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Última entrada sobre o texto de Joaquim Martins de Carvalho, reacionado com os desacatos acontecidos no Carnaval de 1854.
Os acontecimentos do entrudo tinham dado lugar a processos, de que resultara serem alguns estudantes riscados da universidade, e pronunciados diferentes outros indivíduos. O governo, porém, concedeu uma amnistia a todos os que se achavam envolvidos nestas ocorrências; e além disso mandou abonar aos estudantes que estavam em Tomar os meios de que carecessem para se transportarem ou para Coimbra, ou para as terras da sua naturalidade.
Tendo voltado os académicos para Coimbra, havia da parte deles, em resultado das rixas do entrudo, uma grande irritação contra os habitantes da cidade. Por causa disso, trataram alguns académicos de fundar uma sociedade secreta, a que deram o nome de Liga Académica, que tinha por fim o mútuo auxílio dos sócios, a independência da academia, e o afastamento de todas as relações com os habitantes de Coimbra. Chegou até a haver o projeto de fazer vir de fora da cidade por conta dos sócios os objetos de consumo, o que, porém, não levaram a efeito. Esta sociedade secreta tinha uma organização quase semelhante á Carbonária.
As iniciações eram feitas numa casa da rua dos Militares, onde habitavam alguns estudantes ilhéus. As sessões eram celebradas ao ar livre; e algumas delas se fizeram de noite no Penedo da Saudade.
Rua dos Militares, localização
Colégio dos Militares, já adaptado a hospital, que deu nome à rua
Penedo da Saudade
O presidente da Liga Académica era o estudante do 4.º ano de direito, Manuel Joaquim da Fonseca. Esta sociedade secreta compunha-se de 120 sócios, divididos em turmas de 10. Em cada 10 havia um decurião, que os governava; e a todos superintendia um conselho. No poder dos membros do conselho estava a cifra da correspondência. Era a conhecida vulgarmente pelo nome de cifra de Napoleão, mas um pouco mais simplificada.
A chave da correspondência era «Fé viva”; a palavra de reconhecimento era «Sym-pa-thi-a»; e a de socorro «A mim, filhos de Minerva!»
Da Liga Académica ê que saíam as numerosas correspondências, que por essa época apareciam publicadas em diferentes jornais do reino, em que se tratava de justificar o procedimento dos estudantes nas ocorrências do entrudo, e se acusavam várias pessoas estranhas à academia. Os estudantes encarregados de escrever as correspondências eram os srs. Luiz António Nogueira, Duarte Gustavo Nogueira Soares, Francisco Joaquim de Sá Camelo Lampreia, e outros. Este trabalho era dividido por turno; e da mesma forma se fazia uma ronda noturna que pelas ruas da cidade tinham disfarçadamente os membros da Liga Académica, a fim de evitar que houvesse conflitos entre algum académico mais apaixonado e os habitantes da cidade.
Duarte Gustavo Nogueira Soares. In: “O Ocidente” de 1886.07.11
Esta sociedade secreta teve pouca duração. Como havia sido fundada por motivo de uma contenda com muitos habitantes de Coimbra, e se foi de parte a parte desvanecendo a inimizade, voltando por fim tudo ao estado normal, deixou por isso de ter razão de ser. Quando os estudantes vieram frequentar os estudos em outubro do mesmo ano de 1854, tinha a Liga Académica por si mesmo acabado, não se tornando mais a reunir.
Carvalho, J. M. Graves conflitos em Coimbra pelo entrudo de 1854. In: Apontamentos para a História Contemporânea, 1868: Coimbra, Imprensa da Universidade, pp. 241-248. Acedido em: https://drive.google.com/file/d/1v-_FRydFPXvB6h6mwq3J2w75ylFmkMsd/view?fbclid=IwAR3I0Zqi_2y3soFLcZe6r5fLsX-Q2qn4McLYJbRj10EtL39pkTqs53l7Oys
Na continuação da entrada anterior, importa assinalar que, na época, a deslocação de parte da Academia até Tomar foi referida por “Tomarada” ou por “Entrudada”.
No texto que, como já se especificou, é da autoria de Joaquim Martins de Carvalho, um profundo conhecedor de Coimbra e do seu passado, surge a referência às “Escadas de Santa Cruz”, designação toponímica que eu, bem como outros apaixonados pela história da Cidade, desconhecíamos,
O restante trajeto percorrido pelos académicos não levanta grandes dúvidas e passaria por descer a Couraça dos Apóstolos, a atual Rua do Colégio Novo e no cimo da antiga Rua das Figueirinhas, agora “batizada” de Rua Martins de Carvalho, descer para Sansão.
O problema coloca-se neste local, pois talvez os jovens pudessem descer umas escadas do Mosteiro crúzio que iam desembocar na sua horta e eram utilizadas polos cónegos regrantes para, por uma passagem secreta de que ainda restam alguns vestígios, se deslocarem até ao Colégio de S. Agostinho.
Avento a hipótese de serem estas as referidas “Escadas de Santa Cruz”, e lanço o desafio a outros conhecedores da cidade para se pronunciarem sobre esta possibilidade.
O itinerário referido, desde que, na época, fosse possível utilizar as alegadas “Escadas”, permitiria aos dois grupos de estudantes em confronto entrarem, simultaneamente, em Sansão, uns pelo lado Norte e outros pelo lado Sul.
Fica a hipótese e o desafio.
Feito este parêntesis, prosseguimos com o texto que temos vindo a utilizar.
À noite reuniu-se a maior parte da academia no largo da Feira, e aí se espalhou a falsa noticia de que os habitantes do bairro baixo da cidade tratavam de se armar para os ir atacar no bairro alto. Os ânimos, que estavam excitados em virtude dos acontecimentos da tarde, mais se exasperaram com tal boato.
Sé Nova e Largo da Feira. Col. RA
Alguns estudantes menos prudentes, querendo ostentar força, e julgando-se vitoriosos dos acontecimentos da tarde, começaram a incitar os seus condiscípulos para virem ao bairro baixo, e assim mostrar que nenhum medo tinham. Não faltaram conselhos e pedidos para que se não efetuasse semelhante resolução: esses esforços, porém, foram inúteis. Mostrando-se alguns, ainda que poucos, estudantes resolvidos a vir ao bairro baixo, todos os outros os seguiram, uns por espírito de camaradagem, e outros até para evitar as cenas desagradáveis que podiam ocorrer. Desceram em número de perto de 600, parte pelo Arco de Almedina, e outra pelas escadas de Santa Cruz, juntando-se em Sansão.
Largo de Sansão, hoje Praça 8 de Maio. Inicio do séc. XX. Col. RA
Mal constou que os estudantes vinham ao bairro baixo, receou-se que se repetissem os excessos da tarde; e por isso resolveram-se alguns indivíduos, no caso de ser preciso, a repelir a força com a força. Ao mesmo tempo dizia-se, posto que infundadamente, que os estudantes queriam incendiar a cidade; e por isso quando eles desciam a rua do Cego para a praça, foram recebidos por algumas descargas, que lhes atiraram da esquina próxima da igreja de S. Bartolomeu, de que resultou ficarem alguns estudantes feridos, e corresponderem estes também com alguns tiros.
Reconhecendo a imprudência do passo que tinham dado, retiraram-se os estudantes para o bairro alto, dirigindo-se uma parte deles pela Portagem, onde a guarda lhes não consentiu que passassem para a Couraça de Lisboa, senão a dois de fundo. Assim o fizeram, terminando por essa noite os tumultos.
Na quarta feira de cinza correram boatos de que nesse dia haveria ainda maiores desordens. Em lugar, porém, dos sinistros acontecimentos que se receavam, tomaram muitos académicos a resolução de sair da cidade, dirigindo-se para Lisboa.
Os académicos participaram esta deliberação ao seu prelado, o qual não pôde fazê-los mudar de parecer; e por isso resolveu em conselho de decanos não mandar tocar o sino para as aulas, esperando ainda que se acalmasse tal estado de irritação.
Chegada a questão a estes termos, foi convocado o claustro pleno para confirmar a deliberação do conselho de decanos; porém, sendo chamado a assistir a ele o sr. governador civil, este instou e fez tomar a decisão de que houvesse aulas no dia seguinte e continuasse aberta a universidade.
Na quinta feira de madrugada, 2 de março, mais de 200 académicos se reuniram no largo da Feira, e dali marcharam para Lisboa, a fim de representar contra os habitantes de Coimbra.
Em cumprimento da resolução do claustro pleno, abriram-se as aulas, e os professores foram para as suas cadeiras; mas raros alunos compareceram, havendo classes em que faltaram totalmente os discípulos.
Os académicos que tinham saído de Coimbra caminharam a pé até Tomar. Aí os veio encontrar o sr. Roussado Gorjão, encarregado pelo presidente do conselho, duque de Saldanha, e pelo ministro do reino, Rodrigo da Fonseca Magalhães, de os persuadir a voltar para Coimbra. Os académicos acederam ás razões que lhes foram expostas, e pela maior parte vieram outra vez para esta cidade.
Pelo ministério do reino foi primeiro concedida aos académicos a faculdade de se apresentarem na universidade até ao dia 25 de março, para continuar as aulas, na certeza de que lhes seriam abonadas as faltas que desde o dia 28 de fevereiro tivessem dado nos exercícios escolares. Depois, em portaria de 17 de março, atendendo a que poderia haver alguns académicos ou muitos deles, que, tendo ido para as terras da sua naturalidade como o governo lhes permitira, ou por quaisquer outros motivos, não pudessem concorrer dentro do tempo prescrito para prosseguir nos seus estudos, á semelhança dos que de Tomar tinham regressado á universidade, foi-lhes prorrogado o prazo para se poderem apresentar até ás ferias da Páscoa.
Carvalho, J. M. Graves conflitos em Coimbra pelo entrudo de 1854. In: Apontamentos para a História Contemporânea, 1868: Coimbra, Imprensa da Universidade, pp. 241-248. Acedido em: https://drive.google.com/file/d/1v-_FRydFPXvB6h6mwq3J2w75ylFmkMsd/view?fbclid=IwAR3I0Zqi_2y3soFLcZe6r5fLsX-Q2qn4McLYJbRj10EtL39pkTqs53l7Oys
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