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António Augusto Gonçalves, que fora, como se referiu, o responsável pelas hospedarias e que trabalhava com o prelado na intervenção da Sé Velha, incumbiu-se de projetar a nova fábrica eclesial.
Senhor da Serra. Hospedarias
A construção do templo, que se processou em duas fases, iniciou-se em 1900 ... Quatro anos depois (Agosto de 1904), a nave e o campanário já se encontravam concluídos. O antigo templo setecentista permaneceu no meio da nave e só quando esta se finalizou é que o demoliram ... em 1907, Gonçalves desloca-se ao Senhor da Serra, a fim de, in loco, observar a obra que se andava a fazer; tratava-se da conclusão da capela-mor e dos anexos.
... Caracterizar estilisticamente a igreja que se ergueu nos primeiros anos de Novecentos no Senhor da Serra, torna-se tarefa difícil, direi mesmo quase impossível, porque ela não apresenta unidade. Mas, quem melhor a descreveu foi o seu autor quando disse que “não houve nunca o propósito de construir uma Capela que fosse escrava dum estilo. Teve-se apenas em vista uma construção agradável. Quem olhar para o esguio da torre supor-se-á em frente dum gótico flamejante; quem examinar os capitéis e cachorros julgar-se-á em frente duma construção românica. O forro do corpo da capela é dum certo sabor românico mas já o da capela-mor, apainelado como é, parece do século XVII”.
Capela do Divino Senhor da Serra
Construiu-se a capela, mas estava despida, nua e fria: sem mobiliário. Ornamentá-la e inserir-lhe retábulos tornava-se imperioso. Em Coimbra procedia-se, na altura, à demolição da igreja da Misericórdia velha ... Os dois retábulos laterais existentes no templo deixaram de ter serventia, ficaram desativados, acabando por ser comprados para o Senhor da Serra ... Um dos retábulos ficou povoado com o seu orago, o Cristo Redentor, mas para o outro, João Machado, “que tantas e tão repetidas vezes tem assinalado o prestígio da escola coimbrã com produções geniais e de verdadeiro triunfo para o seu conceituado nome” esculpiu uma imagem da Senhora da Piedade ... na abside faltava o retábulo-mor. Mais uma vez, António Augusto Gonçalves é o responsável pelo projeto e, em 1908, durante o tempo em que decorreu a romaria (Agosto), o esboço aguarelado esteve exposto, a fim de ser ratificado por todos quantos passavam pelo Senhor da Serra.
... Lateralmente, em dois nichos de maior envergadura, aparecem, cada um por banda, S. Pedro e S. Paulo que se encontram, respetivamente, ladeados por uns outros menores povoados por Santo Agostinho e São Jerónimo e por Santo Ambrósio e São Gregório Magno.
Capela do Divino Senhor da Serra. Retábulo-mor
... No novo templo, a erguer-se lá no píncaro da serra, havia que tentar imitar os tempos de outrora; por isso, nas oficinas da Escola Brotero, o químico Charles Lepierre, então professor naquele estabelecimento de ensino, tentava produzir, com os seus alunos, as vidraças brilhantes capazes de tornar intimista a igreja e de lhe conferir espiritualidade. Deparam-se com inúmeros problemas impeditivos de concretizar a empresa, mas, mesmo assim, ainda colocam nas ventanas os vitrais que representam os quatro evangelistas e no óculo o do “Divino Salvador”.
... As oficinas da Brotero, relativamente à igreja do Divino Senhor da Serra, funcionaram como verdadeiros laboratórios, pois também foi aí, nas de cerâmica, que António Augusto Gonçalves deu corpo ao lambril de azulejos que reveste a nave, historiados com a vida de Cristo. Parece-me poder deduzir, através da consulta do seu acervo e da da imprensa local, que eles foram assentes em duas etapas. A primeira, e mais vasta, decorreu até cerca de 1913 e a segunda, em 1919-1920.
E penso assim, porque na Gazeta de Coimbra se pode ler: “com destino à capela do Senhor da Serra acabam de sair das oficinas de cerâmica da Brotero dois belos paneaux representando os quadros “Ecce Homo” e “Flagelato pro nobis” cujo desenho se deve ao notável artista conimbricense António Augusto Gonçalves. É mais uma produção que honra sobremaneira as oficinas da Escola Brotero e também a arte coimbrã”.
Anacleto, R. 2011. O Senhor da Serra: arte e património, In: Santuário do Divino Senhor da Serra de Semide. História, devoção e espiritualidade, Semide, Senhor da Serra, p. 9-47.
A partir de uma data indeterminada, mas que se pode situar em torno da primeira metade do século XVII, em Ceira, terra que se situa nas proximidades de Coimbra, o casal Martim (ou Martinho) Avô e sua mulher Maria Guilhalme detinham a posse de um Cristo que passou a ser alvo de grande devoção.
Devido a conflitos e desaguisados acontecidos entre os muitos que acorriam a sua casa para venerar e implorar graças à imagem, ou por qualquer outra razão, os possuidores resolveram desfazer-se dela e esconderem-na num local ermo.
Na vizinhança da zona onde o casal vivia localizava-se o mosteiro de Semide, ocupado por monjas beneditinas e um certo dia, quando os seus criados andavam a apanhar lenha, encontraram a imagem e levaram-na para o cenóbio, a fim de ali ser cultuada. O local do achamento parece que ficava dentro da área de jurisdição do mosteiro e as religiosas fizeram aí erguer uma cruz que passou a ser conhecida pelo nome de “Cruz de Longe”.
Divino Senhor da Serra registo
A comunidade, para que a Cruz pudesse continuar a ser venerada pelos muitos que persistiam em acorrer ali, a fim de pedir a proteção do Senhor, acabou por mandar construir um pequeno coberto abobadado no cimo do monte que ficava sobranceiro ao complexo monástico. O alpendre, posteriormente, e no contexto de uma evolução habitual, deve ter visto fechados três dos seus lados e virado capela numa data que se situa entre 1553-1563; mas, ao longo dos tempos, foi recebendo acrescentos e modificações feitos a esmo. Também se lhe iam apondo casas destinadas a dar pousada aos, cada vez mais numerosos, romeiros que acorriam ao Santuário.
A capela do Divino Senhor da Serra em 1882. Desenho a lápis de António Augusto Gonçalves (ABMC)
... A relação do Bispo-conde (Manuel Correia de Bastos Pina) com Mestre Gonçalves, a desenvolver-se no campo artístico e não no ideológico, levou-o a encarregá-lo de, em 1898, riscar um “albergue” destinado a dar guarida aos romeiros, a erguer-se junto da “velha” capelinha do Senhor da Serra e pago pelas esmolas oferecidas ao Santuário. A fim de tomar contacto com o local, para melhor dar corpo à obra, António Augusto Gonçalves deslocou-se ao Senhor da Serra na companhia de Monsenhor José Maria dos Santos. No ano seguinte, em Julho, antes da romaria, as hospedarias (afinal parece que se construiu mais do que uma) já se encontravam concluídas e uma delas tinha capacidade para acomodar 200 pessoas.
Mas, lá no cimo do monte, onde céus e terra quase se tocam, o prelado não se quedou por estes edifícios. Constatando que o pequeno templo não servia para dar resposta a uma romaria tão concorrida como a que acontecia em Agosto de cada ano, pensou em fazer construir uma igreja condigna.
Com efeito, a romaria, tal como o periódico Resistencia, em 1902, a refere era viva e pitoresca: “Anda a cidade [de Coimbra] desde o dia 15, cheia dos ranchos dos romeiros, que vão ou voltam do Senhor da Serra, cuja romaria anual acaba hoje.
Chegada dos romeiros ao apeadeiro de Trémoa. Cerca de 1906
“A estrada da Beira anda animada daqueles grupos, que vão de merendas á cabeça, ou voltam com a imagem do Senhor, cuidadosamente metida na fita do chapéu.
“Quando chegam á Portela, se levam animais, atravessam o rio a vau, sem se importarem com os risos e os ditos, que lhes gritam de cima os que vão pela ponte, ao verem as mulheres levantarem cuidadosamente, e bem alto, as saias para lhas não molhar o rio.
Subindo para o Senhor da Serra. 1901
“Depois lá vai tudo até às Vendas de Ceira, e daí, ladeira acima, até ao alto do monte, donde se avista o telhado alegre da hospedaria da capela, e começa a sentir-se a carícia do vento fresco.
“Param a ouvir um sermão, depois outro.
“Lino da Assunção descreve o efeito cómico dos sermões pregados ao mesmo tempo, em pleno ar e pleno sol.
“Ainda hoje a fama do púlpito é para quem mais berra.
“O quadro não deixaria de ser singularíssimo, e digno dum pincel cáustico.
“O céu límpido e azul, o sol claro e abrasador e a planura do cômoro apinhado de homens, suando dentro nos grossos jaquetões de briche, e de mulheres com saias de seriguilha pela cabeça deixando cair sobre as testas deprimidas as farripas dum cabelo empastado como linho antes de ser cardado. Aqui, no púlpito do adro o pregador confundindo a sua voz com o eco de outra que lhe vem lá de dentro de junto do altar. Mais além outro, na beira dum carro, encostado a uma pipa, e a quem o festeiro abriga com um enorme chapéu vermelho, que mais vermelhas torna as bochechas luzidias do pregador. Debaixo dum toldo de barraca e sobre uma mesa, vê se outro gesticulando, alagado em água que lhe encharca a sobrepeliz e estola, procurando dominar com a voz as metáforas do vizinho, que sobre uma cadeira á sombra dos pinheiros conta dezenas de milagres acontecidos em favor dos devotos que mandam pregar sermões. E, acabado um sermão, retira-se o grupo que o encomendou e aproxima-se outro que o prometeu. E todas estas vozes já roucas procurando dominar o ruído confuso dos descantes, das guitarras, das algazarras dos beberrões, das altercações das rivalidades estimuladas pelo álcool e até das injúrias e grosserias das rixas travadas pela posse duma mulher, ou pela liquidação de velhas contas que vieram abertas lá desde as aldeias. E o sol de Agosto dardejando inclemente sobre os largos chapéus e tornando escuros os rostos luzidios e afogueados e ainda mais negros os beiços enegrecidos pelo vinho e pelo pó; e como comentário às palavras dos padres quase áfonos, que clamam pela justiça e misericórdia divinas, as vozes vibrantes das tricanas de Coimbra, menos devotas e mais alegres, bailando e cantando ao som das violas o Manuel ceguinho ou o Oh ladrão! ladrão!
“Por fim entram na capela onde o Cristo agoniza numa cruz de pedra, deixando cair a cabeça para mostrar o cabelo negro que cresce, como diz a lenda, todos os anos.
“Pelas paredes, pregadas em ripas de madeira, vêem-se tranças de cabelo de todas as cores, votos que fazem os doentes, por saberem que é este o sacrifício que mais gosto dá ao Senhor da Serra”.
Anacleto, R. 2011. O Senhor da Serra: arte e património, In: Santuário do Divino Senhor da Serra de Semide. História, devoção e espiritualidade, Semide, Senhor da Serra, p. 9-47
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