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Folheto, pormenor
Mais uma vez em Coimbra, procura um destino profissional duradouro, tirando uma especialidade: "Dispus-me, finalmente, a meter o corpo aos varais. Comecei a praticar no consultório de um colega otorrinolaringologista".
…. Concluída a especialidade, nova fase surge m sua vida. Como não era fácil abrir consultório em Coimbra, vai para Leiria, onde "montou a sua tenda", segundo as suas próprias palavras. Foi determinante para a escolha da cidade a proximidade de Coimbra, o que lhe permitia. ir aí todas as semanas, para o convívio literário de que necessitava e pela proximidade das livrarias, das tertúlias e da tipografia onde imprimia os seus livros. E um deles, saído em 1939, «O Quarto Dia da Criação do Mundo», narração da sua viagem pela Europa, da Espanha franquista e da Itália de Mussolini, bem como do encontro em Paris com os exilados do regime salazarista, iria levá-lo à prisão do Aljube, em Lisboa, onde passou o Natal desse ano e escreveu alguns dos seus mais significativos poemas.
Liberto da prisão, regressa a Leiria. No ano de 1940 a vida de Miguel Torga iria tomar um novo rumo, com o casamento com Andrée Crabbé, uma jovem belga que conhecera em Coimbra em casa de Vitorino Nemésio, de quem era aluna em Bruxelas. E nesse ano publica um livro de contos, Bichos, um dos mais representativos da sua obra. A censura não dormia e, no ano seguinte, um outro livro do escritor, «Montanha», é apreendido.
Continua a viver, agora casado, em Leiria. Mas a cidade não preenchia os seus anseios. E quando pensa em mudar de ares, a resposta surge naturalmente: "Coimbra, como não podia deixar de ser. Era ela, quer eu quisesse quer não, a, minha Agarez alfabeta, o húmus pavimentado que os meus pés pisavam com mais amor".
E assim, mais um nome vinha, juntar-se aos clínicos da cidade. Num primeiro andar do Largo da Portagem estava agora o seu consultório. Na parede, uma placa: "Adolfo Rocha - Ouvidos, Nariz e Garganta".
Em frente, o pequeno jardim, com a estátua de Joaquim António de Aguiar, mais além o Mondego e, em fundo, o verde do horizonte de Santa Clara.
Não longe, no n.º 32 da Estrada da Beira, num caminho bordejado pelo Parque da Cidade, instalara-se o casal. Nas traseiras, a vista descia até ao Mondego numa paisagem inspiradora.
O seu consultório era não só um local de alívio para os seus doentes, mas também um ponto de reunião com os seus amigos e com sucessivas levas de estudantes, onde tudo se discutia, da política à literatura, e sobretudo, as suas janelas eram os olhos com que Miguel Torga viu, no decorrer dos anos, o mundo à sua volta e as alterações que se iam desenrolando e de que, observador atento, deu conta nos seus livros … O seu consultório era também a sua oficina de escritor.
Numa cidade que mudava, também ele mudara de residência. E na Rua Fernando Pessoa, para os lados da Cumeada, passa a ter o seu novo lar, em 1953, a que, em breve, o sorriso de uma filha vem dar nova vida.
O reconhecimento da sua obra não tardaria, com a atribuição de vários prémios, quer nacionais quer internacionais, e a sua universalidade está bem patente na tradução dos seus livros nas mais variadas línguas e nos mais diversos países.
… O tempo corria, inexoravelmente. Para trás iam ficando as longas jornadas de caça, o subir dos montes, a descida dos vales. O médico usaria menos vezes o bisturi, daria maior descanso ao estetoscópio. E um dia o velho consultório da Portagem deixaria de ser o seu posto de observação. Estávamos em 1992: "Desfiz-me do escritório. Mil circunstâncias adversas conjugaram-se encarniçadamente nesse sentido. E adeus, meu velho reduto, onde durante tantos anos lutei como homem, médico e poeta". Mais do que uma porta que se encerrava, era uma vida que se escoava, fechadas que estavam as janelas por onde o mundo entrara pelos seus olhos iluminando as paredes do que fora espaço de tertúlia, alívio de dores e oficina de poesia.
Andrade. C.A. Passear na Literatura. Miguel Torga. Sem data. Coimbra, Câmara Municipal.
Um dos itinerários organizados por Carlos Santarém Andrade, no âmbito da iniciativa Passear na Literatura, foi dedicado a Miguel Torga. Dessa iniciativa tão meritória, para além da memória, resta um pequeno e muito bem ilustrado folheto com o título … A ver correr Serenas, as Águas do Mondego.
É dele que nos socorremos para, mais uma vez, lembrar Torga e o seu percurso pela terra que adotou como sua.
Folheto, capa
Adolfo Correia da Rocha nasceu em São Martinho de Anta, em Trás-os-Montes, em 1907. Depois de concluir a escola primária na sua terra natal e após uma breve passagem pelo Seminário de Lamego, ruma ao Brasil, com 13 anos de idade. Em 1925 regressa a Portugal, chegando a Coimbra no Outono desse ano, a fim de tirar um curso.
Para ingressar na Universidade precisava primeiro de fazer o curso liceal. Instalado num pequeno colégio na Estrada da Beira (hoje Rua do Brasil), faz os cinco primeiros anos em apenas dois.
Morando depois numa casa ao fundo da Ladeira do Seminário, conclui num só ano os dois que lhe faltam, frequentando o Liceu José Falcão, então sediado no antigo Colégio Universitário de S. Bento, sobranceiro ao Jardim Botânico.
Matriculado na Faculdade de Medicina, em 1928, publica então o seu primeiro livro, «Ansiedade». Frequentador da tertúlia literária da «Central», não tarda a sua colaboração na «Presença», em 1929, altura em que muda para a república «Estrela do Norte» (na sua ficção «Estrela de Alva»), também na Ladeira do Seminário, n.º 6. Com a chancela da «Presença» vem a lume o seu segundo livro, Rampa, em 1930. No entanto, em breve se dá a sua cisão com o movimento presencista, juntamente com Edmundo Bettencourt e Branquinho da Fonseca. Com este, que usa o pseudónimo de António Madeira, edita a revista «Sinal», de que apenas sai um número. A par dos estudos médicos a sua obra literária. prosseguia, com os contos de «Pão Ázimo» e os poemas de «Tributo», em 1931, ou «Abismo», também de versos, saídos dos prelos da Atlântica. Em todos eles usa ainda o seu nome civil, Adolfo Rocha. Finalmente, conclui o curso, em dezembro de 9933.
Formado em Medicina, regressa a S. Martinho de Anta. Mas não cabiam na terra natal as suas ambições. E pouco depois está de novo em Coimbra. Sem uma situação profissional definida, numa terra em que abundavam os médicos, a escrita continuava, e mais uma vez a «Atlântida» lhe iria imprimir um novo livro. Escritor e médico, como depois escreveria, "serviria devotadamente a dois amos". Mas sentia que era necessário separar os nomes de quem empunhava o bisturi e de quem manejava a caneta. Adolfo Rocha seria o clínico, cuidando dos corpos. Para o escritor iria buscar na admiração por Cervantes e por Unamuno o nome de Miguel, a que acrescentaria Torga, matriz transmontana das urzes selvagens das suas origens. E quando em 1934 sai o livro A Terceira Voz, encimava o título o seu nome literário. "Com um Ósculo vo-lo entrego. Chama-se Miguel Torga'', escreveu pela última vez Adolfo Rocha no prefácio.
No mesmo ano vai substituir, temporariamente, o médico de Vila Nova, no concelho de Miranda do Corvo, tomando todos os fins de semana, quando as obrigações médicas não o impediam, o comboio para Coimbra, onde tinha um quarto para as suas pernoitas na A C. E. (hoje A C. M.), na Rua Alexandre Herculano. E do convívio à mesa da «Central», bálsamo semanal para o isolamento da aldeia, nascia mais uma revista, «Manifesto», que funda em 1936 com Albano Nogueira. Nesse ano, mais um livro, «O Outro Livro de Job». Não se demoraria muito em Vila Nova. O regresso do médico permanente, as intrigas aldeãs e a falta de saúde fazem-no regressar à cidade do Mondego.
Andrade. C.A. Passear na Literatura. Miguel Torga. Sem data. Coimbra, Câmara Municipal.
O sacrário de altar, que António Gomes fez para a capela do palácio do Sr. Dr. Carvalho Monteiro em Sintra, é de um desenho que o moço artista complicou no desejo, que tão nobremente o distingue, de se aperfeiçoar e de caminhar na profissão em que é tão estimado pelo seu caracter, como pela alegria com que trabalha, sempre a procurar fazer melhor.
O seu sacrário, de uma bela linha, com os santos em oração sob baldaquinos rendilhados, encimando um curioso enfeixamento de colunas mostra todas as suas qualidades e recursos artísticos.
Luís da Fonseca – Parte média de um frontal de altar
Luiz Fonseca é de uma família de artistas e tem trabalhado sempre na oficina de João Machado, ao lado do pai, artista justamente considerado em Coimbra, há muitos anos.
O seu trabalho - um frontal de altar - é delicadamente tratado, numa grande doçura de cinzel, amorosamente detalhado, e revela-o já como trazendo galhardamente o nome que assinala toda uma família de excelentes canteiros.
Para terminar a resenha dos trabalhos em pedra, apresentados na exposição da Escola Livre das Artes do Desenho, resta-me falar da mísula de António Gomes.
É um rapaz muito novo ainda, mas, em tudo o que faz ou planeia, revela uma natureza artística fora do vulgar.
Desenho ou modelação sua fazem demorar o olhar.
O seu desenho revela um espirito que viu e a intenção de dizer claramente o que o impressionou na obra de arte ou da natureza.
A sua modelação não tem nada da banalidade d'um estudante que tenta reproduzir planos e volumes.
Modela por amor á pedra, para fixar numa matéria branda o que concebeu para ser executado em pedra. Não é o barro que vê quando está modelando, nem os seus efeitos que procura, é a pedra que os seus olhos estão lavrando, tentando realizar a imagem no barro dúctil.
A palheta é como que o escopro de dentes e no barro traça logo os efeitos que mais tarde há-de realizar na pedra
As cabecinhas de dois anjos da mísula eram de uma técnica de encantar, como toda a execução, em que a pedra por efeitos no lavrar se coloria dos mais imprevistos tons.
António Gomes – Modilhão em gesso
O modilhão, que apresentou em gesso, é uma obra de forte execução, que não parece de uma criança. A mascara é colorida e viva, o desenho fácil e largo.
Na modelação, os seus dedos não deixam seduzir-se pelas facilidades do barro, que trata como se fosse uma matéria dura, num grande amor pela pedra, que revela a excecionalidade da sua organização artística.
Com amor á sua profissão, e á matéria que lavra, com a sua forte organização artística, António Gomes virá um dia a honrar singularmente a arte em que trabalha e que se assinala no movimento artístico nacional por tão notáveis obras dos artistas de Coimbra.
Na alocução proferida na abertura da exposição disse António Augusto Gonçalves: as artes da pedra e do ferro estão ostentando em Coimbra recursos de vitalidade e tão desenvolvida compreensão estética como em parte alguma do país.
Assim o mostra o que deixamos dito, quanto á arte de canteiro, e esperamos demonstra-lo também quanto á serralharia artística, objeto do próximo artigo, com que fecharemos estas despretensiosas notas sobre a exposição de Coimbra.
JOAQUIM MARTINS TEIXEIRA DE CARVALHO
Carvalho, J.M.T. Uma escola de canteiros, In Illustração Portugueza, 2.º semestre, 2.ª série, Lisboa, 1906, p. 162-165.
Coimbra: Uma Escola de Canteiros 4
António Carolino – Verga de uma fresta manuelina
Dos outros lavrantes expositores, apenas não é discípulo de João Machado o Sr. António Carolino, artista de dotes naturais, que se tem desenvolvido á vontade, longe de qualquer direção, e que é um dos sócios mais recentes da Escola Livre das Artes do Desenho.
Expôs a verga de fresta manuelina, que reproduzimos e foi feita, como aliás todos os trabalhos de canteiro de que teremos a ocupar-nos, para o palácio que faz atualmente construir em Sintra o Sr. Dr. Carvalho Monteiro.
O desenho foi bem compreendido, num desenvolvimento gradual e natural das linhas, sem hesitações; a modelação é vigorosa, o corte largo, e planos bem acentuados e bem graduados.
José Ferreira – Gárgula
A gárgula de José Ferreira é, pela conceção, uma das obras expostas em que mais se acentua o espirito da Renascença, pela visagem dolorida da máscara terminal.
Não é uma obra forte, como as gárgulas do Jardim da Manga ou do Colégio de S. Tomás, em que o espirito gótico se vê ainda bem na nitidez dos planos, no grotesco das figuras, na acentuação caricatural dos detalhes anatómicos; é antes um trabalho de completo espirito do renascimento na conceção e na sua realização técnica, de uma execução, de uma doçura exageradas talvez.
A boca é enigmática como a compreendeu a arte do renascimento; ri e chora, ao mesmo tempo, misteriosamente.
A anatomia, de visão, dá bem a carne, saindo viva do tufo de plantas que prende a gárgula ao edifício.
O movimento, escolho em que tantas vezes se embaraçam os artistas modernos, que tentam criar tipos novos d'estas delicadas fantasias artísticas, é bem achado: a figura adianta-se numa atitude natural, graciosa, em pleno equilíbrio no gigante de que espreita.
João das Neves Machado – Pia de água benta
João das Neves Machado, primo de João Machado tem um modo de talhar a pedra, com decisão, em planos largos e encontrados, de um belo efeito decorativo. É um artista de recursos naturais, cuja individualidade se acentua dia a dia, conhecendo bem a natureza da pedra em que trabalha, e sabendo utilizar todas as suas qualidades nos efeitos decorativos que obtém.
A sua execução pode dizer- se colorida, tais são os efeitos de luz e sombra que procura, já pela disposição dos planos e volumes, já por particularidades de técnica que modificam o aspeto da pedra, nas esculturas de outros, uniformemente branca e monótona.
Carvalho, J.M.T. Uma escola de canteiros, In Illustração Portugueza, 2.º semestre, 2.ª série, Lisboa, 1906, p. 162-165.
João Machado é o mais completo discípulo de António Augusto Gonçalves, quer na sua arte, quer na orientação geral do seu espirito.
E uma alma de artista formada já, um temperamento que começa agora a contar-nos as suas visões artísticas.
Expõe duas obras - a predela em execução, e um estudo em gesso, ambas para o altar de Nossa Senhora da Conceição na igreja da Santa Cruz, que, como as obras de arte capitais do convento, foi delineado em estilo do renascimento.
É seu o desenho como a execução da obra. João Machado conhece a Renascença bem de muito a ter estudado, e nesse estudo tem feito a educação do seu espirito que é, apesar de tudo, apaixonado por todas as tentativas modernas de arte.
A Renascença é na verdade a mãe da escultura contemporânea: Donatello e Miguel Ângelo são os ascendentes diretos de Rodin.
Muito cedo diretor de uma oficina, João Machado tem versado toda a vida problemas de arquitetura; daí o equilíbrio de todas as suas obras, ou sejam o plano de um grande edifício, ou o desenho de uma pequena joia para o capricho de um ourives.
Os maiores artistas do renascimento italiano começaram por ourives; só mais tarde passaram a escultores, revelando sempre o seu trabalho o amor que lhes ficou ao seu primeiro mister.
Com João Machado deu- se o fenómeno inverso: foi do estudo e contemplação demorados das obras da Renascença que lhe nasceu, pela admiração, o amor às artes do metal.
Assim é que hoje são numerosas as obras feitas em ferro forjado por desenhos seus; e mais de um tem feito para obras de ourivesaria.
Assim se criou e completou nele o espirito da Renascença, que domina a maior parte da sua obra decorativa.
Mas, apesar de tão intimamente consubstanciado com a alma dos artistas da Renascença, João Machado é um artista de hoje, como o prova a sua larga obra.
A sua alma moderna vê-se mesmo através dos seus mais perfeitos trabalhos do renascimento.
João Machado – Predela de um retábulo, em estilo Renascença, para a igreja de Santa Cruz de Coimbra
Na predela tudo revela a posse em que está deste estilo: a composição na linha geral e nos detalhes, a disposição das figuras dos doutores, os baixo relevos, a riqueza dos baldaquinos, a variedade dos capitéis, a delicadeza dos medalhões, a beleza com que a Renascença vestia a admiração pelos camafeus antigos, os frisos decorados, o corte das molduras, a sua disposição, as suas penetrações.
O altar de João Machado é bem uma obra da Renascença pelo espirito, pela linha, pela beleza e pela harmonia.
É-o também pela análise subtil dos movimentos fugidios que animam todas as figuras, coisa tão própria da Renascença a que, no apostolado da Sé Velha, dá a unidade, a intensidade dramática que nos domina naquela obra de arte excecional.
Pela riqueza da decoração e pelo seu espirito, a obra da predela é da Renascença francesa e lembra por uma aproximação fácil a do púlpito de Santa Cruz, não faltando quem erradamente iguale João Machado ao artista genial que lavrou aquelas formosas pedras.
Os dois artistas são, porém, dois temperamentos opostos, em duas situações diversas de vida.
O autor do púlpito é um torturado, conhecendo bem toda a miséria da carne, toda a alucinação que persegue os artistas franceses muito para além do período gótico.
O seu trabalho condensa, é um artista reprimindo-se, cortando por exuberâncias.
João Machado é um tranquilo, uma natureza que se expande alegre, nas primeiras horas da sua vida de artista.
As figuras de João Machado aparecem-nos tranquilas, a sorrir, quando evocadas; as do autor do púlpito perseguem-nos.
É que ao artista de hoje falta o meio de então.
Só assim se poderiam gerar obras iguais de sentimento e intenção decorativa.
Para fazer as gárgulas do Jardim da Manga, é necessário ter visto os corpos deformados pela histeria, ter visto o diabo nos corpos dos possessos, na crispação das mãos e dos pés, torcendo o olhar, convulsionando a garganta num grito satânico.
Para se sentir assim a pompa dos brocados raros, a leveza aristocrática das linhas preciosas era necessário ver e admirar todo o esplendor do culto antigo no convento de Santa Cruz.
João Machado não tem tido tempo de se encontrar com Deus ou com o Diabo, que nestes tempos se furtam mais á analise; o seu talento criou-se na adoração do seu lar modesto.
Por isso é vulgar encontrar, em imagens da Virgem que ele faz, as feições queridas da mulher estremecida, e ver o sorriso, a boca fresca dos filhos nos anjos que voam em volta dela.
João Machado é um artista do seu tempo e é hoje pelo amor á sua arte, pelo conhecimento que tem da sua evolução histórica, pela sua técnica delicada, pela sentimentalidade fina da sua alma de artista, o primeiro canteiro do seu país.
Há na exposição uma pequenina obra, que mostra que o seu espirito inquieto, na ânsia de saber, aspira a mais alguma coisa. É o busto da filha, trabalho incompleto, mas em que a frescura da boca, a delicadeza de modelação do colo e da parte superior do peito, revelam uma tendência nova do seu espirito.
Deve segui-la.
Modele do natural pertinazmente, como tem modelado de obras de arte e encontrará pela admiração da carne a revelação do pensamento, como a admiração do mármore o levou á revelação da carne e da vida.
Carvalho, J.M.T. Uma escola de canteiros, In Illustração Portugueza, 2.º semestre, 2.ª série, Lisboa, 1906, p. 162-165.
A Escola Livre das Artes do Desenho não passa, porém, o seu tempo a copiar estilos seguindo a norma do ensino clássico.
Os discípulos de António Augusto Gonçalves, canteiros ou serralheiros, sabem executar os mais modernos caprichos da arte.
É certo, porém, que os discípulos da Escola Livre das Artes do Desenho dão às interpretações dos diversos estilos um encanto; que raras vezes outros conseguem dar, e que os fazem justamente estimados e apreciados por Manini, Raul Lino, e todos enfim para quem o culto do passado não é esterilizador das fecundantes energias modernas.
Eu, por mim, nunca vi obra de estilo antigo, em capricho moderno de artista, que me desse a impressão estética das de António Augusto Gonçalves ou discípulo dele.
Deve-se isso á natureza: do seu ensino, que nos estilos passados, corno nas grandes obras da antiguidade clássica, procura apenas a intenção artística e a sua realização prática dentro da beleza.
A antiguidade clássica, o objeto de arte exótico, até as tentativas artísticas abortadas são para este mestre excecional fonte de ensino vitalizador e forte.
António Augusto Gonçalves não ensina a copiar um estilo, ensina a compreende-lo. E, na transcrição de qualquer motivo decorativo, os discípulos de Gonçalves metem sempre um pouco da sua alma.
Por isso as obras que produzem, na adoração dos velhos estilos, são vivas e não paradas e mortas como os pastiches que o romantismo e o mercantilismo da indústria moderna têm vulgarizado.
Os discípulos de António Augusto Gonçalves conhecem a unidade de espirito característica de cada estilo e a fôrma como se traduz na visão da linha, da superfície e do volume, na utilidade da luz e sombra, e sabem assim dar a uma planta rara de jardim, capricho moderno de floricultor curioso, a graça antiga com que os velhos escultores vestiam amorosamente as plantas humildes dos campos.
Alberto Caetano Ferreira – Sacrário de altar
Carvalho, J.M.T. Uma escola de canteiros, In Illustração Portugueza, 2.º semestre, 2.ª série, Lisboa, 1906, p. 162-165.
Iremos aqui relembrar um artigo que Joaquim Martins Teixeira de Carvalho - Homem que em Coimbra foi, na transição do século XIX para o século XX, professor da Universidade, arqueólogo, crítico de arte, jornalista, diretor do jornal A Resistência, polemista, entre muitas outras coisas, conhecido então apenas por Quim Martins - publicou na conceituada revista Illustração Portugueza, no segundo semestre de 1906, a propósito de uma exposição promovida, em Lisboa, pela conimbricense Escola Livre das Artes do Desenho.
O texto, de excelente recorte literário e com ilustrações magníficas, revela também um profundo amor a Coimbra e ao que de melhor aqui, então, se fazia. Para uma mais fácil compreensão decidimos proceder a pequenos acertos e à atualização da grafia.
UMA ESCOLA DE CANTEIROS
Em Coimbra, a arte de canteiro é uma eflorescência do solo, criou-se pelo amor ao calcário brando, que se vê alvejar à flor da torra, mal passa a chuva forte do inverno.
E é opinião que aqui teria nascido e florescido naturalmente a mais bela escola de escultores se não fosse o que muitos julgam a ventura da arte em Portugal – o glorioso movimento da Renascença, que é mais uma página da histeria da arte estrangeira do que propriamente um movimento decisivo e determinante de progresso na evolução da arte nacional.
O delicioso claustro de Celas, tão tocante de sentimento popular e de ingenuidade artística, as obras, assinadas ou não, de dois Pires, o velho e o moço, as de Pedro Anriquez e do irmão, as dos Alvares, as estátuas anónimas que o acaso depara às vezes esquecidas, os lábios num sorriso enigmático, os olhos pequeninos a rir, cobertas de ouro, como ídolos preciosos, de um lavor gótico cheio de intenção, inquieto, revelando num detalhe mínimo sempre a vontade de progredir, palpitando da vida da consciência artística nacional em formação, muitas vezes me têm feito adivinhar a gloriosa escola de escultores que poderia ter sido a honra de Portugal e que morreu no meio dos esplendores da Renascença como as crianças fracas ao beber à vontade um leite abundante e forte.
Os canteiros de Coimbra foram sempre os primeiros de Portugal, e são-no ainda hoje, como demonstrou a exposição que vamos analisando ao correr destas sumárias notas.
Pelos trabalhos expostos não pode fazer-se ideia completa nem das aptidões dos artistas nem da sua orientação.
A exposição foi organizada com as obras em elaboração no momento, em estilo determinado, com destino certo.
O acaso fez por isso que as obras expostas tenham o cunho do estilo manuelino, ou da Renascença francesa.
João Machado – Fragmento de um retábulo Renascença, em gesso
Carvalho, J.M.T. Uma escola de canteiros, In Illustração Portugueza, 2.º semestre, 2.ª série, Lisboa, 1906, p. 162-165.
Hoje, pouco se sabe de concreto relativamente à fundação de O Despertar, em 1917.
Sem dúvida que houve reuniões preparatórias … Numa dessas reuniões assentou-se na escolha do Diretor – o Dr. José Pires de Matos Miguens – e deu-se o nome do novo periódico: O Despertar. Quem lhe deu o nome foi o colaborador Ezequiel Correia…
… Coimbra despertara, havia tempos, e transformava-se, graças à colaboração de dois grupos: de um lado, os gestores de origem universitária …; e do outro, os enérgicos burgueses das casas comerciais da Praça Velha ou da Calçada … Depois, houve uma paralisação: as forças nacionais, ou se empenhavam na Guerra, ou corriam o risco de serem submergidas pelos faciosismos que surgiram e se digladiavam.
Era preciso ressurgir – e lutar contra a miséria moral e material que espreitava a Grei.
Aqui e além, esse esforço começava.
Era o despertar dum povo, no nosso caso, duma cidade. De Coimbra.
Era O Despertar.
No seu curto programa, Magna Carta do jornal, estabelece-se que o Despertar:
- Só tem uma norma: a da Correção;
- É independente, alheio às forças partidárias;
- Louvaria, e reprovaria com altivez, o que lhe parecesse merecer reprovação;
- Punha, acima de tudo, os legítimos interesses de Coimbra.
… em 3.XI.1934, a empresa passou às mãos de João Henriques … e o jornal estava arriscado a um colapso fatal se, nesse momento, António de Sousa, que lá trabalhava, não tomasse … o encargo de continuar a publicação de O Despertar.
E assim foi. Tomou conta da Administração desta empresa que, se não é ruinosa, é empobrecida. Foram anos de sacrifício e de devoção: o espirito de cruzada e de apostolado dos homens de 1917, herdou-o ele e continuou, intemeratamente.
… Há dois tipos fundamentais de jornais: o noticioso e informativo e o de esclarecimento e orientação … Entre estes dois tipos extremos, encontram-se numerosos tipos intermediários de jornais, principalmente na chamada Imprensa de Província ou Imprensa Regional, quase sempre eclética.
O Despertar pertence ao grupo dos jornais ecléticos.
Machado, F. F. 1967. Um Jornal de Coimbra: O Despertar. 1917-1967. Coimbra, Edição de O Dspertar. Pg. 3 e 4, 7 e 8, 11
Crentes no futuro, como no início, em 1917 eis “O Despertar”, quase a entrar no seu 98.º ano de publicação ininterrupta, rumo ao centenário. Com os olhos postos no futuro mas fiel aos valores dos seus fundadores e continuadores. A Honra e a Dignidade não têm preço, nem hiatos, nem prazos de validade. A Verdade tem hoje – em todas as linhas e páginas do jornal – a mesma forma que teve ontem e a que terá amanhã.
Acedido em 06.12.2015, em http://odespertar.com/pt/index.php/estatuto-editorial
… nasceu em Coimbra, a 19 de Dezembro de 1848. Herdou de seu pai, pintor e decorador com alguns merecimentos, uma fina sensibilidade estética e um critério de apreciação que irá aplicar na pedagogia e na vulgarização artísticas. Concluídos os seus estudos secundários, frequentou na Universidade de Coimbra, o curso de Farmácia, que logo abandonou. A partir de então passa a dedicar-se ao ensino livre do Desenho e da Matemática, ao mesmo tempo que irá alargando o campo dos seus conhecimentos artísticos. Belisário Pimenta, que com ele de perto privou, traça-nos … o perfil da sua mentalidade: «tinha contra si a mácula das suas ideias ao tempo muito avançadas em política e a outra mácula não menor da falta de crenças religiosas; de modo que o seu atrevimento em não seguir os cânones pedagógicos oficiais em Arte, o seu tolerante republicanismo apenas de princípios embora firmes e o não menos tolerante livre-pensamento, teriam, na época ressonância verdadeiramente revolucionária». Neste testemunho falta apenas a alusão ao enternecimento que lhe mereciam as camadas populares mais humildes e o operariado carecido de instrução.
… que o vemos desempenhar as funções de vereador da Câmara Municipal de Coimbra, eleito pela minoria republicana, no triénio de 1887 a 1889 … A sua opção de livre-pensador é demonstrada … na organização do cortejo cívico realizado em Coimbra, em 1890, e dedicado à memória de Joaquim António de Aguiar … os dirigentes republicanos manifestaram-lhe a sua confiança … atribuindo-lhe, em 1912, a presidência da Comissão Administrativa do município conimbricense … colocou o melhor da sua vocação pedagógica quer como professor de Desenho na Associação dos Artistas e no Colégio dos Órfãos … Mas a sua principal realização neste domínio foi indubitavelmente a criação da «Escola Livre das Artes do Desenho» … O primeiro problema que se colocava à viabilização da «Escola» era o da obtenção de um espaço físico … Daí que no dia 31 de Julho de 1878, sete operários tenham dirigido ao executivo municipal … ser cedida a antiga casa do Senado, no andar superior da torre do Arco de Almedina … A Câmara anuiu à pretensão e forneceu mesmo alguns materiais para que o prédio fosse ligeiramente restaurado.
… António Augusto Gonçalves não terminaria a sua longa existência sem realizar duas obras que, pela sua importância artística e relevo cultural, bastariam para conferir ao seu autor o direito de passar a ser reverentemente lembrado pelas gerações coimbrãs: referimo-nos ao restauro da Sé Velha e à fundação do Museu Machado de Castro
… É evidente que nesta breve resenha biográfica se acham omitidas muitas particularidades da vida de Mestre Gonçalves … os primores do jornalista e do crítico de arte, as arremetidas do polemista ou os méritos do professor universitário, que também foi. Mas consignam-se aspetos suficientes para qualificar de generosa e útil uma vida que se extinguirá em 4 de Novembro de 1932
Homem, A.J.C. A Exposição Distrital de Coimbra em 1884. In 1.º Centenário da Exposição Distrital de 1884. Coimbra. Simpósio. 30 de Junho e 1 de Julho de 1984. Coimbra, Edição do Secretariado das Comemorações, p. 53 a 57
Há cerca de uma dúzia de anos, em consequência do êxito relativo obtido com um pequeno Auto de Natal, representado por vários grupos amadores de Coimbra, pedi ao Cónego Dr. Urbano Duarte que me lesse o texto e rabiscasse duas linhas que lhe servissem de prefácio. O nome do apreciado Jornalista, na soleira de um tosco presépio, seria, para um principiante nas letras, mais que um sinal de aprovação, um incentivo … Hoje é-me proposto que seja eu a escrever duas palavras de apresentação a esta recolha de trabalhos do Mestre sobre a figura da Padroeira de Coimbra – A Rainha Santa Isabel.
Logo após o seu passamento, em Maio de 1980, pensou-se na publicação de um volume que recolhesse as melhores peças da coluna «Sintomas», que Urbano Duarte manteve no semanário «Correio de Coimbra» durante cerca de três décadas. O projeto, em que estiveram interessados os amigos e várias entidades, não passou das boas intenções.
… Dado o pequeno número de páginas destes «Cadernos Municipais» não pareceu oportuno, no entanto, coligir os «Sintomas» mais significativos, mesmo tendo presentes apenas os que foram escritos sobre factos e gente de Coimbra … Optou-se, e bem, pela apresentação da quase totalidade de quanto o Cónego Dr. Urbano Duarte publicou, no jornal de que foi diretor, sobre a personalidade, o tempo e as virtudes de Santa Isabel de Aragão, Rainha de Portugal … as que agora se publicam para os conimbricenses, os amigos e os discípulos do grande Mestre, Orador e Jornalista saborearem a forma original e viva do seu estilo, que o coloca ao lado dos maiores prosadores portugueses contemporâneos.
Não menos importante que a forma é, neste caso, o conteúdo. Os textos que se publicam são uma amostra eloquente da vasta cultura filosófica, teológica e humanística de Urbano Duarte.
Ramos, A.J., In Duarte, U. 1983. Rainha Santa. Padroeira de Coimbra. Coimbra, Câmara Municipal de Coimbra, Caderno Municipal n.º 1, pg. 3 e 4.
Nota do editor do blogue: Na próxima 2.ª feira será publicado um extrato da obra acima citada.
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