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E para encerrar a galeria que apresentei sob um aspeto de notas a lápis na carteira de um curioso, resta falar do Norrim e do Almirante Rato.
O Norrim
O Norrim é um curioso tipo de velho, por demais conhecido em Coimbra, uma primorosa cabeça de estudo perdida no enxurro das ruas, quando toda a gente sabe que, sendo um sapateiro aliás bastante habilidoso, jamais precisaria de pedir. No entanto, acha um prazer infinito em dividir o seu tempo entre as tabernas, onde bebe demasiadamente, e as ruas ou cafés onde lamenta a sua sorte, apertando o chapéu de feltro contra o peito e rindo ou chorando ao gosto de quem lhe paga. Para ele o riso e o pranto não traduzem a alegria e a tristeza, são apenas, simples e unicamente, a manifestação do interesse ao serviço de sua majestade o dinheiro…
O Almirante Rato
O Rato é o celebérrimo almirante do Centenário da Sebenta e dos festejos do Enterro do Grau, o barqueiro que, em tardes amenas, anda por perto da ponte de Santa Clara à espreita dos estudantes para lhes dizer numa voz melíflua de velhote amigo: – Vá, senhores Doutores…um passeiozinho até à Lapa. E tantas coisas lhes diz que lá os leva quase sempre de barco, até à Lapa dos Esteios, que é um dos pontos mais pitorescos de Coimbra, não falando no Choupal ou na velha Fonte do Castanheiro, onde se ouve ainda um certo rumor dos beijos que os namorados de outros tempos aí trocavam nas luminosas e tradicionais manhãs de S. João…
Uma tricana de Coimbra (Caricatura)
Eis assim delineada em poucos traços a série funambulesca de tipos grotescamente raros que constituem só' por si um dos aspetos mais originais ela lendária Coimbra cheia ele amores e de mistério, eterna evocadora das notas maviosas daquele fado triste cantado pelo Hilário, em noites de boémia, sob as janelas das tricaninhas.
O Hilário
A valiosíssima coleção de fotografias, que consegue dar um mérito real aos breves apontamentos que constituem o presente artigo, pertence ao distinto, fotógrafo José Gonçalves, que amavelmente a cedeu à Illustração Portugueza.
NOTA DA REDAÇÃO
Monteiro, M. Typos de Coimbra, In Illustração Portugueza, 40, Série II, Lisboa, 1907.01.28.
O Luizinho das Pontas (Cliché de Silva e Sousa)
O Luizinho das pontas! Outro tipo curioso...
Não precisava de pedir porque a família tem alguma coisa e não quer que ele peça, mas de tal forma se acostumou a andar pelas ruas, apanhando pontas de cigarro, que daí lhe veio o hábito de pedir uns dez réis a este e àquele com quem fala. De vez em quando aparece com papeletas para o público subscrever com qualquer quantia para a ajuda de um varino, de um colete ou de umas calças. Dele conheço eu várias partidas, mas a que vou contar, francamente é muito superior a todas elas. Assistia-se ao sarau que uma comissão de académicos realizou no teatro Circo nessa época em que apareceu a ideia da receção dos novatos com festas. Representava-se, nesse momento, uma peça qualquer, feita por um dos vogais da comissão, na qual se simulava um tribunal. Ora o público e as testemunhas que se nos apresentavam no palco eram a malta, a crápula das ruas, esses tipos sebentos e grotescos, ao vivo e o Luizinho que também lá estava, farto, como a plateia, de ouvir o pseudo-advogado a falar, a falar, a falar, levanta -se como um raio, perfila-se e exclama com uma cara das mais curiosas deste mundo, naquela sua voz meio fanhosa e entrecortada: Arre! Que chatice medonha! Eu não sei como o teatro não caiu com a gargalhada forte, retumbante. que se ouviu então! É que o Luizinho naquela sua frase, vinda a propósito, tinha conseguido concretizar a opinião de toda a plateia!... E o mais engraçado foi que o Beb’água quis atirar-se à pancada ao Luizinho! Que quadro! Que cena!
O Beb'Água
O Beb’água, que por sinal bebe vinho e ás vezes o despeja pelas ruas é um distribuidor de prospetos, um magnífico exemplar ele transição, entre o homem e o macaco, sebento, mal alinhavado, todo ele a transpirar sabujice, que, por um defeito qualquer, fala somente por monossílabos. Aí vai uma frase para amostra quando vê um petiz a fumar: ai tu jà fú? Ló di tê pae!... Ainda assim de todos os tipos que conheço é precisamente o Luizinho das pontas o que dá menos sorte…
Um archeiro…que está dois furos acima do estudante e um abaixo de lente (Desenho de Álvaro de Lemos)
E se entrarmos na Universidade, sagrado templo da sabedoria, onde em vez de nos formarmos apenas nos conseguimos deformar...lá vos mostrarei certo archeiro, boa pessoa, que dá sorte por lhe chamarem Estópido desde aquele dia em que se dignou dizer que o archeiro estava dois furos acima de estudante e um abaixo de lente! o que equivale a dizer, neste meio repleto ele prosápia científica, que estava milhões de léguas acima da terra e apenas um palmo abaixo do céu!... Outro archeiro conheço eu, boa pessoa também, (os archeiros são sempre boas pessoas...) que todo se abespinha quando lhe chamam S. Pedra aludindo ás barbas brancas que possui. Na verdade, ele parece-se muito mais com um Cerbéro do que com o meu grande amigo S. Pedro, chaveiro lá de cima, pois que este velho santo vive às portas do céu, que dizem ser o Paraíso, e o outro, o archeiro, pespega-se á porta das aulas, que são um verdadeiro inferno!
Monteiro, M. Typos de Coimbra, In Illustração Portugueza, 40, Série II, Lisboa, 1907.01.28.
E a Marrafa, a Maria, essa bela quarentona, bem fornidinha de carnes, que também foi lembrada no aludido Centenário? Isso é que é uma mulher! Servente de estudantes, portadora de sebentas, lá no intimo amiga dos que usam capa e batina, interessa-se por eles todos e já me constou, não sei se com fundamento, que não raras vezes lhes vale com dinheiro nos momentos críticos, nas suas aflições. De grossos cordões de ouro ao pescoço, sempre sorridente, há quem diga que para um estudante se formar é preciso ter algumas relações com ela. Eu é que não sei se isto é verdade, mas, pelo sim pelo não, como sou estudante… não vá o diabo tecê-las!...
O Hermínio
Mas se por acaso alguns académicos se envergonham de ir pedir-lhe qualquer quantia emprestada, pelo que ela nada leva de juros, aparece-lhes logo o Herminio dos óculos, um rapaz franzino, magistral troca-tintas, que passa a vida inteira a transportar para as casas de penhor ou de prego, usando do calão, tudo quanto os estudantes lhe entregam para empenhar,… ou a trazer dessas casas para a rua grandes pechinchas, como ele diz para intrujar os papalvos, e que afinal não passam de fazenda avariada, duns monos sem extração que os penhoristas lá têm para um canto e dos quais se querem ver livres seja por que preço for…
Quer na Baixa quer na Alta, ele dia ou de noite, a cada passo se encontra uma criatura destas.
O Gaspar Engraxador
O agarotado Gaspar, engraxador, hoje em busca de uma casa para servir, falador dos quintos, que se aperaltava ao domingo para embarrilar certa incauta donzela que o foi surpreender um dia, em plena calçada, a engraxar as botas de um freguês...
O Santos Cego
O Santos cego, vendedor de cautelas, enjeitado, que concluiu o curso dos Liceus em 1868, segundo ele diz, à custa de uma família amiga e cegou nesse mesmo ano. Conhece todas as moedas apalpando-as, bem como os caloiros pelo pano da capa e fala de matemática como se estivesse sentado numa cátedra…
Monteiro, M. Typos de Coimbra, In Illustração Portugueza, 40, Série II, Lisboa, 1907.01.28.
O vendedor de Cristos (Cliché de Joaquim Olavo)
O Homem dos Cristos passeava todas as ruas e becos da cidade sobraçando uma enorme quantidade de Cristos, trabalhados em barro, muito toscos, mas que conseguia vender depois ele os ter lambido todos, de alto a baixo, para provar que não largavam a tinta, que eram fixes como ele dizia. E quantas e quantas vezes nos atirava com o Cristo quase à cara e bradava num misto de raiva e de troça: quem me compra este diabo?!...
Poeta Maximiano Veiga (Cliché de Joaquim Olavo)
Maximiano Veiga, irmão do grande poeta operário Adelino Veiga, era um impagável ratão que se dedicava a compor guarda-sóis e a trabalhar em metal amarelo. Nunca lhe deu na bolha para fazer versos, troçava até do irmão nas
suas horas de bom humor, mas uma vez, como o Adelino Veiga não dispusesse de ocasião para escrever uma poesia que lhe tinha sido pedida pelo António Portugal, mais tarde o tenor Portugal, que fez parte da companhia do teatro da Trindade e foi morrer ao Pará, o Maximiano quis suprir a falta e saiu-se todo ancho com esta versalhada que ainda hoje corre de boca em boca:
Do rio Zêzere o Barão
É cunhado da liberdade;
Os soldados são fenómenos,
São filhos da santidade.
Vou cantar de Mahomerio,
Qu'as trombas do rhinoceronte
Cantigas do Oriente
Nas barbas do despautério,
Nas campas do cemitério
Norbargue de Norbão
Terrónicos do trovão
Famílicos da humanidade
E' um machucho da maldade
Do rio Zêzere o Barão.
…………………………………
…………………………………
?!...
O Pedra do Pifano
Agora mesmo acabo eu de ler que morreu o Pedro do pifano, supondo-se que envenenado pela mulher com quem vivia. Era galego e mudava de nome à medida que as gerações académicas lho trocavam. Para uns foi o Manuel da Sanfona, quando apanhou um par de bofetadas do lente dr. Pedro Penedo por se lhe pôr á porta cantando versos alusivos á sua pessoa, feitos expressamente pelos discípulos. Para outros foi o homem do realejo, por trazer um instrumento que há anos deixou numa tasca de Dameiras empenhado por meio litro de vinho... Agora era o Pedra do pifano, por se fazer acompanhar desse instrumento que tocava por qualquer preço. Como tivesse um grande reportório, o Pedro perfilava-se e perguntava com uma certa pose: – O que quer Vossa Senhoria que eu toque?! O Hymno dos Caloiros... diziam-lhe, por ser uma coisa que não existe... O Hymnodos Caloiros... dos caloiros... dos caloiros... começava ele entoando numa voz cantarolada que vinha a terminar com meia dúzia de sons arrancados desalmadamente do pifano e pronto… eis como executava todas as músicas que lhe pediam... Era um pobre diabo este Manuel Fortunato Lopes, usando do seu verdadeiro nome!
E julgo terminada assim a vasta galeria dos mortos.
– Se, entre eles, nos aparecem tipos interessantes, entre os vivos, que apontarei a largos traços, não os há, decerto, menos curiosos e menos dignos de estudo ...
O Manuel das Barbas (Cliché de Silva e Sousa)
É ver o velho litógrafo de sebentas, o conhecido Manuel das Barbas, que figurou no Centenário da Sebenta, e a quem com uma louvável antecedência fizeram já o epitáfio:
Aqui jaz Manuel das Barbas,
Trabalhou muito e bebeu…
Litografava «sebentas»,
Mas foi feliz…nunca as leu…
Monteiro, M. Typos de Coimbra, In Illustração Portugueza, 40, Série II, Lisboa, 1907.01.28.
O França Rolié
O França Rolier-Catecnemaquilitanas, como ele se dizia, era um cocheiro que estava encarregado de conduzir as malas do correio á estação do caminho de ferro e por tal forma se desempenhou da sua missão que tenho aqui à vista todos os atestados que por várias vezes lhe foram passados pelo diretor dos correios, enchendo-o de louvores. Mesmo no pino do verão, o França andava sempre vestido com quanto fato possuía, acrescentando a isso tudo, no inverno, um capote com certeza maior do que a arca de Noé. Tendo a seu cargo, todos os anos, o segurar o S. Jorge na procissão do «Corpus Christi», fazia nisso imensa gala e apresentava-se impávido aos olhos de toda a gente que via lá ele alto da sua magnanimidade. Chegava a levar a sua autoridade ao ponto de dizer ao comandante da força quando se deviam dar as descargas! Homem robusto, que numa voz grossa, mascando o seu charuto, metia palão de meia noite, depois de ter desempenhado o glorioso papel de lente da faculdade das tretas pelo Centenário da Sebenta, jamais largou a chapa que então mandara fazer para ornamentar o bonnet. Dias depois da sua morte, lembro-me de ter visto o seu perfil em O Cauterio, que dizia pouco mais ou menos isto:
Da Lusa-Atenas o mais popular,
E também, decerto, o mais intrujão:
Na boca sempre um charuto a chupar,
Olhando todos com ar refilão.
Vários empregos tem, duvidosos,
O nosso herói, este velho traquinas;
E se non hay - negócios rendosos
O ... coça d'encontro às esquinas.
É alto bastante, obeso e pançudo,
E só tem esse defeito massudo
De pregar mentiras, blagues e petas.
Que mais direi? É um pobre coitado,
E ele próprio se chama e é chamado,
O Rolié ou o França das Tretas.
Acima de tudo, o França era um homem fiel, muito honrado e não foram poucas as carteiras e os valores importantes que ele encontrou perdidos e fez chegar às mãos dos seus donos. Ouvi dizer que esta palavra Rolié, que adotava como nome, teve a sua origem na porta do Hotel dos caminhos de ferro quando um francês, ao subir para a sua carruagem, pôs nas mãos do corretor urnas moedas de prata para o França que lhe tinha tratado da bagagem, com o roulier (carroceiro). Apanhada esta palavra no ar, ei-la na boca dos garotos para designar o França e daí a resolução que tomou em a adotar como sobrenome…
O Quatorze
Disse eu há pouco que o França era um homem honrado, mas já não direi o mesmo do célebre intrujão que dava pelo nome de Quatorze. Muito alto, magro, ora aparecia de chapéu de abas largas, de grosso bengalão, ora de carapuça, de facha preta à cinta, de calças justas e esguias, a fazer-se amigo íntimo e conhecido velho de quantos bacharéis formados pressentia de visita a Coimbra, sempre importuno, à mira de uns vinténs, capaz de, por dez réis de mel coado, prestar-se a qualquer patifaria. Outras vezes apresentava-se carregando um cesto de verga repleto de ananases, cocos e bananas, que vendia lançando o pregão em voz forte e retumbante: ananás! ananás! coco! coco! Ah, rica bánâna da ilha da Mádéra!...
Monteiro, M. Typos de Coimbra, In Illustração Portugueza, 40, Série II, Lisboa, 1907.01.28.
O Horta
O Horta, esse então, ás vezes pouco amigo da limpeza nos seus feitos e um pouco, para não dizer bastante. desbragado nos seus ditos, não deixava de ser um velho endiabrado cujas partidas tinham alguma coisa de original e de espirituoso.
De lunetas encavaladas quase na ponta do nariz, levado pela necessidade que, segundo ouço dizer, é a mãe de todos os vícios, bebia azeite por pregar a sua peça. Só se não pudesse! Mas para isso, para chegar a essa conclusão de não poder, era preciso que tivesse já esgotado todos os recursos da estratégia, e tal facto seria quase inacreditável! Uma vez, ao entrar numa padaria que havia nesse tempo e parece-me que ainda existe no Arco de Almedina, o Horta, olhando de relance para o forno, deparou com uma caçoila vidrada coberta com um papel, de onde se exalava um cheiro delicioso a certos temperos que lhe haviam de ser muito gratos ao paladar... Desatou a correr para casa á procura de uma caçoila parecida. Encheu-a de pedras, pôs-lhe um papel por cima, tal qual como na outra que vira, e ei-lo que volta à padaria a pedir com muito empenho para lha colocarem também no forno. Prometendo voltar a uma certa hora, algum tempo antes da hora em que sabia que o saboroso pitéu seria retirado, foi dar o seu passeio para passar tempo, até que, voltando novamente ao forno, embarrilou o moço da padaria dizendo-lhe ser a outra caçoila a sua… E pernas para que te quero... Lá foi ele até casa numa correria louca saborear um belo pastelão de carne que o acaso lhe oferecera. E o verdadeiro dono do acepipe ao vir buscar a caçoila apenas a encontrou cheia de pedras ...
Como esta, contam-se dele inúmeras proezas que o fizeram tomar por doido, sendo, dentro em pouco, internado no hospital Conde Ferreira, pois que ninguém o podia suportar.
Regressando, mais tarde, a Coimbra, pouco tempo demorou a reeditar as cenas doutrora e é assim que ele aparece, numa tarde de inverno, em Santa Clara, ao fim da ponte, a meter num bolso das calças certa encomenda que encontrou à beira do caminho.
Ele que o fez é porque alguma coisa ruminava, é porque lá tinha as suas razões para o fazer... Terminada essa operação, limpando as mãos a uns arbustos que ali estavam perto, induziu um rapazito que passava a que fosse dizer ao guarda-barreira que ele, Horta levava contrabando no bolso das calças. E o rapazito lá foi cumprir a sua missão enquanto sua excelência a passo largo, muito sereno, marchava olimpicamente a caminho da cidade.
Mal tinha tempo de pôr o pé fora da ponte quando o guarda se lhe pôs na frente intimando-o com uma voz de trovão:
– Deixe ver o que leva aí.
– Não deixo, diz o Horta, fingindo-se muito comprometido.
– Deixe ver, já lhe disse.
– Não deixo.
– Ah, não deixa?!
E assim estiveram, neste dize tu, direi eu, até que o guarda resolveu levá-lo à presença da autoridade superior. Foi dito e feito.
Como a autoridade não era para festas, com uns modos façanhudos, arrumou-lhe logo esta à queima roupa:
– Mostre já o que leva aí.
– Não mostro, replicou o Horta com teimosia.
– Mostre, mando eu.
– Não mostro.
– Ai, não mostra? Eu já lhe vou dizer se mostra ou não!
E, dizendo isto, enfia-lhe a mão pelo bolso das calças para tirar de lá o contrabando… Faça-se agora uma pequena ideia da cara com que ficou a autoridade e principalmente como ficaram os dedos!... O Horta era um vivo diabo!
Monteiro, M. Typos de Coimbra, In Illustração Portugueza, 40, Série II, Lisboa, 1907.01.28.
O Mercandó
O Mercandó, de cabeleira, um bom ratão, o velho porteiro do palácio dos Grilos, que faz lembrar um pouco o Chitó-ó-Chito, que divertia o público executando palhaçadas nas ruas e que linha também umas barbas esplêndidas e um rosto expressivo.
O Chitó-ó-Chito (Cliché de Rodrigues da Silva)
A Feliciana Pereira, uma velhota revelha, com umas certas pretensões de asseio; tinha sido criada do grande liberal de Ceira Victorio Telles, cuja cabeça se viu, durante algum tempo, espetada num pinheiro, a uma esquina do largo de Sansão, devido ás lutas apaixonadas e renhidas do seu tempo.
A Feliciana Pereira
Talvez por esse motivo liberal ferranha. Não tinha o menor pejo em correr a pau a garotada das ruas que lhe sabia da pecha e, ainda há bem pouco tempo, lhe atormentavam os ouvidos a toda a hora dando vivas ao senhor D. Miguel, o que para ela equivalia à mordedura venenosa e súbita de uma víbora.
Obteriam dela tudo quanto quisessem…, mas nada de ofender os seus
ideais políticos! Credo! Virgem Santíssima! Lá isso não!
A Maria do Gato Negro (Retrato a óleo de Eduardo Macedo)
A Maria do Gato Negro era uma outra velha que viveu em Coimbra e foi um dos tipos mais interessantes da sua época. Já lá vai isto há um bom par de anos! Vivia num casinhoto dentro da torre de Santa Cruz e, como numa noite lhe tivessem morto um lindo gato negro que muito estimava, foi tal a raiva que se apoderou dela que, jurando vingar-se, pelava-se toda por andar altas horas da noite percorrendo as vielas mais imundas á caça dos gatos. Bichinho que ela apanhasse a jeito tanta paulada lhe assentava no lombo que nem a alma se lhe aproveitava!... Os estudantes de então, conhecedores da mania dessa pobre mulher, para se divertirem á sua custa, encomendavam-lhe gatos mortos, que ela de muito bom grado lá ia distribuir pelas repúblicas, a troco de uns míseros vinténs que mal lhe chegavam para não morrer de fome ...
O Senhorinha (Retrato a óleo de Eduardo Macedo)
O Senhorinha, assim chamado pelos seus modos efeminados, era um zelador municipal que ia levar a sua cara metade com quem casara… por amor… a casa dos estudantes, sobraçando sempre o cavaquinho. O amor para ele não valia nada sem um bom acompanhamento...
Monteiro, M. Typos de Coimbra, In Illustração Portugueza, 40, Série II, Lisboa, 1907.01.28.
O Cego da Abrunheira e seu Moço (Desenho de Eduardo Macedo)
A galeria popular coimbrã é vasta, e se nela há vultos de somenos originalidade como lembrando, ao acaso, O Cego da Abrunheira, lugar próximo de Coimbra, que vinha, ás vezes, á cidade em companhia de um moço, ganhar a vida tocando e cantando alguns improvisos, verdadeiros disparates, a quem lhe desse alguma coisa, outros há que merecem um pouco de atenção, como, por exemplo, o Francisquinho Tanana, a Feliciana Pereira, a Maria do Gato Negro e tantos outros que passarei a citar.
O Chiquinho Tanana (Retrato a óleo de Eduardo Macedo)
O célebre Francisquinho Tanana, um velhito magro como um junco, de pele encarquilhada, morava junto ao cemitério, lá no alto do Pio, e passava à tarde para o rio a buscar água num pote de barro que, à volta, trazia à cabeça com muito cuidado. A pobreza do seu vestuário era tão grande que chegava a ser imoral, pois tanto importava esse conjunto de andrajos como nada, o corpo andava quase todo à mostra, e uma vez vi-o eu nesse estado, a gritar como um possesso nuns gritos selvagens e a arrepelar-se todo porque os garotos, além de lhe chamarem Tanana, tinham-lhe feito partir o pote que levava à cabeça e que se desequilibrou ao atirar uma pedra, arma com que se defendia da rapaziada brejeira.
Quando se ouvissem uns gritos agudos, por vezes em falsete, acompanhados de um choro ridiculamente convulso, era certo e sabido que andava por perto o Francisquinho Tanana e toda a gente assomava às portas e ás janelas para ver esse espetáculo miserável da vida das ruas.
O José Maria Mudo
Facto quase idêntico se dava com O Mudo, um calceteiro que a Câmara Municipal tinha admitido ao seu serviço.
Esse não tinha nada com os garotos, só se importava com o pessoal que dirigia, mas, para lhe transmitir as suas ordens, para se fazer compreender, desfazia-se em gestos desesperados e gritos tão agudos que se ouviam com certeza sete léguas em redor. Olhar a fronte cheia de rugas do Francisquinho é trazer à ideia toda uma série de magníficas cabeças de estudo que se encontram nesses mendigos vadios perdidos pelas ruas de Coimbra.
O Rabino
É ver o D. Sebastião, de que já falei, o Rabino, um belo tipo de judeu, de rosto bem vincado, de linhas bem definidas, que vivia de expedientes e tinha o seu dito espirituoso lá de vez em quando.
Monteiro, M. Typos de Coimbra, In Illustração Portugueza, 40, Série II, Lisboa, 1907.01.28.
O António das Almas (Retrato a óleo de Eduardo Macedo)
O António das Almas era um pandego incorrigível, um emérito patusco que sabia arranjar-se menos mal, fundado no grandioso princípio de que não há nada melhor para não morrer á fome e ter dinheiro do que ser amigo de estudantes e captar-lhes as simpatias. Além disso o António não desperdiçou nunca o seu tempo, pois que a par dessa amizade colocava a sua qualidade de pregador, sendo raro o dia em que deixava de pregar um sermão por dá cá aquela palha. O António jamais perdia as ocasiões propícias, inclusive a festa das latas, esse banzé, sabbat infernal, que os estudantes fazem, arrastando latas velhas pelas ruas da cidade mal escurece o dia do encerramento das aulas, do começo das férias do ponto, para não deixarem dormir nem estudar os colegas das outras faculdades que por desgraça vejam as suas aulas encerradas mais tarde.
Pregando em toda a parte e a toda a hora, gostava, no entanto, muito mais de pregar no largo de Sansão, num pilar de pedra que ali havia e ainda se vê atualmente encaixado na parede duma casa que faz esquina com a rua do Corvo e rua da Louça. Chegado aí, no meio do povoléu que lhe servia de séquito, subia ao seu púlpito, persignava-se e rompia sempre nestes termos:
Eu sou o António das Almas. As mulheres são como as cabras que andam pelos outeiros. De Celas nem eles nem elas. E voltava ao princípio... Eu sou o António das Almas…, sendo capaz de estar meia hora assim, na mesma arenga, com tanto que lhe dessem um cigarro, umas calças, um colete servido, que era, em geral, a espécie de moeda que preferia para pagamento dos seus sermões.
Sucedeu, porém, uma vez que, em certa festa das latas, o António não quis pregar, porque dizia faltar-lhe uma papeleta com o tema do sermão, mas isso era o menos. Ele apenas pretendia fazer-se rogado para lhe pagarem melhor. E foi o que sucedeu… Um estudante seu amigo, desejando ouvir mais um sermão dos seus, meteu-lhe na mão uns dinheiros em prata ao mesmo tempo que lhe dizia, entregando-lhe um papel em branco: «Aí tens a papeleta»...
O António das Almas olhou para o dinheiro num grande sorriso de satisfação e exclamou agitando o papel – Meus senhores cá está a papeleta… e mirando o papel de um lado e do outro, pôs-se a cismar… «Deste lado, nada… do outro, também nada… ora do nada criou Deus o céu e a terra… E pregou sobre este assunto o melhor sermão entre os muitos que fez em toda a sua vida.
Por outra vez, devido a um caso inexplicável, o António das Almas que morava para os lados de Montarroio, não pôde pagar ao senhorio o aluguer da casa que habitava com uma mulher chamada a Caqueireira e sendo posto na rua por tal motivo, na rua foi levantar um simulacro de tenda de campanha. Iam, assim, as coisas muito bem.... mas, certo dia, lembrou-se de viajar nas águas de Cupido perante a revolta dos transeuntes que barafustavam e um agente da polícia, então a cargo dos zeladores municipais, deitou-lhe a mão e espetou com ele na cadeia. Pois o António das Almas nada se ralou com isso, pelo contrário, pinchava de contente exclamando em altos gritos: Ora graças a Deus! Aqui está-se debaixo de telha e tem a gente casa de graça!....
Monteiro, M. Typos de Coimbra, In Illustração Portugueza, 40, Série II, Lisboa, 1907.01.28.
E o Rosalino Cândido?
Do Rosalino Cândido de Sampaio e Brito, nome mil vezes maior do que o dono, um velhito pequerrucho, de barba branca, não há ninguém, quer-me parecer, que não conheça aquela cena com o Manso Preto, em geometria, no Liceu.
O Rosalino Cândido (Desenho de Rafael Bordalo Pinheiro)
Como não soubesse a lição, em certo dia, lembrou-se de pedir dispensa em verso… E se bem o pensou melhor o fez:
Como incomodado estado tenho
Dispensa a V S.ª pedir venho
E por não a pedir por varias vezes
Peço-a por dois ou três meses,
Responde-lhe o professor:
Por um ano se quiser!
E o Rosalino não perdeu a ocasião de retorquir:
Isso mesmo é o que se requer!
O Rosalino era pobre, mesmo muito pobre, mas cheio de altivez, para não pedir coisa alguma, fez-se poeta e prosador de sete costados. A publicar folhetos não havia quem o vencesse...no número! Eram às dezenas, às centenas, aos milhares!... Foi assim que O diabo fechado na minha gaveta e a luz da razão vieram à luz do dia, a par de tantos outros folhetos que ele próprio distribuía em troca de alguns vinténs.
Pedir não pedia, mas, usando deste processo, tudo vinha a dar no mesmo...
Falando do Rosalino vem muito a propósito contar um facto pouco divulgado, mas cuja veracidade eu posso garantir. Uma vez, um estudante da Universidade teve a estranha lembrança de enviar as obras de Rosalino não sei a que escritor sueco ou norueguês. Os folhetos partiram e, passado pouco tempo, esse mesmo estudante lia, num jornal estrangeiro, uma pomposa crítica à obra monumental de Rosalino firmada pelo tal escritor que dizia e asseverava, entre muitas outras coisas, que o Rosalino era o primeiro prosador de Portugal!!!
Escusado será dizer que o jornal, passando de mão em mão, foi lido pela academia em peso entre enormes explosões de gargalhadas, enquanto o nosso poeta, impando de orgulho, inchado, ia pensando de si para si: – que grande Rosalino não havia de ser Alexandre Herculano se mandassem o Eurico a este escritor!...
E, arranjando uma casaca, não sei onde nem como, foi assim, todo bem-posto, que se apresentou nas ruidosas e memoráveis festas que a Academia de Coimbra fez pelo tricentenário de Camões. Depois, usou-a, usou-a, como competia a um tão digno e ilustre ornamento das letras pátrias, até que a pôs no fio e teve de encobri-la lançando-lhe por cima a sua inseparável e conhecida capa! Foi um portento esse Rosalino!
Monteiro, M. Typos de Coimbra, In Illustração Portugueza, 40, Série II, Lisboa, 1907.01.28.
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