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Terceira entrada dedicada à divulgação do livro de historiador Milton Pedro Dias Pacheco, Do aqueduto, das Fontes e das Pontes.
O Chafariz do Largo da Feira dos Estudantes, culminaria a conduta do aqueduto de São Sebastião … Embora as fontes documentais não permitam conhecer a data precisa para a sua construção julgamos que a mesma tenha sido edificada no seguimento da conclusão do reservatório para a água transportada pelo aqueduto, a qual surge como parte integrante.
Neste terreiro … foi então construído, entre 1570 e 1572, o depósito de água. Este não só veio a permitir o funcionamento do fontanário local – que a história viria a consagrar como Fonte dos Bicos devido aos motivos decorativos em ponta de diamante salientes que ornamentavam a sua frontaria principal –,
Fonte dos Bicos. Acervo RA
como garantiu o abastecimento de outros equipamentos aquíferos, como o Chafariz da Sé,
Chafariz da Sé. In: Archivo Pittoresco. 1866.09. Acervo RA
onde existia um segundo reservatório para levar água até ao fontanário localizado na Praça de São Bartolomeu.
Chafariz de S. Bartolomeu. Última remodelação, hoje instalada à entrada do Museu dos Transportes Urbanos
Alguns anos mais tarde, este mesmo reservatório acabaria por ser dotado com os encanamentos destinados a abastecer o vizinho Palácio da Mitra Episcopal de Coimbra e outros institutos religiosos existentes na Alta citadina, como os colégios de Jesus, o da Sapiência e o da Estrela. De acordo com as informações recolhidas, nos anos de 1715-1858, julgamos que o depósito do fontanário do paço episcopal, e, provavelmente o da catedral, a Sé Velha, eram abastecidos durante o dia, sendo os depósitos dos colégios dos Jesuítas e dos Agostinhos durante o período noturno.
…. Terá sido construído no seguimento da carta régia outorgada por D. Sebastião em 7 de maio de 1573, no qual ordenava a construção do chafariz da Feira.
Fonte dos Bicos. Acervo RA
Tratar-se-ia, muito provavelmente, de uma ampliação ou reedificação material, pois, quer esta bica de água, quer a localizada junto da catedral de Santa Maria de Coimbra, já são mencionadas em datas anteriores.
No que diz respeito à composição arquitetónica do primitivo fontanário da Praça da Feira pouco ou nada sabemos. Teria, ao que parece, três bicas para o fornecimento de água, número que manteria ao longo da sua existência, mesmo após as obras de beneficiação de que foi alvo, em 1747 ou em 1864, a primeira para renovação do frontispício e a segunda para a colocação das armas da cidade.
Até à destruição do Fontanário dos Bicos, ocorrida durante a construção da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e do Instituto de Medicina Legal, nos finais da década de 1940, a água ainda era utilizada para regas e limpezas locais.
Pacheco, M. P.D. Do aqueduto, das Fontes e das Pontes: a Arquitetura da Água na Coimbra de Quinhentos. In: História Revista. Revista da Faculdade de História e do Programa de Pós-graduação em História, v. 18, n. 2, p. 217-245, jul. / dez. 2013. Goiânia (Br.). Acedido em:
A Doutora Maria Antónia Lopes, tem dedicado boa arte do seu trabalho de investigação ao estudo das Misericórdias em geral e da Misericórdia de Coimbra, em particular. Através desta entrada divulgamos um dos seus trabalhos, este intitulado A fundação da Misericórdia de Coimbra: condições e circunstâncias, do qual salientamos as seguintes passagens.
A fundação de misericórdias por todo o reino inseriu-se num “esforço da Coroa em organizar a assistência”. Trata-se, pois, de uma ação política.
…. O desejo do rei foi cumprido em Coimbra. Em carta de 12 de setembro de 1500, dirigida ao “juis, e vereadores, provedores e homens bons” de Coimbra, D. Manuel I congratula-se por terem já ordenado uma “Confraría da Misericordia” e, como pediam, concede-lhes por alvará do mesmo dia todos os privilégios outorgados à Misericórdia de Lisboa. A Misericórdia de Coimbra estava ereta. …. A Misericórdia de Coimbra foi, portanto, constituída, como quase todas, graças à devoção, à boa-vontade e aos interesses próprios de todos os envolvidos, entre os quais avultavam os das elites locais. De facto, ingressando numa Misericórdia conseguia-se ou patenteava-se prestígio pessoal e adquiriam-se privilégios civis e indulgências; mais tarde, com o seu enriquecimento, acesso fácil ao mercado de capitais ou ao arrendamento ou aforamento de terras, entre outras vantagens, não sendo a menor ser-se associado à imagem de personagem exemplar.
…. Em 1500, Coimbra ainda estava longe de atingir a dimensão e importância que viria a ter com a instalação definitiva da Universidade em 1537. Mas Coimbra era, como sempre fora, um importante ponto de passagem e de cruzamento de pessoas, bens e ideias, tanto no sentido Sul-Norte/Norte-Sul como na ligação entre o interior e o mar, em estrada rasgada pelo Mondego. Nesse último ano do século XV, a cidade de Coimbra albergava cinco a seis mil habitantes, sobretudo no Arrabalde (a Baixa), com a Almedina (a Alta) parcialmente em ruínas e rarefeita de população. O centro vital de Coimbra era, pois, a parte baixa, polarizada pelo mosteiro de Santa Cruz, que limitava a cidade a Norte, pois que a Rua da Sofia estava ainda por nascer, mas também com poder e força vital na sua bela Praça, rematada nos dois extremos pelas igrejas de S. Tiago a Norte e S. Bartolomeu a Sul (em edifício anterior ao atual). A colina era encimada pelos Paços Reais, mas, sem rei que os habitasse, nela pontificava o bispo e o cabido, na sua catedral fortaleza a meia encosta.
É a esta cidade, longe ainda de ocupar o terceiro lugar em honra e dimensão, que no fim do verão de 1500 chega o diploma consagrando legalmente a sua Misericórdia, após a fundação das de Lisboa, Lagos, Portel, Tavira, Évora, Montemor-o-Novo, Porto, Setúbal e, talvez, Santarém.
Muito provavelmente, nessa altura a Misericórdia estaria já a funcionar, mesmo que de forma incipiente, pelo menos há alguns meses, o que pode fazer remontar a sua fundação a 1499 ou inícios de 1500. E como tantas outras, nos seus primórdios, sobrava-lhe em ambição – e que ambição!, praticar a totalidade das obras de misericórdia entre toda a população carenciada da urbe – o que lhe faltava em recursos. Por isso os “principais” de Coimbra quiseram desde logo anexar as instituições existentes com as suas rendas, o que desagradou ao rei, que lhas nega perentoriamente.
…. Nascera, pois, a Misericórdia de Coimbra, cumprindo todos os requisitos legais, a 12 de setembro de 1500, mas ainda pobre, sem sede própria … escreve o autor anónimo do texto “Instituição da Misericordia de Coimbra, e Cathalogo dos Provedores, e Escrivaens, que até ao presente nella tem servido”, que acompanha o compromisso de 1620, na sua edição de 1747: “He tradicçaõ vulgar nesta Cidade, que primeyro se assentou esta Confraria na Sé della, dahi se passou para a Igreja de Santiago na casa que hoje serve de celeyro, aonde se diziaó as Missas, e mais obrigaçoens da Casa e se chamava a Capella da Misericordia”.
… Aprovou-se então, em 1546, um projeto absolutamente radical: erigir o templo da Misericórdia sobre a igreja S. Tiago. Construir uma igreja assente no teto de outra!, eis a solução encontrada pelos Irmãos, que não queriam abandonar o coração da cidade. E assim surgiu um santuário originalíssimo.
Igreja de S. Tiago. Acervo RA
Igreja da Misericórdia, entrada. In: Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, n.º 28
Aproveitando-se o desnível entre a Praça e os arruamentos orientais, virava a nova igreja da Misericórdia para a Rua de Coruche (atual Visconde da Luz), com porta encimada por belo frontão de João de Ruão, representando a Senhora do Manto ou Senhora da Misericórdia, a que se acedia por escadório. Mas a Misericórdia precisava de outros espaços: casa do despacho, cartório, armazéns, etc. Em 1589 ainda se iniciaram essas obras na Rua do Corpo de Deus, mas por dificuldades várias desistiu-se do projeto. Em 1605 aprovou-se a construção dessas dependências adossadas à igreja, sobre outra nave de S. Tiago. Cerca de cem anos depois, acrescentaram-se com a edificação do Recolhimento das Órfãs, já assente em terra e alinhando pela Rua de Coruche, e outro século volvido, instalava-se nas lojas desse imóvel a botica da Santa Casa.
O templo quinhentista da Misericórdia já não existe: inicialmente mutilado, tal como a cabeceira da igreja de S. Tiago e outros edifícios da Rua de Coruche quando esta foi alargada em meados do século XIX, veio a ser completamente destruído, em inícios do século XX.
Igreja de S. Tiago e da Misericórdia, restauro. In: Illustração Portuguesa.
…. A Misericórdia pontificou, pois, e durante trezentos anos, na Baixa coimbrã: com entrada pela Rua de Coruche, vizinha ao mosteiro de Santa Cruz, mas virando também para a Praça da Cidade, que dominava da sua altura, governou-se pelo estipulado no Compromisso de 1500.
Lopes, M. A. A fundação da Misericórdia de Coimbra: condições e circunstâncias” in Lopes, Maria Antónia (coord.), Livro de todallas liberdades da Sancta Confraria da Misericórdia da cidade de Coimbra. Estudos, facsimile e transcrição. Coordenação de Maria Antónia Lopes. 2016. Coimbra, Santa Casa da Misericórdia de Coimbra, pp. 9-16.
Segunda entrada dedicada ao trabalho da Doutora Ana Margarida Dias da Silva, intitulado Inventário do Arquivo da Venerável Ordem Terceira da Penitência de S. Francisco da Cidade de Coimbra (1659-2008).
Além da santificação pessoal, os irmãos terceiros dedicaram-se a tarefas diversificadas, muitas de cariz social. A ação piedosa e de beneficência da Ordem Terceira esteve sempre patente ao longo dos séculos manifestando-se de diversas formas, como por exemplo, a decisão em Mesa de 3 de maio de 1832 de dar esmola de bacalhau, arroz, pão, laranjas e dinheiro a todos os presos das cadeias da Portagem, Universidade e Aljube e a todos os irmãos pobres da Ordem; com a fundação do Hospital e Asilo, inaugurado em 1851 e 1852,
Pormenor da fachada principal do edifício do Carmo, hoje sede da Ordem Terceira de Coimbra, sito na rua da Sofia, n.º 114, Coimbra. Op. cit. 68
com o Patronato Masculino de Santo António e, mais recentemente, com a criação da Casa Abrigo Padre Américo (fundada em 1994).
Casa abrigo Padre Américo, sita na Azinhaga Carmo. Imagem acedida em https://entenderosemabrigo.webnode.pt/products/casa-abrigo-padre-americo/
Situando-se primitivamente no Convento de S. Francisco da Ponte da mesma cidade,
Convento de S. Francisco, já adaptado a fábrica. Acervo RA
em 5 de janeiro de 1659 foi feita a primeira eleição com os oficiais na forma estipulada pelo Papa Nicolau IV, estando presentes D. Frei António de Trejo, bispo de Cartagena e vigário geral da Ordem, e o padre frei Jerónimo da Cruz, comissário da Ordem, e com assistência e votos dos irmãos terceiros. Os primeiros Estatutos da Ordem Terceira de São Francisco de Coimbra determinam que esta seja governada por um Ministro, um Secretário, seis ou oito Definidores, um Síndico, um Vigário do Culto Divino, os Zeladores em número dependente da cidade, vila ou lugar ou o número de irmãos, seis Sacristães e um Vice visitador.
Em 1740 iniciou-se a construção da capela de Nossa Senhora da Conceição da Ponte e Casa do Despacho onde se reunia a Mesa do Conselho. O novo edifício foi construído em terreno anexo ao convento de S. Francisco da Ponte e ainda hoje é propriedade da Ordem Terceira de Coimbra. Em 1784 a Mesa da Venerável Ordem Terceira reuniu na igreja paroquial e colegiada de S. Cristóvão, uma vez que fora expulsa da Casa do Despacho e capela ereta no convento de S. Francisco da Ponte e em novembro de 1785 reuniu pela primeira vez na Sé Velha.
Capela de Nossa Senhora da Conceição, contigua ao Mosteiro de S. Francisco. Acervo RA
Silva, A.M.D. 2013. Inventário do Arquivo da Venerável Ordem Terceira da Penitência de S. Francisco da Cidade de Coimbra (1659-2008). Fotografias Ana Margarida Dias da Silva e Sérgio Azenha. Lisboa. Edição do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa - Lisboa e da Venerável Ordem Terceira da Penitência de S. Francisco.
Terceira e última entrada dedicada ao trabalho do Doutor Francisco Pato de Macedo que sobre o retábulo-mor da Sé Velha de Coimbra.
«Evangelista S. Mateus», predela do retábulo da Sé Velha de Coimbra. Op. cit.
O retábulo da Sé Velha de Coimbra, pelas suas dimensões, não apresenta a possibilidade de ser fechado, através de volantes, como era comum nos retábulos do Norte da Europa.
A predela do retábulo da Sé Velha é constituída por seis divisórias encimadas por baldaquinos finamente lavrados. Uma no prolongamento do pano central deste políptico, que se subdivide para albergar dois temas e quatro no prolongamento de cada uma folhas laterais, onde se dispõem os Evangelistas.
No lado direito, na divisória do meio, o Evangelista S. Lucas, em relevo de meia figura, tem a seus pés o boi, seu atributo, que combina, neste retábulo dedicado à Virgem, com outro dos seus atributos, o de retratista da Virgem. A pintura que se vê a executar está colocada num cavalete e voltada para os espectadores a quem é mostrada. Completa esta cena o seu auxiliar, que prepara as tintas, e que é curiosamente um negro…. A representação iconográfica de S. Lucas como retratista da Virgem foi utilizada com frequência pelos artistas flamengos, que assim contribuíram para a sua divulgação. A divisória que se situa no prolongamento da folha exterior do lado direito, é ocupada pelo Evangelista S. Mateus, que quase de costas no ato da escrita, molha a pena no tinteiro, que um anjo, seu atributo, à sua frente, lhe segura. Na folha central, do lado esquerdo, S. João, patrono dos escritores e dos teólogos, sentado numa cadeira ornada com motivos escultóricos, dedica-se à tarefa da escrita numa escrivaninha que lhe é apontada pelo bico da águia, que o simboliza, que está elegantemente colocada com as asas abertas e as patas assentes em livros.
Por último, o Evangelista S. Marcos, a escrever o Evangelho com o leão alado, o seu atributo, aos pés. Completam a predela, nas duas divisórias, que prolongam o pano central, o Presépio que, enquanto glorificação da Virgem, é subsidiário do tema central e que alude também à infância de Cristo. Neste caso, contrapõe-se à cena seguinte a Ressurreição de Cristo, símbolo de transcendência e de um poder sobre a Vida que só a Deus pertence, que é o tema principal do retábulo e que volta a repetir-se na estrutura de coroamento. A Ressurreição reflete a estética flamenga, quer na posição de Cristo com uma perna fora do sepulcro, quer na posição de terror dos soldados e nas suas armaduras.
A estrutura do coroamento é composta de duas partes, uma onde numa estrutura de marcenaria menos trabalhada se destaca a crucificação que aliás é comum encimar este tipo de retábulos. Ao centro, em posição mais elevada Cristo Crucificado, com um semblante de sofrimento e o tórax torneado a mostrar as costelas salientes e o ventre reentrante. Aos pés de Cristo, tal como aos da Virgem, D. Jorge de Almeida mandou colocar o seu brasão…. A mitra, que na sua forma triangular encima o brasão e que com o seu vértice aponta Cristo Crucificado, simboliza a Sua natureza divina. Aos lados da cruz, em pé, à direita, a Virgem, e, à esquerda, S. João, a Mãe e o discípulo favorito. Completam este tema os dois companheiros do drama, o bom e o mau ladrão.
«O Mau ladrão», retábulo da Sé Velha de Coimbra. Op. cit.
À direita, o bom ladrão ergue o olhar para Cristo, à esquerda o mau ladrão com a cabeça pendente torce-se nas cordas. Seguindo a tradição do Norte da Europa não estão pregados na cruz, mas com os braços atados a esta …A estrutura de coroamento é ainda, neste retábulo, composta por outra parte que se liga diretamente à estrutura arquitetónica do edifício românico. A da semicúpula absidal que foi, de uma forma bastante original, inteiramente coberta com uma estrutura de marcenaria semelhante a uma abóbada estrelada, prefiguração do espaço celeste, onde se representa o Juízo Final. Na chave central da abóbada o busto nu de Cristo Juiz, envolto em nuvens, com as mãos erguidas para deixar veras chagas e mostrar-se tal como morreu na cruz. Em cada um dos fechos da abóbada anjos tenentes seguram com as mãos veladas os instrumentos da Paixão que assumem o carácter de brasões de Cristo. Completa o coroamento, abaixo de Cristo Juiz, S. Miguel Arcanjo.
…. Na imposta do arco que encima a cena central vêem-se duas figuras enigmáticas. A do lado direito aponta com um braço demasiado comprido, em direção ao crucificado e no outro leva, provavelmente, as Tábuas da Lei. A do lado esquerdo curvada sobre si própria ergue a cabeça para o crucificado e deve, hipoteticamente, simbolizar um Profeta que, a partir do Antigo Testamento se volta em direção ao Redentor e anuncia a sua segunda vinda.
Merece ainda destaque a moldura, em escultura ornamental, que decora o «Corpus» e a predela, deste monumental retábulo, onde se podem ver dragões, sereias, anjos, cavaleiros, ursos, porcos, macacos, homens selvagens e vários monstros entrelaçados em folhagem. Em termos de conteúdo simbólico podem, entre outros, ser-lhe atribuídos os seguintes significados: elementos moralizadores, evocação do período da desordem, símbolo das forças irracionais. Estes elementos são, por si só, motivo para um estudo detalhado e aprofundado utilizando o método iconológico.
…. Ao longo dos séculos, o retábulo da Sé Velha teve vários restauros documentados. No final do século XVI, mais concretamente em 1582 …. Um século mais tarde, em 1684…. Teve ainda uma grande obra de restauro, em 1899, na qual o mestre António Augusto Gonçalves modelou em barro, o Presépio
O Presépio. Imagem publicada no blogue Nova Portugalidade, em 19 de dezembro de 2018. Acedida em https://www.facebook.com/100069507879227/posts/2204153486509673/
e o Evangelista São Marcos que faltavam na predela, que foram em seguida, reproduzidos em madeira por dois artistas naturais da Carregosa, o mestre António Ferreira Santos e Adelino Teixeira da Silva.
…. Este magnífico retábulo-mor continua na Sé Velha de Coimbra a exaltar a devoção que desde tempos imemoriais aqui se dedica a Santa Maria.
Macedo, F. P. O retábulo-mor da Sé Velha de Coimbra In: Actas do IV Simpósio Luso-Espanhol de História da Arte - Portugal e Espanha entre a Europa e Além-Mar. 1988. Coimbra, Universidade de Coimbra.
Segunda de uma série de 3 entradas dedicadas ao estudo do Doutor Francisco Pato de Macedo que escreveu sobre o retábulo-mor da Sé Velha de Coimbra.
A individualização do trabalho e do estilo de cada um dos artistas que realizaram o retábulo da Sé Velha apresenta, também grandes dificuldades. As obras que são atribuídas a Oliver de Gand, perderam-se na quase totalidade.
…. Acerca de Jean d'Ypres sabe-se só que, em 1510, estava a trabalhar em Santa Cruz de Coimbra, e que deve ter morrido, em 1512.
…. Conserva-se, felizmente, de Oliver de Gand e de Jean d'Ypres, o monumental retábulo de madeira dourada e policromada, nas formas exuberantes do gótico flamejante, que reveste completamente o fundo da abside da Sé Velha de Coimbra. Nele podemos individualizar um «Corpus», que constitui o centro narrativo e que ocupa a parte central da estrutura.
O «Corpus» termina num dossel trilobado e abobadado com nervuras e um remate de cogulhos, cujo centro é ocupado por dois anjos que sustentam o brasão do bispo, encabeçado pela mitra.
Abaixo sob um baldaquino filigranado, dispõe-se a narrativa central de todo o retábulo – a Assunção da Virgem. Esta cena central constitui um conjunto muito característico da escultura do Norte da Europa. A Virgem está envolta numa auréola luminosa, espécie de nimbo de todo o corpo e símbolo de beatitude eterna. Apresenta-se em posição frontal, de pé sobre uma lua crescente, em atitude de oração.
Assunção da Virgem. Retábulo-mor da Sé Velha de Coimbra. Op. cit.
É uma figura de face gorda, cabelos frisados a cair pelos ombros e vestes de duras angulosidades. que está rodeada de anjos que a conduzem ao Paraíso. Aos pés da Virgem os Apóstolos. que vieram testemunhar a sua morte. dispõem-se num relevo em elevação e profundidade. aglomerados. cobrindo-se uns aos outros. gesticulastes, envoltos em roupagens de múltiplas pregas. elevando-se de um lado e do outro numa posição de equilíbrio.
Assunção da Virgem, pormenor do retábulo-mor da Sé Velha de Coimbra. Op. cit.
A Assunção é um dos temas mais importantes da Glorificação da Virgem…. Existiu. desde tempos imemoriais, um templo dedicado à Virgem. no local onde no século XI, o bispo D. Miguel Salomão mandou construir a nova igreja catedral, que também a Ela consagrou. O bispo D. Jorge de Almeida, grande devoto da Virgem, não deixou de a fazer ocupar, neste retábulo, um lugar central e de lhe colocar aos pés o seu brasão.
…. A Assunção da Virgem ocupa o pano central do políptico, que é duas vezes maior que os laterais. dois de cada lado. separados por contrafortes onde se abrem nichos. de diversos tamanhos, destinados a albergar esculturas de vulto. dentro de um espírito de horror ao vazio. Em cada um dos panos laterais. seguindo uma linha quebrada. dispõem-se sob baldaquinos, figuras de santos de vulto redondo. Os baldaquinos da folha seguinte à central que terminam num triangulo rendilhado albergam. o da direita S. Pedro de cabelos encaracolados. barba espessa e curta e vestes de pregas onduladas e com o manto levantado deixando ver os atributos. as chaves e o livro. O baldaquino da esquerda S. Paulo de fronte calva e barba longa e cujo manto é decorado com imitação de. pedras incrustadas. Santos Universais que sustentaram os mesmos combates. que terão caminhado abraçados para a morte e que a Igreja festeja no mesmo dia. Nos panos seguintes. sob baldaquinos que terminam como se fossem uma coroa, os Santos Cosme (p. 308) e Damião, irmãos gémeos …. Além destes Santos, outros deveriam ocupar nichos hoje vazios. No Museu Machado de Castro conservam-se três imagens de S. Jerónimo, S. Gregório e Santa Catarina que, muito provavelmente, pertencem a este retábulo.
«S. Jerónimo» - Museu Nacional Machado de Castro – Coimbra. Op. cit.
«S. Gregório» - Museu Nacional Machado de Castro – Coimbra. Op. cit.
Pelas suas dimensões deveriam ocupar três dos seis nichos, situados nos contrafortes que delimitam os panos do políptico. Os outros três nichos deveriam ser ocupados pelos restantes doutores da Igreja, Santo Agostinho e Santo Ambrósio, e, hipoteticamente, por Santa Catarina que é muitas vezes associada a Santa Bárbara.
Macedo, F. P. O retábulo-mor da Sé Velha de Coimbra In: Actas do IV Simpósio Luso-Espanhol de História da Arte - Portugal e Espanha entre a Europa e Além-Mar. 1988. Coimbra, Universidade de Coimbra.
Nesta entrada e nas duas seguintes, voltamos ao trabalho do Doutor Francisco Pato de Macedo, Professor Aposentado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, no qual é contada, não só a história do retábulo-mor da Sé Velha de Coimbra, bem como feita uma pormenorizada descrição do mesmo.
O interior da Sé Velha de Coimbra revela a quem transpõe o seu portal. um contraste entre as pedras nuas e frias da construção do séc. XII e o brilho dourado do retábulo-mor que, como peça de ourivesaria, refulge no ponto para onde, invariavelmente, converge o olhar.
…. O primitivo retábulo da capela-mor da Sé Velha de Coimbra, dedicado à Virgem. foi mandado executar pelo Bispo D. Miguel Salomão, nos finais do séc. XII, e era composto por uma alma de madeira revestida a prata dourada.
Três séculos depois. o bispo-conde D. Jorge de Almeida não considerou este retábulo digno de uma Sé, com a ascentralidade e a importância da de Coimbra, nem dele próprio, enquanto seu bispo já que é sempre referido pela historiografia como verdadeiro príncipe da Renascença.
…. Enriqueceu a Sé com inúmeros objetos de ourivesaria sacra …. Dentre todos, destaca-se a magnífica custódia, de prata dourada, em estilo gótico, destinada às procissões do Corpo de Deus. Deve-se ainda a D. Jorge de Almeida a introdução do gosto pelos azulejos mudéjares, que mandou comprar em 1508, em Sevilha, e com que mandou revestir totalmente, pilares e muros do interior da Sé Velha. Aí se mantiveram, a deslumbrar os fiéis com o seu brilho, até que as obras de restauro, levadas a efeito de 1893 a 1902, com critérios hoje discutíveis, os retiraram.
…. A construção do retábulo revelou-se de tal modo dispendiosa que o bispo, por carta, de 9 de Novembro de 1499, instituiu uma confraria destinada a obter esmolas para esta obra. A fábrica da igreja catedral, não tinha, como afirma, rendas suficientes e a contribuição que, conjuntamente com o Cabido, havia dado, não era suficiente.
Esta carta determina a concessão de «privillegios, perdões e indulgencias» a todos aqueles que entrassem para a confraria.
…. Para o retábulo-mor da Sé Velha, optou D. Jorge de Almeida pelo gótico flamejante que a época considerava «moderno», por oposição ao novo estilo que se estava a introduzir que se denominava de «antigo» ou «romano».
…. [ao artista flamengo] Jean d'Ypres, vai ficar a dever-se o sumptuoso retábulo-mor da Sé Velha de Coimbra, hoje único entre nós, cuja data de início se desconhece, mas que deve ter sido concluído entre 1502 e 1508.
Os retábulos colocados em locais interditos aos fiéis e tornados invisíveis pela penumbra dos altares não se destinavam a ser contemplados, mas como afirma Germain Bazin «a constituirem como que uma oração permanente, fixa em imagens de que os fiéis só percebiam, ao longe, o brilho vago dos dourados e das cores».
Interior da Sé Velha de Coimbra. Imagem acedida em https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9_Velha_de_Coimbra
Para a Sé Velha de Coimbra foi executado um retábulo do mesmo tipo dos da Europa do Norte.
Retábulo-Mor da Sé Velha de Coimbra. Op. cit.
Macedo, F. P. O retábulo-mor da Sé Velha de Coimbra In: Actas do IV Simpósio Luso-Espanhol de História da Arte - Portugal e Espanha entre a Europa e Além-Mar. 1988. Coimbra, Universidade de Coimbra.
Prosseguindo na divulgação de estudos sobre a Sé Velha primitiva, é hoje levado ao conhecimento dos nossos leitores, um trabalho da Doutora Joana Filipa Antunes, professora na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e investigadora do Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património, daquela Instituição.
A Sé Velha de Coimbra é particularmente (re)conhecida pelo seu rosto medieval. Espécie de catedral fortaleza, a sua arquitetura e a história que ela conta, confirmam e alimenta o nosso imaginário em torno de um tempo em que as catedrais eram românicas e marcavam o território de um reino em construção.
Sé Velha. In: Revista Pittoresca e Descriptiva de Portugal com vistas Photograficas n.º 5. Lisboa. 1862
Pouco se sabe, contudo, sobre os equipamentos litúrgicos, os investimentos artísticos, o aspeto interior, a organização espacial e, no fundo, a paisagem visual da sé medieval.
…. Procurámos, então, reencontrar a “catedral habitada” … dos séculos medievais, ainda genericamente desconhecida. Dela sabemos hoje, em traços muito gerais, que contaria:
- Com três capelas principais, de estrutura arquitetónica perene e, portanto, sobreviventes até hoje: a capela-mor, dedicada à Virgem, a capela de São Pedro, ao Evangelho, e a capela de São Martinho (dedicada, desde o século XVI, ao Santíssimo Sacramento).
Capela mor, na atualidade. Acervo RA
.... Com muitas outras capelas entretanto descaracterizadas ou desaparecidas, como a capela de Santa Clara e a capela de São Geraldo, cada uma na sua extremidade do transepto, ou a capela de Santa Maria Madalena, encostada à extremidade ocidental do coro, junto à porta do claustro ou, ainda os altares de Santa Maria, do Anjo, de São Sebastião, Santa Bárbara, São Nicolau e dos Santos Cosme Damião e que não pudemos ainda localizar com precisão mas que, a partir do século XVI, deixarão de ter existência física, canalizando-se as respetivas devoções (e imagens devocionais) para o retábulo-mor encomendado por D. Jorge de Almeida e, mais tarde, para altares menores.
- Com um coro central, ocupando dois tramos da nave central a partir do cruzeiro, dotado de uma porta ocidental encimada por um crucifixo, à maneira do que se erguia sobre o «leedoiro» do coro de Santiago de Compostela e onde a poderosa D. Vataça de Lascaris (f. 1336) se faz sepultar em monumento elevado e, nesta época, coberto com um pano com “signaes, figuras d’aguias e flores” …
Sé Velha, tumulo de D. Vataça. Mestre Pero, 1336. Imagem acedida https://pt.wikipedia.org/wiki/Vata%C3%A7a_L%C3%A1scaris#/media/Ficheiro:Vata%C3%A7a.jpg
- Com um cadeiral, encomendado em 1413, pintado e dourado, com o seu “almocarabez de ouro fino”, … numa solução formal cuja dimensão seria, muito provavelmente, impeditiva de uma vista ampla e desafogada da capela-mor a partir da entrada da igreja.
- Com um coro-alto, concluído em torno de 1477, ocupando os dois primeiros tramos da nave central, ao nível do trifório, e ostentando, no subcoro, um teto mudéjar de laçaria.
- Com numerosas tumulações, em campa rasa, em campas pintadas e em monumentos funerários esculpidos e dotados de jacente, dos quais nos chegaram, sobretudo, túmulos episcopais.
- Com panos, véus, cortinas, corrediças, das mais variadas cores e materiais, a comporem estruturas de capelas ou cenários efémeros, ocultarem imagens ou vesti-las de acordo com as muitas festas do calendário litúrgico.
De todos estes espaços e equipamentos, aquele que maior atenção recebe nos dois primeiros séculos da catedral românica é, sem dúvida, a capela-mor. Espaço pequeno, não obstante a sua importância, foi sendo composto, dignificado, enobrecido e densamente preenchido nos séculos seguintes. E é a partir dele, portanto, que iniciaremos esta abordagem à Sé Velha medieval, focando-nos exclusiva e operativamente (embora não exaustivamente) nos objetos, equipamentos e imagens de que foi sendo acrescentado ao longo de quatro séculos.
Antunes, J. F. (Re)ver a Sé Velha de Coimbra: Equipamentos Litúrgicos da Capela-Mor Medieval (Séculos XII.XV). In: Actas. Congreso Internacional VIII Centenario Catedral de Burgos “El mundo de las Catedrales” celebrado en Burgos del 13 al 16 de junio de 2022. Edição Fundación VIII Centenario de la Catedral. Burgos 2021. Acedido em
No âmbito do estudo da simbologia heráldica de D. Jorge de Almeida consideramos relevante atentar no seguinte excerto de António de Vasconcelos a propósito do cortejo deste prelado à saída do paço episcopal para a Sé:
Armas de D. Jorge de Almeida no retábulo da Sé Velha de Coimbra
“Era espectaculosa e digna de se ver (…) acompanhado de uma guarda militar, o alferes de D. Jorge, vestindo huma cota darmas forrada de setim roixo, com as armas do bispo sobre damasco branco e cremezim, aprumado no seu cavalo, hasteava o balsão – hum estandarte de damasco verde alionado branco e cremezim, com uma cruz douro e armas do bispo.(…) cercado dos seus familiares e creados e seguido da sua gente de armas, montado em formosa e nédia mula branca, quase inteiramente coberta pelas ephíppias e strágula pontifícias de cor violácea, e vistosa pelos belos arreios guarnecidos de seda aveludada, brochados e chapeados de prata, onde se divisavam finamente buriladas e muitas vezes repetidas as armas dos Almeidas e dos Silvas, encimadas de uma mitra ou pelo chapéu pontificial.
Trazia o bispo-conde sôbre a sotaina rôxa um comprido roquete de finíssimo linho, que lhe descia abaixo dos joelhos; aos ombros a capa-magna de cameloto violáceo com o capelo forrado de alvíssimas peles de arminhos, afagadas pela cabeleira do prelado; na cabeça o chapéu solene, de lã preta, com a parte inferior forrada de seda verde, e longos cordões da mesma côr a descerem dos lados do chapeu, caindo sôbre o peito, a cuja altura se bifurcavam uma, outra e outra vez, elaçando-se e enxadrezando-se, ornados de borlas ou frocos de seda verde em todos os pontos de união (…)”
Selo heráldico de D. Jorge de Almeida retirado de Abrantes, Marquês de. O estudo da sigilografia medieval Portuguesa
A partir deste excerto é evidente todo o aparato heráldico que rodeava este prelado, cuidadoso na composição, cor e simbologia de todas as peças que tanto ele como a sua comitiva ostentavam. Não poderia haver uma mensagem de poder mais manifesta e é interessante ver aqui a perpetuação da mitra enquanto símbolo episcopal. Conforme se mencionou, no caso português esta peça terá um protagonismo acentuado durante um maior período de tempo que noutros locais da Europa, sendo símbolo episcopal por excelência. Ainda assim, o chapéu eclesiástico tem já um papel preponderante, inclusive como elemento envergado pelo antístite no decorrer do cortejo. Uma vez mais confirmamos também, a propósito do gallerum, a utilização do negro forrado a verde, mais uma particularidade portuguesa, uma vez que já aqui se verificou ser unicamente o verde, a cor designada para representar os bispos. O efeito desta exibição de poder associado à imagem do prelado era avassalador para quem observava, algo patente na continuação do excerto acima transcrito:
Armas de D. Jorge de Almeida na Pia Batismal da Sé Velha de Coimbra onde se verifica, alternadamente, a utilização da mitra e do chapéu eclesiástico
… “À passagem do prelado toda a gente se ajoelhava, e ele de olhar meigo, de sorriso bondoso nos lábios, ergendo a dextra com o dedo indicador ornado de hum anel que tinha duas esmeraldas, quatro rubis e uma çafira, abençoava lentamente, com os dois dedos estendidos, os seus súbditos devota e humildemente prostrados numa quase adoração.”
Santos, M.M.D. 2010. Heráldica eclesiástica - Brasões de Armas de Bispos-Condes. Dissertação de Mestrado em História da Arte, Património e Turismo Cultural apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Acedido em 2918.05.22, em
https://www.academia.edu/1118570/Heráldica_eclesiástica_Brasões_de_armas_de_bispos-condes
Já amplamente analisado, D. Jorge de Almeida [é uma] personagem indubitavelmente imprescindível no contexto artístico, político, religioso e social desta época, tendo constituído verdadeiramente uma retórica de aparato de onde é impossível dissociar a carga heráldica facilmente perceptível.
Armas de D. Jorge de Almeida no retábulo da Sé Velha de Coimbra, pormenor
… Trigésimo sétimo bispo de Coimbra e segundo conde de Arganil, terá nascido em 1458 filho do 1º conde de Abrantes e de D. Beatriz da Silva. A sua distinta linhagem, terá origem em D. Pedro I e D. Inês de Castro de quem se diz o seu pai, D. Lopo, ser o terceiro neto.
… A sua presença em Itália, agora incontestada, está intrinsecamente ligada ao percurso de seu pai. Sabe-se que D. Lopo integrou o mesmo séquito para Siena que o anteriormente referido D. João Galvão … Acrescente-se a este facto a sua presença em Florença, Nápoles e Roma, focos da cultura humanista.
… O contexto familiar de D. Jorge de Almeida comprova toda uma miríade de influências e relações que certamente influenciaram a sua mundividência e gosto, tornando-o num incontestável “verdadeiro príncipe do renascimento”, nas palavras de Vítor Serrão.
O seu próprio percurso em Itália desde, pelo menos 1469, foi pautado de exemplos que iriam determinar a sua imagem e posição futuras, tendo privado com Lourenço de Médicis (conforme provam as 5 cartas agora publicadas) a quem escreveu ainda enquanto estudante em Pisa ou o título de Apotolice sedis prothonotharius que ostentou precocemente e que seria prenunciador dos muitos outros com que viria a ser agraciado ao longo da sua extensa vida conforme se confirma nas palavras de Pedro Álvares Nogueira ao discursar acerca deste “mancebo de uinte E dous annos de grandes partes de grandes esperanças q daua mostras de uir a ser hum grande prelado Como na uerdade o foi (…)”.
Tendo estudado em Pisa e Peruggia e após uma longa permanência na Cúria Romana, este antístite, que será inquisidor-mor do reino a partir de 1536, sempre demonstrou uma extrema erudição que perpetuou na obra escrita elaborada ao longo da sua vida e de onde se destacam as – “Constituyçoões do Bispado de Coimbra pollo muyto reuerendo e magnífico senhor o señor dom Jorge dalmeyda bpo de Coimbra Conde Darganil”, impressas em Braga, na Oficina de Pedro Gonçalves Alcoforado, no ano de 1521. Consta terem sido as primeiras Constituições deste bispado que se publicaram.
Peça fundamental no equilíbrio das forças culturais e políticas da cidade, protegia os seus homens e erigia à sua volta redes de dependência e patrocinato, vivendo como um grande e poderoso senhor nos seus territórios.
Teve igualmente um papel preponderante junto ao monarca, em diversos encargos diplomáticos e religiosos, tendo-se deslocado expressamente a Évora, em finais de 1497, para presenciar o primeiro matrimónio de D. Manuel. Do mesmo modo foi este mesmo prelado que, juntamente com o rei esteve presente no ritual da abertura e segunda tumulação de D. Afonso Henriques e de D. Sancho I, efectuado no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Este bispo designado por António de Vasconcelos como Sacerdos Magnus, terá ainda baptizado o Infante D. Henrique em 1512.
Bispo residente em Coimbra - um dos raros exemplos de entre as nove dioceses portuguesas, era apreciador da prática da caça tendo mesmo “alcançado de D. Manuel a instituição de uma coutada privada nas terras do senhorio do bispado, em Coja, para melhor apreciar os seus gostos cinegéticos”, e foi a figura marcante do Renascimento conimbricense, numa altura de mudanças e em que se começava a vislumbrar uma nova cultura visual. Não obstante a experiência em Itália e os ilustres contactos que manteve, sempre se apresentou enquanto sujeito de carácter singular com uma preponderante “proximidade às correntes humanistas do renascimento que a sua actuação à frente da diocese de Coimbra e a sua abertura mecenática não deixam de traduzir”.
Documento com as armas de D. Jorge de Almeida, usando os leões de negro
Documento com as armas de D. Jorge de Almeida, usando os leões de negro, pormenor
Finado em 1543, a inscrição na sua lápide que repousa ainda hoje na Sé Velha de Coimbra irá replicar a fórmula itálica do seu nome, já utilizada por Sisto IV nos idos anos da sua infância. Aquele que foi o antístite que durante mais tempo governou uma diocese em toda a história da igreja portuguesa, e que com 10 anos era já designado por “Giorgio de Almeyda clerico Egitaniensis diocesis” “falleceo dia de Santiago de1543. de idade de 85 annos. Manifesta-se do epitaphio de sua sepultura, que está na capella do Sanctíssimo Sacramento da Sè da ditta cidade.
Armas de D. Jorge de Almeida na Capela de S. Pedro, na Sé Velha de Coimbra
Santos, M.M.D. 2010. Heráldica eclesiástica - Brasões de Armas de Bispos-Condes. Dissertação de Mestrado em História da Arte, Património e Turismo Cultural apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Acedido em 2918.05.22, em
https://www.academia.edu/1118570/Heráldica_eclesiástica_Brasões_de_armas_de_bispos-condes
AINDA S. TOMÁS DE VILA NOVA NA SÉ DE COIMBRA
Na sacristia da Sé Nova pode ver-se um quadro de pintura que facilmente se relaciona com a mudança de titular na capela da nave da igreja, de S. Francisco Xavier para S. Tomás de Vila Nova. Representa o santo bispo de Valência e está datado de 1676, ano em que o seu culto já devia ser bem conhecido dos cónegos da Sé e das gentes de Coimbra.
Sé Nova, quadro de S. Tomás de Vila Nova
Tomás de Vila Nova é uma das figuras gradas da igreja espanhola do século XVI, a par com outros místicos. É designado como o “S. Bernardo espanhol” pela sua teologia sobre a Virgem Maria, o amor divino e a pastoral. Nasceu em Fuenllana em 1486, mas a sua juventude decorre em Vila Nova dos Infantes, donde adotou o nome quando ingressou na congregação dos agostinianos. Desde a meninice deu provas de comovente caridade, privando-se de tudo pelos pobres. Em 1518 foi eleito superior dos agostinianos e em 1545 bispo de Valência, cargos que aceitou com relutância. Organizou várias formas de assistência a donzelas pobres e sem dote, doentes e crianças abandonadas. Para estas criou um orfanato dando-lhes o abrigo, cuidados e carinho. Chegou ao ponto de dar a sua própria cama, pois não tinha, de momento, outra coisa que dar. Mas não se limitava a dar esmolas: procurava combater a pobreza de uma forma ativa, dando trabalho aos desprotegidos. Dono de uma formação cultural fortíssima, é autor de belos sermões e obras místicas, como o Sermão do Amor de Deus e o Comentário ao Cântico dos Cânticos.
Sé Nova, quadro de S. Tomás de Vila Nova, pormenor
Gaspar de la Huerta, um dos mestres do Século de Ouro espanhol. Nasceu em 1645 e morreu em 1714. A sua vida decorre sobretudo em Valência, onde desenvolveu atividade e foi muito apreciado. Lamentavelmente grande parte das pinturas que executou para igrejas e conventos já não existe, pelo que a tela da Sé alcança um valor reforçado.
S. Tomás de Vilanova 1
As excelentes relações entre os cabidos das sés de Coimbra e Valência poderão justificar a existência do quadro de 1676 e do culto ao santo valenciano. Aproveitando essa maré, o cabido de Coimbra pediu ao de Valência uma relíquia do santo. Este não só ofereceu a relíquia como a própria imagem, também de cunho realista. Uma e outra chegaram a Coimbra em 18 de janeiro de 1687, sendo conduzidas em solene procissão, presidida pelo bispo D. João de Melo, desde S. Francisco da Ponte até à Sé. Nesse mesmo ano de 1687 se erigiu na Sé a Irmandade do Glorioso Santo Tomás de Vila Nova. A imagem encontra-se no altar da Sé Nova, com vimos, e o relicário foi parar ao Museu Machado de Castro.
S. Tomás de Vilanova 2
Quando se fez a mudança da Sé Velha para a igreja dos jesuítas, o forte culto a S. Tomás de Vila Nova impôs a nova entronização da sua imA pintura que se guarda na sacristia da Sé, não obstante se encontrar em mau estado de conservação, é um documento expressivo da vida e obra deste santo. Num primeiro plano é representado Tomás de Vila Nova, sentado, paramentado de pluvial e mitra episcopal, como homem de idade madura e de face bem vincada, exprimindo afeto. Estende as mãos para dar esmola a uma criança que a recebe de olhar ansioso. A seu lado e um pouco mais à frente vê-se um velho pedinte, arrimado a um bordão e de joelhos em terra. Completam a cena cinco outros pobres de aspeto sofredor. Por detrás do santo, eleva-se um clérigo ancião, de cruz alçada. Todas as figuras são de notável vigor e realismo nas feições e atitudes, autênticos retratos, exprimindo expectativa, sofrimento, compaixão. Por fim o cenário cria o ambiente com formas arquitetónicas austeras, donde emergem ainda dois outros vultos humanos.
Trata-se de uma composição notável de um grande artista. Infelizmente o estado de conservação da tela não deixa perceber todos os pormenores, designadamente a tão importante expressão da cor. O pintor encontra-se identificado, pois o quadro está assinado: agem. O quadro integrou a sacristia, onde convive bem com as cenas das vidas de Santo Inácio e S. Francisco Xavier. Possa esta chamada de atenção para a pintura de Gaspar de la Huerta permitir que se encare como obra prioritária o seu restauro.
Nelson Correia Borges
In: Correio de Coimbra, n.º 4714, de 8 de Novembro de 2018
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