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O arquiteto Augusto de Carvalho da Silva Pinto aderiu mais tarde a este movimento, mas nem por isso deixou de, ao longo dos tempos, o impulsionar ativamente; nascido em Lisboa, depois de ter sido professor na Escola Superior de Belas-Artes deslocou-se a França, a fim de aí aprofundar os seus conhecimentos. Regressou em 1895 e radicou-se em Coimbra, terra que adotou como sua e onde, para além de ter sido diretor e professor da Escola Industrial Brotero e de ter colaborado com a Escola Livre das Artes do Desenho, deixou numerosos trabalhos, alguns deles também relacionados com a arte do ferro.
Augusto de Carvalho da Silva Pinto
António Augusto Gonçalves entregou-se ao ressurgimento do trabalho em ferro com o mesmo fanatismo que lhe era reconhecido no respeitante às outras artes e “encontrando” em Manuel Pedro de Jesus que, por volta de 1900, já era sócio da Escola Livre, aptidões excecionais para a serralharia decorativa, incentivou-o a trabalhar nesse campo. O artista foi contemporâneo e comparticipante, com João Machado, no desenvolvimento e na afirmação, em Coimbra, da arte do ferro forjado.
Quando finalmente, em 1907, na Escola Industrial Brotero, começaram a funcionar as oficinas de marcenaria e talha, de serralharia, de cerâmica e de formação, Manuel Pedro foi nomeado mestre da de serralharia, lugar que, em 1925, voltava a ocupar, sendo-lhe então reconhecida uma enorme competência e a capacidade de saber aliar a um profundo conhecimento prático da sua especialidade, a teoria necessária, para que o ensino resultasse profícuo e consistente.
Os serralheiros da Escola de Coimbra
Provavelmente, Manuel Pedro não se manteve ininterruptamente à frente da oficina de serralharia da Escola Industrial Brotero desde 1907 até depois de 1925, porque se sabe que, em 1914, foi exonerado, a seu pedido, do lugar de mestre da referida oficina António Maria da Conceição “que, enquanto ali esteve, desempenhou esse cargo de modo a merecer elogios de todo o professorado de referida Escola”.
A indústria contemporânea do ferro forjado renasceu em Coimbra com a nova centúria, viveu na cidade, mas espalhou-se por todo o país. Homens e mulheres de bom gosto e fartos meios económicos faziam as suas encomendas aos serralheiros do burgo, que também não eram esquecidos pelos arquitetos lisboetas e não só.
Adães Bermudes, arquiteto de Lisboa e engenheiro das construções escolares, em 1907, ao passar por Coimbra vindo de Viseu, demorou-se algumas horas para entregar os desenhos de umas varandas destinadas a decorar um grande prédio situado num dos mais concorridos lugares de Lisboa e que ele projetara, a fim de elas serem executadas, em ferro forjado, por quatro artistas desta cidade. O convite foi considerado uma honra e a encomenda devia importar em 1:400$00. As peças utilizam o estilo moderno e o ferro curva-se dando o recorte de animais em linhas elegantes, “formando uma renda de um desenho leve e cheio de espírito, sem perder a aparência de solidez que a natureza da matéria impõe como condição essencial”.
Arnaldo Redondo Adães Bermudes
A execução deste trabalho foi entregue aos artistas António Maria da Conceição, João Gomes, Lourenço de Almeida e Manuel Pedro de Jesus; em setembro desse mesmo ano a primeira remessa da tarefa já havia sido enviada e o redator do jornal Resistencia soubera “que o arquitecto ficara satisfeitíssimo com a obra dos serralheiros de Coimbra”.
O Noticias de Coimbra tecera algumas observações acerca dos trabalhos que Adães Bermudes encomendara àqueles artistas e o Resistencia transcreveu os comentários: “Além desta tarefa, destinada a um edifício em construção na Avenida D. Amélia [atual Almirante Reis], em Lisboa, também o mesmo arquitecto confiou ao sr. Alfredo Fernandes Costa a execução de um portão no estilo D. João V, para o palácio do conde de Agrolongo.
Palacete do Conde de Agrolongo. Imagem acedida em https://lisboadeantigamente.blogspot.com/2016/11/palacete-do-conde-de-agrolongo.html
É com grande satisfação que tornamos públicas estas apreciações aos trabalhos dos nossos conterrâneos que tanto se têm dedicado pelo desenvolvimento da sua arte, deixando ganância para só honrarem os seus nomes de artistas e a sua terra”.
Raul Lino desenhava peças para eles forjarem; Álvaro Machado, quando viu, em Lisboa, a grade de um túmulo executada por Manuel Pedro de Jesus, teve esta expressão: "Mas como é que os serralheiros de Coimbra têm a liberdade para amoldar o ferro como desejam!?". Afirmação feita por um arquiteto de reconhecido mérito que, por si só, era suficiente para legitimar a competência dos serralheiros aeminienses.
Em 1928 o comissário geral representante, em Portugal, da exposição de Sevilha convidou os artistas conimbricenses ligados à serralharia artística para participarem na exposição com trabalhos no estilo D. João V.
Também na exposição que Raul Lino levou a efeito, em Coimbra, nas salas do Instituto, onde apresentou, entre projetos, anteprojetos, plantas, esboços, fotografias, etc., trinta e nove peças, foi feita referência a trabalhos “de distinctos artistas de Coimbra”, concretamente a João Machado, na escultura, e a Manuel Pedro de Jesus e a Lourenço Chaves de Almeida, no ferro forjado.
Raul Lino escolheu a cidade de Coimbra para expor os seus trabalhos, “de construção económica e em estilo português”, em virtude de se estar a programar o bairro do Penedo da Saudade, “onde ficariam muito bem prédios daquele tipo” e também porque “o meio artístico de Coimbra permit[ia] uma avaliação correcta da sua obra”.
Raul Lino
No entanto, para sobreviver, a arte do ferro não podia apenas contar com encomendas vultuosas, teria de se democratizar, como bem dizia o Dr. Quim Martins e, para tal, fazer com que se tornassem necessários os objetos mais simples e de uso corrente, manufaturados naquele metal. A par com os grandes candelabros, com os leitos pompeianos, com os portões da Faculdade de Letras ou do Palácio da Justiça, teriam de surgir as grades das varandas, os pequenos portões de jardins, as bandeiras das portas, as tabuletas de anúncios, os gradeamentos dos muros, os portais dos jazigos, as pequenas grades de campas, os puxadores das gavetas e as dobradiças das arcas. Realmente, a arte do ferro, democratizou-se, a indústria vingou e, para além das peças que ainda hoje ornamentam tantas casas e causam orgulho aos que as fruem, Coimbra passou a ser, como lhe chamou Vergílio Correia, a “cidade das grades”.
Avenida Dias da Silva. Grade de varanda
Largo João Paulo II. Casa dos Martas. Grade da bandeira da porta
Coimbra, “a cidade das grades”.
Ninguém podia imaginar que nas negras e mal apetrechadas serralharias de Coimbra, entre as labaredas rubras das suas forjas e o ruído dos malhos tirando chispas fulgurantes dos vagalhões candentes, existia, latente, à espera de a despertarem, essa força criadora que transforma o ferro duro e de aspeto indomável em peças de requintado gosto artístico.
Anacleto, R. A arte do ferro forjado na cidade do Mondego, primeira metade do século XX. In: História, Empresas, Arqueologia Industrial e Museologia. 2021. Edição Imprensa da Universidade de Coimbra, pg. 259-290.
Os obreiros das novas arquitecturas
Os projetistas dos imóveis que neste período se iam edificando na cidade e especificamente no novo Bairro de Santa Cruz, a muitos dos quais já fomos fazendo referência ao longo do texto, eram, na sua maioria construtores civis, embora também encontremos o nome de condutores, mestres-de-obras e similares a riscarem prédios, a responsabilizar-se pela sua construção e a comprometerem-se, de acordo com regras estipuladas pela edilidade, com a segurança do operariado.
Através das deliberações tomadas na sessão da Câmara Municipal de Coimbra a 10 de setembro de 1908, fica-se a saber que, para poder assinar a planta de um edifício ou o projeto de modificação de uma qualquer fachada, teriam os autores de ser “engenheiros, arquitectos, desenhadores, ou condutores de obras públicas, ou mestres de obras devidamente inscritos”.
Contudo, um mestre-de-obras, para conseguir o diploma submeter-se-ia, obrigatoriamente, a um exame que, de acordo com o anúncio publicado na folha O Operario de Coimbra, constava “1.º Da leitura de um trecho facil da língua Portugueza; 2.º Das quatro operações sobre inteiras e decimaes; 3.º De calculos de areas e volumes das figuras mais usuaes; 4.º Da intelligencia e explicação de um plano de construcção civil; 5.º Do traçado de um pequeno projecto, copia ou original á escolha do candidato, que poderá servir-se de papel quadriculado; 6.º De noções geraes sobre materiaes de construcção, especialisando-se o que mais directamente se refira a estabilidade da cosntrucção e a segurança dos operários n'ella empregados”.
De entre os mestres-de-obras e os construtores civis a laborar na cidade, e naquele período, podem referir-se os nomes de “Abílio Augusto Vieira, de Cellas; Accacio Theodoro, da Portella da Cobiça; Antonio Augusto Pedro, Mont'Arroyo; Antonio da Silva Feitor, R. dos Militares; Antonio Simões; Benjamim Ventura; Francisco Antonio de Meira; Francisco de Campos; Francisco Collaço; João Antonio Maximo; João Gaspar Marques Neves; Joaquim Augusto Ladeira; Joaquim dos Santos Porto; Joaquim Simões Misarella; José Pedro de Jesus; José dos Santos Marques; Manuel Cardoso”.
Se se pensar, a nível de arquitetos e de acordo com o Annuario Commercial de Portugal, entre 1901 e 1925, apenas um, Augusto de Carvalho da Silva Pinto, aqui residia e mantinha atividade regular; contudo, não se pode escamotear a importância que neste período Raul Lino exerceu no contexto arquitetónico da cidade, quer através dos edifícios que projetou quer através da influência que a exposição dos seus trabalhos desempenhou tanto, lato sensu, na mentalidade da urbe, como no gosto de potenciais encomendantes.
Fig. 49 – Assinatura do arquiteto Silva Pinto.
O primeiro, Silva Pinto, nasceu em Lisboa no ano de 1865 e faleceu na mesma cidade, onde foi procurar cura para os seus males, em 1938. Depois de ter terminado o curso especial de Arquitetura da Escola de Belas-Artes de Lisboa vai completar a sua formação na École des Beaux-Arts parisiense. Quando regressa de Paris, em 1895, fixa residência em Coimbra, dado que o arquiteto José Luís Monteiro, amigo do conde do Ameal, lho recomenda a fim de dirigir as obras de adaptação do colégio de S. Tomás, sito na Rua da Sofia, a residência do titular. A verdade é que se radicou na cidade e nela permaneceu até ao fim da vida, envolvendo-se nos mais diversos empreendimentos arquitetónicos e culturais que então se desenvolviam na urbe. Da sua mão saíram muitos e variados projetos de edifícios que espalham e espalhavam, porque alguns já desapareceram sob o camartelo cego dos poderes públicos, pela cidade; alem disso exerceu o magistério na Escola Brotero e envolveu-se com os cometimentos e com a “política” da urbe, e não só.
Silva Pinto
O arquiteto Raul Lino nasceu em Lisboa a 21 de novembro de 1879 e aí faleceu a 14 de julho de 1974.
Fig. 50 – Arquiteto Raul Lino.
Iniciou a sua formação em Inglaterra e, depois de 1893, continuou-a na Alemanha, onde foi discípulo de Albrecht Haupt, mestre que marcou profundamente o seu pensamento e a compreensão da corrente modernista.
Nos últimos anos do século XIX, certamente por influência de um take off tardio, Lisboa começou a crescer e muitas das novas zonas foram projetadas a partir dos princípios do design moderno vindo de Paris. Mas esses projetos não interessavam a Raul Lino, para quem os valores tradicionais e nacionais, como o amor pela pátria, para além de terem feito parte da sua formação, exerciam sobre ele uma profunda influência.
O alarife nutria uma grande simpatia pelos artistas de Coimbra ligados à ELAD, utilizando mesmo, e frequentemente, nos imóveis que projetava as cantarias e os ferros forjados saídos das suas oficinas; o gosto pela utilização azulejar como elemento decorativo também era comum. Esta afinidade talvez encontre explicação, porque Lino nutria o mesmo empenho, admiração e culto artístico pela arte nacional que encontrava seguidores em António Augusto Gonçalves e nos seus discípulos, homens que, em Coimbra iam “modestamente fazendo a renovação das nossas indústrias de arte”.
Joaquim Martins Teixeira de Carvalho, ‘Quim Martins’
Quim Martins, no seu jornal Resistencia, escrevia que em Raul Lino se encontra, o que era raro nos arquitetos, a preocupação com “physionomia da região, e com a côr da paysagem” e, além disso, “tira partido de tudo que possa dar um ar pittoresco e regional, á sua construção”.
Casa na Avenida Marnoco e Sousa. Projeto do Arquiteto Agostinho da Fonseca. Foto Daniel Tiago, 2006
O artista, que frequentemente se deslocava a Coimbra, ao ter conhecimento de que se encontrava em projeto a abertura do Bairro do Penedo da Saudade, levou a cabo na sede do Instituto uma exposição dos seus trabalhos, porque, de acordo com o «Noticas de Coimbra» “ficariam ali muito bem prédios daquele tipo”; a mostra inaugurou-se no dia 14 de março de 1908.
Av. Marnoco e Sousa, placa toponímica
O “festejado artista” vira já os seus méritos reconhecidos pela intelligenza da cidade que o fizera, em 1904, sócio do Instituto de Coimbra.
Anacleto, R. Coimbra: alargamento do espaço urbano no cotovelo dos séculos XIX e XX. In: Belas-Artes: Revista Boletim da Academia Nacional de Belas Artes. Lisboa 2013-2016. 3.ª série, n.ºs 32 a 34. Pg. 127-186. Acedido em https://academiabelasartes.pt/wp-content/uploads/2020/02/Revista-Boletim-n.%C2%BA-32-a-34.pdf
A burguesia citadina instala-se no Bairro de Santa Cruz (Continuação)
Em Coimbra, este estilo encontra-se disperso por toda a cidade, quer em grande número de janelas deste tipo que, na sua maioria, apresentam uma extrema simplicidade, quer em algumas casas. No entanto, o neomanuelino coimbrão, aquele que saiu mesmo do risco e do cinzel dos artistas locais, é tratado de maneira sóbria e denota profundos conhecimentos do estilo quinhentista.
Esta casa da Rua Alexandre Herculano, para além do andar térreo, apresenta três pisos, cada um com sua varanda saliente, de pedra lavrada, a ornamentar a fachada que, na parte superior, ostenta elegante loggia. Uma esfera armilar em relevo dá cunho à dupla entrada. No conjunto, os elementos manuelinos abundam: cordas, escudos, esferas armilares, cruzes da Ordem de Cristo e arcos conopiais, fazem com que este seja um dos melhores exemplares citadinos do tipo. Porque indocumentado, não permite que se conheçam os nomes do proprietário e do projetista, bem como a data da sua feitura.
Fig. 28 – Edifício neomanuelino. [Foto RA].
Edifício neomanuelino, pormenor. Foto RA
Edifício neomanuelino, pormenor. Foto RA
Mas nesta rua erguem-se vários edifícios com interesse; dois desses imóveis foram projetados por Raul Lino, arquiteto que, nesta data, ou seja, depois de 1902, já se impunha no nosso país pela obra realizada e tinha grande aceitação na urbe mondeguina.
Quase em frente ao já referido edifício neomanuelino, em 1908, Albino Caetano da Silva começa a construir uma moradia riscada por aquele alarife.
Fig. 29 – Moradia de Albino Caetano da Silva. [Foto RA].
Moradia de Albino Caetano da Silva, pormenor. Foto RA
O edifício foge, obviamente, ao que se fazia na cidade, mas se se pensar em termos estendidos, acaba por refletir um gradual, embora moderado, crescimento económico dos encomendantes, passível de lhes permitir recorrer, para riscar as suas moradias, a artistas que não vivem no burgo; esta possibilidade introduz, paulatinamente, uma certa modernidade arquitetónica, que inicia a alteração fisionómica da urbe.
Raul Lino, para além de projetar a moradia de Caetano da Silva, preocupa-se com os pormenores decorativos e desenha os azulejos policrómicos que se encontram a ornamentar as paredes das fachadas.
Antes de 1915 já se perfilava a possibilidade de, em Coimbra, vir a ser construído um edifício que servisse de sede à Associação Mundial de Académicos (atual Associação Cristã da Mocidade – ACM); o local elegido situava-se no gaveto formado pelas Ruas Alexandre Herculano e Venâncio Rodrigues.
Raul Lino, o arquiteto escolhido, começou a riscar o projeto em janeiro de 1916 e em meados do ano seguinte era exposta na Calçada, numa das montras dos Grandes Armazéns do Chiado, a maqueta aguarelada do edifício; parece que a feitura do imóvel foi custeada pelo International Comittee of Young Man's Christian Associatons, de Nova Iorque.
Edifício da Associação Cristã da Mocidade (ACM), pormenor. Foto RA
Fig. 30. Edifício da Associação Cristã da Mocidade (ACM). Pormenor. [Foto RA].
Não cabe aqui referir quais os objetivos da instituição, mas, de acordo com a imprensa que se publicava na época, o edifício projetado por Raul Lino era “um dos ornamentos do Bairro de Santa Cruz” e o arquiteto, no interior, interpretou “admiravelmente o princípio utilitário e filantrópico da instituição e, ao dar ao exterior o estilo português modernizado, manifestou o seu espírito de adaptação ao meio particular em que cada grémio se estabelece, num perfeito equilíbrio entre o nacionalismo e o cosmopolitismo exagerados”.
Finalmente, no dia 20 de junho de 1918, procedeu-se, com pompa e circunstância, à inauguração do imóvel que contou com o trabalho de artistas ligados à ELAD, mormente com o de João Machado.
Anacleto, R. Coimbra: alargamento do espaço urbano no cotovelo dos séculos XIX e XX. In: Belas-Artes: Revista Boletim da Academia Nacional de Belas Artes. Lisboa 2013-2016. 3.ª série, n.ºs 32 a 34. Pg. 127-186. Acedido em https://academiabelasartes.pt/wp-content/uploads/2020/02/Revista-Boletim-n.%C2%BA-32-a-34.pdf
A burguesia citadina instala-se no Bairro de Santa Cruz (Continuação)
A Rua Venâncio Rodrigues abre-se paralelamente à praça de República e liga a confluência da Oliveira Matos com a Castro Matoso à Rua de Tomar, cortando, aproximadamente a meio da sua extensão, em ângulo reto, a Alexandre Herculano.
Nesta artéria erguem-se três moradias que se encontram documentadas.
A que primeiramente se levantou tem risco de Raul Lino, é posterior a 1908 e foi mandada construir por António Maria Pimenta, pai de Belisário Pimenta (1879-1969). Insere-se dentro das linhas normalmente utilizadas por aquele arquiteto.
Fig. 26 – Casa de António Maria Pimenta. [Foto RA].
Casa de António Maria Pimenta, pormenor. Foto RA.
A outra, pertencia ao capitão do exército Alcino Miguel Pereira Rodrigues; o pedido de autorização para a construção do edifício, que se situa na esquina das Ruas Oliveira Matos e Venâncio Rodrigues, deu entrada na Câmara Municipal de Coimbra a 20 de dezembro de 1926 e foi deferido três dias depois. Joaquim da Costa Netto, construtor civil, declarou-se responsável pela direção dos trabalhos. Penso poder apontar para a sua mão como autora do projeto.
Casa de Alcino Miguel Pereira Rodrigues. Foto RA.
O requerimento para a construção da terceira, uma casa para habitação e a mais tardia, foi endereçado pela Carpintaria Mecânica Conimbricense, com sede na Avenida Fernão de Magalhães, à edilidade aeminiense, através do seu sócio gerente João Gaspar Marques Simões, em maio de 1932. É o próprio Marques Simões que se responsabiliza pela obra e, como ele era construtor civil diplomado, calculo que também foi da sua responsabilidade o risco do edifício, neste caso mais elaborado que o anterior, a inserir-se em linhas gramaticais Art Déco.
Fig. 27 – Casa de habitação pertencente à Carpintaria Mecânica Conimbricense. [Foto RA].
Casa de habitação da Carpintaria Mecânica Conimbricense, pormenor. Foto RA.
Uma nota interessante que ressalta dos documentos assinados por Netto e por Simões passa pelo primeiro declarar que se responsabiliza “e nos termos do regulamento aprovado por decreto de 6 de Junho de 1895 para a segurança dos operarios em construção civil”, enquanto o segundo afirma que se responsabiliza “nos termos do regulamento de segurança dos operarios de 6 de Maio de 1909”. Sendo os dois termos bem posteriores a 1909, não se percebe a razão que os levou a regerem-se por regulamentos diferentes.
Desse largo centralizante que se abre no topo da Avenida Sá da Bandeira, verdadeiro núcleo aglutinador das mais diversas artérias viárias que ali desembocam, ou se se quiser, em sentido inverso, que dali partem, destaca-se a Rua Alexandre Herculano a estender-se até aos Arcos do Jardim (Largo João Paulo II).
Logo à esquerda de quem sobe, no início da via, deparamo-nos com um edifício neomanuelino.
Contrapondo-se ao lugar ocupado pelo neogótico na maioria dos países desenvolveu-se, em Portugal, o neomanuelino que teve a sua certidão de nascimento na janela que se inscreve no Paço da Pena, em Sintra, numa das paredes do Pátio dos Arcos, forrada com azulejos policrómicos que utilizam, na parte inferior, como motivo decorativo a esfera armilar. A ventana, riscada por D. Fernando II, resulta de uma aproximação e simultaneamente de uma recomposição de um comportamento artístico de outrora, pois o monarca inspirou-se na janela da impropriamente chamada Casa do Capítulo do Convento de Cristo de Tomar.
Anacleto, R. Coimbra: alargamento do espaço urbano no cotovelo dos séculos XIX e XX. In: Belas-Artes: Revista Boletim da Academia Nacional de Belas Artes. Lisboa 2013-2016. 3.ª série, n.ºs 32 a 34. Pg. 127-186. Acedido em https://academiabelasartes.pt/wp-content/uploads/2020/02/Revista-Boletim-n.%C2%BA-32-a-34.pdf.
Já antes de 1915 se perfilava a possibilidade de, em Coimbra, se vir a construir um edifício que servisse de sede à Associação Mundial de Académicos; o local escolhido situava-se no gaveto formado pelas ruas Alexandre Herculano e Venâncio Rodrigues, em pleno bairro de Santa Cruz, projetado no final de Oitocentos para dar resposta à necessidade de alargamento do espaço urbano da cidade, mas vítima de um processo de lentidão, bem de acordo com o fraco poder económico da urbe. As publicações periódicas que então saiam dos prelos mondeguinos, em dezembro do referido ano, previam a inauguração do imóvel para o mês outubro seguinte, mas a verdade é que Raul Lino, o arquiteto escolhido, só começou a riscar o projeto em janeiro de 1916.
Raul Lino
Desenho do edifício publicado em Atlantida, 18, Lisboa, 1917.04.15
…Ainda antes de conceber o edifício da ACM [Raul Lino], riscou o do Jardim-Escola João de Deus [que se ergue na Alameda Júlio Henriques], inaugurado a 2 de abril de 1911.
… A inauguração da sede da ACM foi protelada, certamente por razões óbvias e, em meados de 1917, era exposta numa das montras da filial conimbricense dos Grandes Armazéns do Chiado uma maqueta aguarelada que dava uma perspetiva do edifício destinado a sede da Federação Mundial de Académicos; parece que a feitura do imóvel fora custeada pelo International Comittee of Young Man's Christian Associatons de Nova Iorque.
O edifício na sua forma original
… Nos edifícios construídos para sede da coletividade, o ginásio já então constituía uma das partes essenciais do edifício e o átrio funcionava como verdadeiro motor da mesma, pois a par com os bilhares e os cueroques (os jogos de azar encontravam-se interditos) a dependência, graças a um confortável mobiliário, convidava a que se ouvisse música ou se conversasse amenamente. Nas proximidades encontrava-se instalado um pequeno bar de apoio, que não servia bebidas alcoólicas.
No salão nobre realizavam-se palestras, relacionadas sobretudo com a educação cívica e moral, e sessões de cinema, onde, a par com películas cómicas e dramáticas, passavam filmes instrutivos e científicos. Existia ainda uma sala de leitura em que se podia encontrar, para além de revistas e jornais nacionais e estrangeiros que “facilitassem ao estudante um meio de se conservar ao corrente dos acontecimentos sociais, científicos e literários”, uma pequena biblioteca.
… De acordo com a imprensa que se publicava na época, o edifício projetado por Raul Lino era “um dos ornamentos do Bairro de Santa Cruz” e o arquiteto, no interior, interpretou “admiravelmente o princípio utilitário e filantrópico da instituição e, ao dar ao exterior o estilo português modernizado, manifestou o seu espírito de adaptação ao meio particular em que cada grémio se estabelece, num perfeito equilíbrio entre o nacionalismo e o cosmopolitismo exagerados”.
Finalmente, no dia 20 de junho de 1918, procedeu-se à inauguração do edifício, ato que se revestiu de uma enorme solenidade e imponência e que contou com a presença de quase todos os ministros e embaixadores estrangeiros acreditados junto do governo português.
O edifício na atualidade
Anacleto, R. O edifício da ACM em Coimbra, In: Diário de Coimbra, n.º 22229, Coimbra, 1997.05.25.
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