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Os artistas conimbricenses do ferro iam batendo as mais diversas peças, trabalhando quase sempre isoladamente, mas expondo-as coletiva ou individualmente, tanto em mostras locais, como nacionais; contudo, quando elaboravam algum artefacto mais requintado, não se eximiam de o apresentar no Museu Machado de Castro, na Faculdade de Letras, ou na montra de algum estabelecimento comercial da Calçada.
Uma, talvez a primeira grande apresentação pública dos seus trabalhos fora da cidade, aconteceu em 1905, na exposição que o Grémio Artístico ou a Sociedade Nacional de Belas-Artes (as fontes divergem) anualmente realizava em Lisboa. Estiveram aí presentes trabalhos de Daniel Rodrigues, de Lourenço Chaves de Almeida, de Manuel Pedro de Jesus, de António Craveiro e de António Maria da Conceição.
António Craveiro. Porta de jazigo
Pode ficar-se com uma ideia desta mostra através da leitura do artigo que Quim Martins publicou, em 1906, na “Illustração Portugueza”.
A Resistencia, por seu turno, informa que Chaves de Almeida expôs as ferragens (tenaz, suporte e pá) que se destinavam a fazer conjunto com um fogão que João Machado esculpira para a casa de José Relvas, em Alpiarça. “As peças foram batidas em estilo renascença e o ferro está torcido como o dos pequenos balaústres que essa arte requintada deixou espalhada por palácios e jardins de Coimbra. A obra foi feita segundo um croquis de António Augusto Gonçalves, como os ele sabe fazer, apontamento ligeiro destinado apenas a sugerir, a excitar a actividade criadora dos seus discípulos. Os dois monstros que o enfeitam estão poderosamente martelados e esculpidos em ferro. Toda a obra revela excepcionais aptidões para a arte de trabalhar o ferro que, depois do período atormentado do ferro fundido, hoje renasce por toda a parte”.
Chaves de Almeida. Ferros para uma chaminé da Casa dos Patudos
Mas, a primeira obra coletiva de vulto surgiu quando foi necessário dar resposta aos trabalhos de ferro, destinados ao edifício da Faculdade de Letras, que havia sido projetado, em 1913, pelo arquiteto António Augusto da Silva Pinto.
Faculdade de Letras projetada pelo arquiteto António Augusto da Silva Pinto
Um pouco estranhamente, ou talvez não (a falta de dinheiro pode ser uma das explicações viáveis), só em 1927 vieram a ser assentes, na fachada principal do edifício, os grandes portões de ferro forjado, obra dos artistas Manuel Pedro de Jesus, António Maria da Conceição (Rato), Daniel Rodrigues, Albertino Marques. A direção do trabalho e o desenho dos portões é da responsabilidade de Silva Pinto.
Portão da antiga Faculdade de Letras sem a bandeira
Aliás, a Faculdade de Letras, pode bem dizer-se, manteve uma avença com o ferro forjado, porque, dois anos antes, em 1925, Albertino Marques tinha em mãos uma grade que se destinava àquela casa e em 1928 e 1929 executou quatro artísticos candelabros para serem colocados na escadaria, bem como dois monumentais tocheiros, pesando, cada um 70 quilos e medindo 1,80 metros, para o vestíbulo. Além disso, no mesmo estilo dos candelabros, também com desenho e sob a orientação de Silva Pinto, bateu dois portões de ferro forjado para a entrada do museu da Faculdade. Numa linha mais prosaica e utilitária, foi entregue a mestre Albertino a feitura de 39 metros de estantes de ferro.
Portão da antiga Faculdade de Letras. Pormenor
Mas as encomendas da Faculdade de Letras não se ficaram por aqui, pois em 1930, nas oficinas de Daniel Rodrigues e de Albertino Marques estavam a executar-se umas artísticas ferragens para a porta do salão nobre do edifício e seis anos depois aquele imóvel ia ser rodeado com uma grade de ferro, cuja execução fora confiada a Albertino Marques, a Daniel Rodrigues e a Jesus Cardoso.
Anacleto, R. A arte do ferro forjado na cidade do Mondego, primeira metade do século XX. In: História, Empresas, Arqueologia Industrial e Museologia. 2021. Edição Imprensa da Universidade de Coimbra, pg. 259-290.
Particularismo revivalista aeminiense: o neorrenascença
Na esquina oposta àquela em que se levanta a casa da viscondessa de Seabra, isto é na confluência da Rua Alexandre Herculano com a Castro Matoso, em pleno Largo João Paulo II, deparamo-nos com a casa dos Martas, posterior sede da AAC/OAF.
O risco encontra-se atribuído ao arquiteto Silva Pinto e as cantarias, que utilizam uma linguagem neorrenascença, saíram do cinzel de João Machado, um dos mais representativos artífices da Escola Livre.
Não se podem deixar de referir as causas que estiveram no surgimento do gosto neorrenascentista na arquitetura da cidade, nem o lugar sui generis que ele veio a ocupar na conjuntura arquitetónica nacional.
Em Portugal, as arquiteturas nacionalistas do período ligado ao romantismo assumiram-se no contexto do neomanuelino e do neorromânico, mas, no microcosmo conimbricense, o neorrenascença veio a ocupar um espaço peculiar que ombreou ou mesmo suplantou aqueles.
O facto explica-se, porque na cidade e no período renascentista, havia ali trabalhado uma plêiade de escultores notáveis, de entre os quais se destacam Diogo Pires, o Moço, João de Ruão e Nicolau Chanterene, homens que espalharam a sua arte por Coimbra, S. Marcos, Tentúgal, Varziela, Cantanhede, etc.
Eram estes os modelos com que os homens conimbricenses da ELAD mais facilmente lidavam e, consequentemente, foram eles que passaram a fornecer-lhes as bases de algo muito próprio, muito seu, que facilmente destronou o neomanuelino e o neorromânico, até porque, na urbe, os edifícios, sobretudo os manuelinos, não se encontravam tão presentes ou, se assim se entender, não possuíam um carisma tão forte. Compreende-se, por isso, que para estes artistas, homens do romantismo, o neorrenascença passasse a funcionar como “o seu próprio estilo nacional”.
Estamos, no nosso país, perante um autêntico particularismo arquitetónico, específico até, que se dissemina, maioritariamente, pela urbe mondeguina, por Condeixa, pelo Buçaco e por Sintra.
Fig. 33 – Casa dos Martas. Foto RA.
A Casa dos Martas assume-se, no espaço urbano a que nos cingimos, isto é, ao Bairro de Santa Cruz ou, se se preferir, à confluência da Rua Alexandre Herculano com a Castro Matoso, em pleno Largo João Paulo II, o exemplar mais representativo deste gosto neorrenascença.
Fig. 52. Pormenor decorativo da Casa dos Martas. Foto RA.
Fig. 34 – Casa dos Martas. Pormenor. Foto RA.
O imóvel, na sua fachada ostenta pedras requintadamente cinzeladas, com relevância para o conjunto portal-varanda. De um e de outro lado da porta inscreve-se um pano central decorado, rodeado por duas pilastras a terminar em capitéis pseudocoríntios, extremamente aprimorados, com folhagem estilizada e, ao centro, ternos amores músicos, de uma surpreendente delicadeza.
Fig. 35 – Casa dos Martas. Pormenor. Foto RA.
As zonas interpilastras encontram-se enriquecidas por medalhões. Todo o conjunto se apresenta unido, na parte superior, por um friso decorado com festões de flores, interrompido por um medalhão central. Os pés-direitos mostram-se finamente adornados com motivos naturalistas e outros, baseados na decoração da renascença, mas a permitir-nos avaliar a capacidade criativa de mestre Machado que, apesar de se inspirar naqueles modelos não se exime a esculpir uma decoração subjetiva.
Casa dos Martas. Pormenor. Foto RA.
A ornamentação do varandim segue o mesmo esquema, mas os motivos diferem.
Anacleto, R. Coimbra: alargamento do espaço urbano no cotovelo dos séculos XIX e XX. In: Belas-Artes: Revista Boletim da Academia Nacional de Belas Artes. Lisboa 2013-2016. 3.ª série, n.ºs 32 a 34. Pg. 127-186. Acedido em https://academiabelasartes.pt/wp-content/uploads/2020/02/Revista-Boletim-n.%C2%BA-32-a-34.pdf
A burguesia citadina instala-se no Bairro de Santa Cruz
Na Praça da República, verdadeiro nó viário, convergem vários arruamentos e uma dessas artérias é a Rua Oliveira Matos, antes apelidada de Rua da Escola Industrial.
Fig. 22 – Planta do Bairro de Santa Cruz. [AHMC. Diversos, maço 3, documento 2].
No começo da via, à esquerda de quem sobe, pode observar-se um edifício de dois pisos, caracteristicamente coroado por um friso de onde sobressaem merlões e ameias de inspiração árabe.
Casa neoárabe. Foto RA.
Na zona cimeira, as aberturas apresentam a forma de arco ultrapassado e encontram-se inscritas em retângulos decorados com arabescos de gosto orientalizante; as janelas do andar térreo, que ladeiam a porta de entrada, embora geminadas, decorativamente, assemelham-se às do piso superior; por cima da porta evidencia-se uma varanda com gradaria de pedra lavrada no mesmo gosto. A completar a ornamentação da fachada sobressaem painéis de azulejo que imitam os sevilhanos.
Ignora-se o autor do risco, mas sabe-se que José de Mello Santos, o proprietário, é que solicita à Câmara a autorização para construir o imóvel e que, a 13 de janeiro de 1913, o vereador F. Vilaça, servindo de Presidente, aprova o projeto.
Fig. 23 – Casa neoárabe. Pormenor. [Foto RA].
Casa neoárabe, pormenor. Foto RA.
Comprova o que atrás se disse relativamente à utilização do gosto neoárabe na cidade o facto de, no perímetro abarcado por este trabalho, apenas encontrarmos este exemplar e o do início da Rua Lourenço de Almeida Azevedo.
Logo a seguir, afastando-se do tipo arquitetura Escola Livre e introduzindo um cunho de modernidade, Maximiano Augusto da Cunha, fundador do colégio de S. Pedro e professor na Escola de Santa Cruz que, como se referiu, fora riscada por Adães Bermudes, pouco depois de 1913, tomando como modelo uma vivenda semelhante existente no sul da França, faz erguer uma casa que se encaixa na gramática utilizada pela Arte Nova.
Casa Arte Nova. Foto RA
A rodear a moradia, mesmo por baixo do beiral, desenvolve-se um friso pintado e decorado com lírios; este motivo repete-se no guarda-vento existente a fechar uma não muito grande caixa de escada com as paredes revestidas a escaiola.
Fig. 24. Casa Arte Nova. Caixa da escada. [Foto RA].
João Machado é o responsável pelas cantarias e pelo ferro forjado da sacada, provavelmente desenhados, tanto umas, como o outro, por António Augusto Gonçalves. O projeto do imóvel jamais foi encontrado e a família também desconhecia a sua existência ou paradeiro, mas trata-se de uma moradia a inserir-se como se disse, no gosto Arte Nova, cosmopolita e inusual na cidade, pois foge aos cânones vigentes e não se conhece, em Coimbra, arquiteto, engenheiro ou mestre-de-obras capaz de, naquela época, produzir um tal risco, a não ser Silva Pinto que nunca qualquer fonte apontou como responsável pelo projeto.
Fig. 25 – Casa Arte Nova. Pormenor. [Foto RA].
Anacleto, R. Coimbra: alargamento do espaço urbano no cotovelo dos séculos XIX e XX. In: Belas-Artes: Revista Boletim da Academia Nacional de Belas Artes. Lisboa 2013-2016. 3.ª série, n.ºs 32 a 34. Pg. 127-186. Acedido em https://academiabelasartes.pt/wp-content/uploads/2020/02/Revista-Boletim-n.%C2%BA-32-a-34.pdf
João Augusto Machado, de seu nome completo, nasceu em Coimbra a 7 de Dezembro de 1862. O pai esculpia “bonecos” nas horas vagas, mas era sapateiro … Depois de António Augusto Gonçalves ter fundado a Escola Livre, em 1878, Machado começou a frequentar esse ‘ninho de águias’ e, mais tarde, abriu oficina de canteiro. Na época, todos os artificies da pedra existentes em Coimbra, foram seus discípulos. O arquiteto Augusto da Silva Pinto … afirmava que, apesar de Machado possuir um curso de arte mais ou menos elementar e jamais se ter deslocado ao estrangeiro, conseguiu ser um escultor notável…
Machado, um dos maiores canteiros que se ‘formaram’ na ‘universidade plebeia’ ... Mas não se pode escamotear, em boa verdade, o facto de João Machado, um dos maiores entre os canteiros que se ‘formaram’ na «universidade plebeia’ mondeguina ter sido o responsável pela aprendizagem de quase todos esses lavrantes da pedra, pois a sua oficina funcionou sempre como laboratório da arte de escultor, uma vez que, no ensino oficial, a parte prática se encontrava, por várias razões, omissa.
… João Machado não recebia ‘ao dia’ como os outros, mas as remunerações eram-lhe entregues globalmente e resultava, quase sempre, de trabalho realizado na sua oficina sita então ainda na rua da Sofia, em Coimbra.
… Mestre Machado trabalhou esta alegoria (a Vitória do Palace do Bussaco) num só bloco, trazido das pedreiras de Ançã e que, segundo os carreiros que a transportam para Coimbra, em virtude do seu peso, fizera abanar a ponte da Cidreira, quando a atravessou. A pedra era linda a valer e o artista, enquanto a teve na sua oficina, antes de a ‘rasgar’, ficava-se longo tempo a olhá-la e a acariciá-la; doeu-lhe mesmo o coração começar a cortá-la, porque ele tinha “pela pedra rude a mesma adoração que os ourives pelo oiro fino … Bem sabia elle que a pedra, se a beija a arte, se põe a rir o mesmo riso que canta o ouro fino. Aos primeiros golpes que se lhe dam, a pedra solta gritos ásperos de dôr, como se chorasse o ferro. Mas, pouco a pouco, vai-se amaciando o som, ainda triste, como o cantar das rôlas a distância. E, quando a obra está quasi a acabar-se, a pedra sôa o riso metálico do oiro”.
Anacleto, R. 1997. Arquitetura Neomedieval Portuguesa. 1780-1924. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian / Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica. Pg. 312 a 315
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