tira de papelão grosso arqueada e convenientemente coberta de fazenda preta, colocada sôbre a cabeça e segura sob o queixo por fitas, caía o pano preto exterior pelas costas e peito a modo de manteo».
Por essa época havia, no entanto, outro trajo mais do povo, porque este era das damas do high-life — quem não trajava mantilha, tinha de pôr o capote de cabeção e o lenço de cambraia muito branco e muito gomado. O bico formado atrás da cabeça pelo lenço era a perfeita antítese do bico da mantilha.
O professor e arqueólogo ilustre sr. dr. Vergílio Correia, em quatro artigos - «Sôbre o trajo regional» - no «Diário de Coimbra», trata o caso com admirável ciência e conhecimento.
…. Comenta tão erudito Mestre - «Que diferença entre a mulher, do campo e da cidade, de mantilha e tricana, e a tricana do século XIX!».
E na sua opinião - «Indubitavelmente mais graciosa, esta última, o exemplo pode servir para mostrar que a evolução do trajo popular se tem feito, em geral, no sentido da perfeição e da simplificação».
Sá, O. 1942. A Tricana no Folclore Coimbrão. In: O Instituto, vol. 101, pg. 361-632. Coimbra, Imprensa da Universidade. Acedido em: http://webopac.sib.uc.pt/search~S17*por?/tinstituto/tinstituto/1,291,309,E/l856~b1594067&FF=tinstituto&1,1,,1,0
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