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Frente ao rio ao longo dos tempos, escreveria mais tarde:
MEMORIA
De todos os cilícios, um, apenas,
Me foi grato sofrer:
Cinquenta
A ver correr,
Serenas,
As águas do Mondego.
Como dramaturgo publica em 1941 «Terra Firme. Mar» e nesse ano inicia o seu «Diário», o primeiro de 16 volumes em que, ao longo de mais de 50 anos, nos deixou as suas reflexões, os seus pensamentos, os seus poemas, as suas angústias e a sua visão de um mundo em constante mutação.
Torga. «Diário. II». Acedido em https://www.bing.com/images/search
O seu consultório era também a sua oficina. de escritor.
O seu consultório era também a sua oficina. de escritor
Um a um, novos livros iam saindo da sua pena; «Rua», «Lamentação, «O Senhor Ventura». A partir de 1944, com «Libertação» é a Coimbra Editora que lhe imprime que lhe imprime os seus livros: «Novos Contos da Montanha», «Vindima», «Odes», «Sinfonia», «Nihil Sibi», «O Paraíso», «Cântico do Homem», e tantos, tantos outros.
Torga. «Contos da Montanha». Acedido em: https://www2.unicentro.br/pet-letras/2017/08/29/resumo-da-obra-contos-da-montanha-de-miguel-torga/
Miguel Torga conhecia profundamente o seu país, desde as agrestes terras do norte às suaves planuras do sul. A sua ligação à terra, às montanhas, aos rios, é uma das suas mais evidentes características. Escritor telúrico, como tão largamente é referido, ele próprio, filho de camponeses transmontanos, aspirava a ser um semeador de poesia:
RASTO
Semeador de versos? Quem me dera!
Não haveria homem mais feliz.
Ter o espírito em flor na primavera,
E o corpo, no inverno, com raiz.
Não.
Retalho apenas a ilusão…
À teimosa procura
Dum singular e único sinal
Que todo me defina e me resuma,
Vou desfolhando a rosa da expressão
E deitando no chão
Caídas as palavras, uma a uma.
O constante peregrinar, o calcorrear do país, estão bem patentes na sua obra. consubstanciados no seu livro «Portugal», um retrato vivo e nítido da terra portuguesa.
Torga. «Portugal». Acedido em https://livrariaultramarina.pt/product/portugal-miguel-torga-1950-1a-edicao/
E nos volumes do «Diário» são constantes as impressões que lhe causam e as reflexões que lhe inspiram as suas viagens de norte a sul do país.
Mas Miguel Torga viajou também por outras paragens. Mais uma vez a Europa, de novo o Brasil da sua adolescência, o México, Angola e Moçambique, a longínqua Macau, deixando-nos de todas essas viagens as suas sensações, os seus poemas.
Numa cidade que mudava, também ele mudara de residência. E na Rua Fernando Pessoa, para os lados da Cumeada, passa a ter o seu novo lar, em 1953, a que, em breve, o sorriso de uma filha vem dar nova vida.
O reconhecimento da sua obra não tardaria, com a atribuição de vários prémios, quer nacionais quer internacionais, e a sua universalidade está bem patente na tradução dos seus livros nas mais variadas línguas e nos mais diversos países.
«Orfeu Rebelde», o título de um dos seus livros, aplica-se com propriedade à sua obra e à sua personalidade. Poeta da rebeldia, avesso a escolas literárias, Torga foi um lutador solitário, usando a caneta como arma para transmitir toda a sua força interior. Que está bem expressa no seu poema
ORFEU REBEIDE
Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.
Outros felizes, sejam rouxinóis …
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
De moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violência faminta de ternura.
Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo de um poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legítima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se um canto é de terror ou de beleza.
O tempo corria, inexoravelmente. Para trás iam ficando as longas jornadas de caça, o subir dos montes, a descida dos vales. O médico usaria menos vezes o bisturi, daria maior descanso ao estetoscópio. E um dia o velho consultório da Portagem deixaria de ser o ser o seu posto de observação. Estávamos em 1992: "Desfiz-me do escritório. Mil circunstâncias adversas conjugaram-se encarniçadamente nesse sentido. E adeus, meu velho reduto, onde durante tantos anos lutei como homem, médico e poeta". Mais do que uma porta que se encerrava era uma vida que se escoava, fechadas que estavam as janelas por onde o mundo entrara pelos seus olhos iluminando as paredes do que fora espaço de tertúlia. alívio de dores e oficina de poesia.
Longa fora a sua vida. Grande é a sua obra. Por fim, a doença que lhe debilitou o corpo, não o impediu de escrever, escrever sempre. O último poema que publicou, no 16° volume do «Diário», em 1993, é uma despedida comovente:
REQUIEM POR MIM
E tenho pena de acabar assim,
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana.
Inválido do corpo
E tolhido da alma.
Morte em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o caminho e desmedidos
Os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do destino.
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio.
Rio feliz a ir de encontro ao mar
Desaguar,
E, em largo oceano, eternizar
O seu esplendor torrencial de rio.
Torga na sua Casa de Coimbra, da Rua Fernando Pessoa
Estava a chegar ao fim a luta desigual que Miguel Torga travava, há anos, com coragem e estoicismo. E um dia, a 17 de janeiro de 1995, termina uma vida de interrogações e ansiedades. Só ficava a poesia. E no dia seguinte era a despedida de Coimbra, o fim da jornada em que a cidade, ao longo de sete décadas, se habituara a ver o seu perfil de granito transplantado para a suavidade do seu calcário. S. Martinho de Anta reclamava o seu filho, para o afagar no seu húmus materno.
Andrade, C. S. Passear na Literatura, A ver correr, / Serenas, / As águas do Mondego. Sem data. Coimbra. Edição do Departamento de Cultura da Câmara Municipal de Coimbra.
Formado em Medicina. regressa a S. Martinho de Anta. Mas não cabiam na terra natal as suas ambições.
Torga em S.Martinho de Anta. Imagem Col. CF
E pouco depois está de novo em Coimbra.
Op. cit., s/ numeração
Sem uma situação profissional definida, numa terra em que abundavam os médicos, a escrita continuava, e mais uma vez a «Atlântida» lhe iria imprimir um novo livro. Escritor e médico, como depois escreveria, "servira devotadamente a dois amos". Mas sentia que era necessário separar os nomes de quem empunhava o bisturi e de quem maneja a caneta. Adolfo Rocha seria o clínico, cuidando dos corpos. Para o escritor iria buscar na admiração por Cervantes e por Unamuno o nome de Miguel, a que acrescentaria Torga, matriz transmontana das urzes selvagens das suas origens. E quando em 1934 sai o livro «A Terceira Vez», encimava o título o seu nome literário, “Com um ósculo vo-lo entrego. Chama-se «Miguel Torga", escreveu pela última vez Adolfo Rocha no prefácio.
No mesmo ano vai substituir, temporariamente, o médico de Vila Nova, no concelho de Miranda do Corvo, tornando todos os fins de semana, quando as obrigações médicas não o impediam, o comboio para Coimbra. onde tinha um quarto para as suas pernoitas na A. C. E. (hoje A C. M.), na Rua Alexandre Herculano. E do convívio à mesa da «Central», bálsamo semanal para o isolamento da aldeia, nascia mais uma revista «Manifesto», que finda em 1936 com Albano Nogueira.
Pastelaria Central, onde acontecia a “Tertúlia do Torga” que também tinha lugar nos cafés da ”Brasileira” e do “Arcádia”. Imagem da Col. CF. Op. cit., s/ numeração.
Nesse ano, mais um livro, «O Outro Livro de Job». Não se demoraria muito em Vila Nova. O regresso do médico permanente, as intrigas aldeãs e a falta de saúde fazem-no regressar à cidade do Mondego.
Mais uma vez em Coimbra procura um destino profissional duradouro, tirando uma especialidade: "Dispus-me, finalmente, a meter o corpo aos varais. Comecei a praticar no consultório de um colega otorrinolaringologista". Mas, ao mesmo tempo, a escrita não para. E, assim, em 1937, publica «A Criação do Mundo. Os Col. CFDois Primeiros Dias», biografia romanceada dos seus primeiros anos de vida, até aos primeiros tempos no Brasil. Ainda nesse ano colabora na «Revista de Portugal», dirigida por Vitorino Nemésio. E em Dezembro faz uma viagem a Espanha (em plena guerra civil), França e Itália, dando um salto a Bruxelas, para visitar o seu amigo Nemésio, então professor na capital belga. Em 1938, novo livro da «Criação do Mundo, o Terceiro Dia» relato da sua vida, desde o regresso do Brasil até à partida para a viagem à Europa.
Concluída a especialidade, nova fase surge m sua vida. Como não era fácil abrir consultório cm Coimbra, vai para Leiria, onde "montou a sua tenda", segundo as suas próprias palavras. Foi determinante para a escolha da cidade a proximidade de Coimbra o que lhe permitia ir aí todas as semanas, para o convívio literário de que necessitava e pela proximidade das livrarias, das tertúlias e da tipografia onde imprimia os seus livros. E um deles, saído em 1939, «O Quarto Dia da Criação do Mundo», narração da sua viagem pela Europa, da Espanha franquista e da Itália de Mussolini, bem como do encontro em Paris com os exilados do regime salazarista, iria levá-lo à prisão do Aljube, em Lisboa, onde passou o Natal desse ano e escreveu alguns dos seus mais significativos poemas.
Liberto da prisão, regressa a Leiria. No ano de 194 a vida de Miguel Torga iria tomar um novo rumo, com o casamento com Andrée Crabbé, uma jovem belga que conhecera em Coimbra em casa de Vitorino Nemésio, de quem era aluna em Bruxelas.
Andrée Crabbé Rocha e Torga. Acedida em https://www.bing.com/images/search
E nesse ano publica um livro de contos, «Bichos», um dos mais representativos da sua obra A censura não dormia e, no ano seguinte, um outro livro do escritor, «Montanha» é apreendido.
Torga. «Os Bichos». Op. cit., s/ numeração
Continua a viver, agora casado, em Leiria. Mas a cidade não preenchia os seus anseios. E quando pensa em mudar de ares, a resposta surge naturalmente: "Coimbra como não podia deixar de ser. Era ela, quer eu quisesse quer não, a minha Agarez alfabeta, o húmus pavimentado que os meus pés pisavam com mais amor".
E assim, mais um nome vinha juntar-se aos clínicos da cidade. Num primeiro andar do Largo da Portagem estava agora o seu consultório. Na parede uma placa: "Adolfo Rocha - Ouvidos, Nariz e Garganta".
Op. cit., s/ numeração
Em frente, o pequeno jardim, com a estátua de Joaquim António de Aguiar, mais além o Mondego e, em fundo, o verde do horizonte de Santa Clara.
Não longe, no nº 32 da Estrada da Beira, num caminho bordejado pelo Parque da Cidade, instalara-se o casal. Nas traseiras, a vista descia até ao Mondego numa paisagem inspiradora
O seu consultório era não só um local de alívio para os seus doentes, mas também um ponto de reunião com os seus amigos e com sucessivas levas de estudantes, onde tudo se discutia, da política à literatura, e sobretudo, as suas janelas eram os olhos com que Miguel Torga viu, no decorrer dos anos, o mundo à sua volta e as alterações que se iam desenrolando e de que, observador atento, deu conta nos seus livros.
Adolfo Rocha no seu consultório. Op. cit., s/ numeração
Andrade, C. S. Passear na Literatura, A ver correr, / Serenas, / As águas do Mondego. Sem data. Coimbra. Edição do Departamento de Cultura da Câmara Municipal de Coimbra.
Em janeiro de 1885 a Quinta foi adquirida e convidados o engenheiro Adolfo Ferreira Loureiro e o Dr. Júlio Henriques para elaborarem um Plano de melhoramentos da Quinta de Santa Cruz, a primeira expansão da cidade, à imagem da Europa. Em junho desse mesmo ano foi apresentado o Plano dos Melhoramentos da Quinta de Santa Cruz.
Concebido com claras influências da Avenida da Liberdade de Lisboa (Silva, 1985; Macedo, 2006: 126), propunha um Boulevard com 50 m de largura que partia do Mercado D. Pedro V e que terminava numa praça quadrangular confinante com o Jardim Público que correspondia ao antigo Jogo da Bola dos frades crúzios. A partir dos cantos da praça rasgava simetricamente três avenidas, uma para Celas, outra para o caminho de Santa Anna, outra em direção ao Bairro de S. Bento e, a partir dos lados, traçava uma em direção aos arcos de S. Sebastião e outra em direção a Montes Claros.
Fig. 9. Planta da autora de reconstituição dos limites da Quinta de Santa Cruz, de acordo com a Representação ao Rei de 18 de fevereiro de 1884 “do mercado d Pedro V até montes claros a norte e quase à entrada do lugar de Cellas, subúrbios de Coimbra, vem pelo nascente e sul proximidades de Sant'Ana até à rua dentre muros onde é a sua principal entrada”
Fig. 10. Planta da autora de reconstituição do Plano de Melhoramentos da Quinta de Santa Cruz delineado por Adolfo Loureiro em 1885
Para além do traçado, Adolfo Loureiro, imbuído da lógica operativa dos engenheiros, elaborou também uma estratégia de implementação. Como primeira medida, e para facilitar a ocupação, propunha o início dos trabalhos pela ligação aos Arcos de S. Sebastião e dividia os terrenos em três classes de preço de acordo com a localização. No entanto, e ao contrário do que era habitual, não criou lotes rigidamente traçados, a dimensão dos lotes dependia da disponibilidade financeira dos compradores. Introduziu assim um novo modelo de gestão integrado na lógica liberal de flexibilidade de mercado.
As novas ruas, amplas, arborizadas e infraestruturadas foram inauguradas no final de 1889. No entanto, a Avenida Sá da Bandeira, o boulevard projetado não tinha sido construído efetivamente. A terraplanagem do vale revelou-se demasiado dispendiosa e optou-se por adiar a construção do boulevard e aproveitar os materiais das terraplanagens da abertura das ruas para sem grande esforço regularizar o vale. Em sua substituição foi aberta apenas uma rua de 15 metros de largura.
Calveiro, M.R. Apropriação e conversão do Mosteiro de Santa Cruz. Ensejo e pragmatismo na construção da cidade de Coimbra. In: Cescontexto, n.º 6, Junho 2014. Coimbra, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Pg. 227-240. Acedido em
Particularismo revivalista aeminiense: o neorrenascença
Na esquina oposta àquela em que se levanta a casa da viscondessa de Seabra, isto é na confluência da Rua Alexandre Herculano com a Castro Matoso, em pleno Largo João Paulo II, deparamo-nos com a casa dos Martas, posterior sede da AAC/OAF.
O risco encontra-se atribuído ao arquiteto Silva Pinto e as cantarias, que utilizam uma linguagem neorrenascença, saíram do cinzel de João Machado, um dos mais representativos artífices da Escola Livre.
Não se podem deixar de referir as causas que estiveram no surgimento do gosto neorrenascentista na arquitetura da cidade, nem o lugar sui generis que ele veio a ocupar na conjuntura arquitetónica nacional.
Em Portugal, as arquiteturas nacionalistas do período ligado ao romantismo assumiram-se no contexto do neomanuelino e do neorromânico, mas, no microcosmo conimbricense, o neorrenascença veio a ocupar um espaço peculiar que ombreou ou mesmo suplantou aqueles.
O facto explica-se, porque na cidade e no período renascentista, havia ali trabalhado uma plêiade de escultores notáveis, de entre os quais se destacam Diogo Pires, o Moço, João de Ruão e Nicolau Chanterene, homens que espalharam a sua arte por Coimbra, S. Marcos, Tentúgal, Varziela, Cantanhede, etc.
Eram estes os modelos com que os homens conimbricenses da ELAD mais facilmente lidavam e, consequentemente, foram eles que passaram a fornecer-lhes as bases de algo muito próprio, muito seu, que facilmente destronou o neomanuelino e o neorromânico, até porque, na urbe, os edifícios, sobretudo os manuelinos, não se encontravam tão presentes ou, se assim se entender, não possuíam um carisma tão forte. Compreende-se, por isso, que para estes artistas, homens do romantismo, o neorrenascença passasse a funcionar como “o seu próprio estilo nacional”.
Estamos, no nosso país, perante um autêntico particularismo arquitetónico, específico até, que se dissemina, maioritariamente, pela urbe mondeguina, por Condeixa, pelo Buçaco e por Sintra.
Fig. 33 – Casa dos Martas. Foto RA.
A Casa dos Martas assume-se, no espaço urbano a que nos cingimos, isto é, ao Bairro de Santa Cruz ou, se se preferir, à confluência da Rua Alexandre Herculano com a Castro Matoso, em pleno Largo João Paulo II, o exemplar mais representativo deste gosto neorrenascença.
Fig. 52. Pormenor decorativo da Casa dos Martas. Foto RA.
Fig. 34 – Casa dos Martas. Pormenor. Foto RA.
O imóvel, na sua fachada ostenta pedras requintadamente cinzeladas, com relevância para o conjunto portal-varanda. De um e de outro lado da porta inscreve-se um pano central decorado, rodeado por duas pilastras a terminar em capitéis pseudocoríntios, extremamente aprimorados, com folhagem estilizada e, ao centro, ternos amores músicos, de uma surpreendente delicadeza.
Fig. 35 – Casa dos Martas. Pormenor. Foto RA.
As zonas interpilastras encontram-se enriquecidas por medalhões. Todo o conjunto se apresenta unido, na parte superior, por um friso decorado com festões de flores, interrompido por um medalhão central. Os pés-direitos mostram-se finamente adornados com motivos naturalistas e outros, baseados na decoração da renascença, mas a permitir-nos avaliar a capacidade criativa de mestre Machado que, apesar de se inspirar naqueles modelos não se exime a esculpir uma decoração subjetiva.
Casa dos Martas. Pormenor. Foto RA.
A ornamentação do varandim segue o mesmo esquema, mas os motivos diferem.
Anacleto, R. Coimbra: alargamento do espaço urbano no cotovelo dos séculos XIX e XX. In: Belas-Artes: Revista Boletim da Academia Nacional de Belas Artes. Lisboa 2013-2016. 3.ª série, n.ºs 32 a 34. Pg. 127-186. Acedido em https://academiabelasartes.pt/wp-content/uploads/2020/02/Revista-Boletim-n.%C2%BA-32-a-34.pdf
A burguesia citadina instala-se no Bairro de Santa Cruz (Continuação)
Em Coimbra, este estilo encontra-se disperso por toda a cidade, quer em grande número de janelas deste tipo que, na sua maioria, apresentam uma extrema simplicidade, quer em algumas casas. No entanto, o neomanuelino coimbrão, aquele que saiu mesmo do risco e do cinzel dos artistas locais, é tratado de maneira sóbria e denota profundos conhecimentos do estilo quinhentista.
Esta casa da Rua Alexandre Herculano, para além do andar térreo, apresenta três pisos, cada um com sua varanda saliente, de pedra lavrada, a ornamentar a fachada que, na parte superior, ostenta elegante loggia. Uma esfera armilar em relevo dá cunho à dupla entrada. No conjunto, os elementos manuelinos abundam: cordas, escudos, esferas armilares, cruzes da Ordem de Cristo e arcos conopiais, fazem com que este seja um dos melhores exemplares citadinos do tipo. Porque indocumentado, não permite que se conheçam os nomes do proprietário e do projetista, bem como a data da sua feitura.
Fig. 28 – Edifício neomanuelino. [Foto RA].
Edifício neomanuelino, pormenor. Foto RA
Edifício neomanuelino, pormenor. Foto RA
Mas nesta rua erguem-se vários edifícios com interesse; dois desses imóveis foram projetados por Raul Lino, arquiteto que, nesta data, ou seja, depois de 1902, já se impunha no nosso país pela obra realizada e tinha grande aceitação na urbe mondeguina.
Quase em frente ao já referido edifício neomanuelino, em 1908, Albino Caetano da Silva começa a construir uma moradia riscada por aquele alarife.
Fig. 29 – Moradia de Albino Caetano da Silva. [Foto RA].
Moradia de Albino Caetano da Silva, pormenor. Foto RA
O edifício foge, obviamente, ao que se fazia na cidade, mas se se pensar em termos estendidos, acaba por refletir um gradual, embora moderado, crescimento económico dos encomendantes, passível de lhes permitir recorrer, para riscar as suas moradias, a artistas que não vivem no burgo; esta possibilidade introduz, paulatinamente, uma certa modernidade arquitetónica, que inicia a alteração fisionómica da urbe.
Raul Lino, para além de projetar a moradia de Caetano da Silva, preocupa-se com os pormenores decorativos e desenha os azulejos policrómicos que se encontram a ornamentar as paredes das fachadas.
Antes de 1915 já se perfilava a possibilidade de, em Coimbra, vir a ser construído um edifício que servisse de sede à Associação Mundial de Académicos (atual Associação Cristã da Mocidade – ACM); o local elegido situava-se no gaveto formado pelas Ruas Alexandre Herculano e Venâncio Rodrigues.
Raul Lino, o arquiteto escolhido, começou a riscar o projeto em janeiro de 1916 e em meados do ano seguinte era exposta na Calçada, numa das montras dos Grandes Armazéns do Chiado, a maqueta aguarelada do edifício; parece que a feitura do imóvel foi custeada pelo International Comittee of Young Man's Christian Associatons, de Nova Iorque.
Edifício da Associação Cristã da Mocidade (ACM), pormenor. Foto RA
Fig. 30. Edifício da Associação Cristã da Mocidade (ACM). Pormenor. [Foto RA].
Não cabe aqui referir quais os objetivos da instituição, mas, de acordo com a imprensa que se publicava na época, o edifício projetado por Raul Lino era “um dos ornamentos do Bairro de Santa Cruz” e o arquiteto, no interior, interpretou “admiravelmente o princípio utilitário e filantrópico da instituição e, ao dar ao exterior o estilo português modernizado, manifestou o seu espírito de adaptação ao meio particular em que cada grémio se estabelece, num perfeito equilíbrio entre o nacionalismo e o cosmopolitismo exagerados”.
Finalmente, no dia 20 de junho de 1918, procedeu-se, com pompa e circunstância, à inauguração do imóvel que contou com o trabalho de artistas ligados à ELAD, mormente com o de João Machado.
Anacleto, R. Coimbra: alargamento do espaço urbano no cotovelo dos séculos XIX e XX. In: Belas-Artes: Revista Boletim da Academia Nacional de Belas Artes. Lisboa 2013-2016. 3.ª série, n.ºs 32 a 34. Pg. 127-186. Acedido em https://academiabelasartes.pt/wp-content/uploads/2020/02/Revista-Boletim-n.%C2%BA-32-a-34.pdf
De seu nome completo José dos Santos Sousa Barata, foi sócio fundador e um dos primeiros e dos mais ilustres alunos da Escola Livre das Artes do Desenho fundada em 1878 por António Augusto Gonçalves de quem foi um discípulo dileto.
Joaquim Martins Teixeira de Carvalho refere ainda que foi aluno da Escola Brotero e discípulo de João Machado.
Na Exposição de 1884, expõe um busto da Vénus de Milo, estudo feito em pedra de Outil, obra que foi premiada.
A primeira grande obra conhecida em que participou data de 1886 e foi a casa neomanuelina da Rua do Corpo de Deus.
A partir de 1897 colabora na obra do que é hoje o Palace Hotel do Buçaco, sendo referido em O Conimbricense, de 8 de Julho de 1899 como um dos artistas que mais se têm distinguido pela mestria e perfeição com que têem executado delicadissimos lavores em pedra.
Em 1898, em parceria com João Machado e sob a batuta de António Augusto Gonçalves, interveio no restauro do pórtico principal da Sé Velha.
Em 1904, Joaquim Martins Teixeira de Carvalho refere-o como um dos artistas conimbricenses que trabalha nas obras do Palácio da Regaleira, em Sintra, afirmando, que lavra como nenhum outro artista portugues, em estilo manuelino
Em 1916 esculpiu a fonte do palacete Garcia (hoje Vila Marini).
Fonte do Palacete Garcia
Em 1927 concluiu a magnifica pia batismal da igreja de Santo António dos Olivais.
Pia batismal da igreja de Santo António dos Olivais
No Despertar de 26 de Fevereiro de 1930 é referido numa nota necrológica: Decorador distinto do manuelino, tendo também executado diversas esculturas, deixou espalhada pelo país (Buçaco, Sintra, etc.) obras admiráveis de beleza e elegância. A pia batismal da paróquia de Santo António dos Olivais, a ornamentação de um prédio na Rua Alexandre Herculano e um jazigo em manuelino foram as suas últimas obras, revelando nelas o seu talento de artista, José Barata, pode também dizer-se, foi quem melhor interpretou o estilo manuelino.
Nota: Esta entrada só foi possível pela investigação e disponibilidade da Senhora Professora Doutora Regina Anacleto que, para a mesma, me cedeu as fotografias e as suas fichas referentes a José Barata.
O meu profundo agradecimento.
Face ao aumento da população e às novas condições, quer de mobilidade, quer económicas e sociais, a cidade tinha, forçosamente, de romper os seus limites … Em 1856, quando D. Pedro V visitou a cidade, já havia sido aberta, rompendo a unidade do conjunto outrora pertencente aos frades agostinhos, a rua Olímpio Nicolau Rui Fernandes, que passou a consentir a ligação da baixa à zona alta da cidade, até então apenas possível pela rua de Montarroio.
Por quantas vicissitudes passou o sexacentenário complexo fradesco!
Não se pode deixar de acentuar que a edilidade, ao modificar, arrasar, substituir, alterar as estruturas monacais e ao transformar a quinta anexa, destruiu, no bom e no mau sentido, possivelmente mais neste do que aquele, o património existente, transfigurando, mesmo a fisionomia da urbe.
A 18 de Março de 1875, a Câmara pede ao Rei licença para demolir uma parte do mosteiro crúzio, a fim de aí construir os novos Paços do Concelho e, a 22 de Junho de 1876, sob a presidência de Lourenço Almeida Azevedo, votou, por entre o ruído feito por uma parte da imprensa local que vivamente se insurgiu contra este e outros atos da administração municipal, a primeira verba para custear a demolição parcial do mosteiro, justamente a zona em que se deviam erguer os novos paços municipais. A casa da Câmara, inaugurada a 13 de Agosto de 1879, ostenta, a coroar a fachada principal as armas da cidade … Mas, mal as colocaram, logo o diretor de O Conimbricense, notando o erro existente no escudo, afirma que elas serão para os vindouros “o padrão do desleixo, incúria e ignorância” da vereação citadina de 1879.
…
A partir dos inícios da década de oitenta de Oitocentos, a Câmara começou a pensar seriamente em adquirir os terrenos fradescos, então já hipotecados pelo seu proprietário. Pretendia abrir aí vários arruamentos, construir um passeio público e um matadouro … O processo arrasta-se, mas a edilidade acaba por via a adquirir a quinta … No mesmo dia em que a Câmara toma conhecimento da compra da antiga cerca encarrega o engenheiro Adolfo Ferreira Loureiro de elaborar, sob a direção do presidente, um plano de benfeitorias (ou seja, de urbanização) da quinta, trabalho que aquele apresenta a 23 de Julho de 1885; apesar de só tardiamente vir a ser cumprido, até porque a Sá da Bandeira, antes de virar avenida foi rua, a verdade é que o produto final tem por base o plano de Loureiro, dado que este “traçou a partir do mercado uma grande avenida de 50 metros de largo que termina à entrada do jogo da bola da quinta por uma grande praça. Da praça partem simetricamente duas avenidas para Celas e para Sant’Ana e outras duas em direção aos arcos de S. Sebastião”.
… Em 1889 inicia-se o loteamento do Vale da Ribela e em Junho desse ano são postos em praça diversos espaços destinados à construção de moradias … Os trabalhos desenvolveram-se a bom ritmo e no mês de Dezembro, antes do Natal … inauguraram-se os arruamentos de Sá da Bandeira, de Alexandre Herculano, da Escola Industrial (Oliveira Matos), de Castro Matoso, de Tomar e de Almeida Garrett … “À noite foram pela primeira vez acessos os candeeiros de gaz na Praça D. Luís I (Praça de República), nas ruas Marquês de Sá da Bandeira e Alexandre Herculano”.
Anacleto, R. 2010. Coimbra entre os Séculos XIX e XX. Ruptura Urbana e Inovação Arquitectónica. In Caminhos e Identidades da Modernidade. 1910. O Edifício Chiado em Coimbra. Actas. Coimbra, Câmara Municipal de Coimbra, pg. 153, 155 a 158
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