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Os protestos académicos, desencadeados na Universidade de Coimbra a 28 de Fevereiro de 1907, e renovados no dia seguinte, 1 de Março, tiveram como origem e pretexto a reprovação de um candidato ao grau de doutor em Direito ... A rebelião estudantil visava essencialmente reformar os estudos jurídicos e todo o sistema pedagógico da Universidade.
... A greve, que se alastrou por escolas superiores e secundárias, teve repercussões no campo político e educacional. Veio a originar o encerramento das Câmaras e a ditadura franquista. E, no plano educativo, a República viria a concretizar, logo em Outubro de 1910, algumas das reivindicações feitas pelos estudantes no decurso desta crise, como, por exemplo, a abolição do foro académico e do juramento religioso e a derrogação da obrigatoriedade do uso da capa e batina.
... Eça de Queirós, nas Notas Contemporâneas, recordava os seus tempos de Coimbra:
«Por toda essa Coimbra, de tão lavados e doces ares, do Salgueiral até Celas, se erguia ela [Universidade], com as suas formas diferentes de comprimir, escurecer as almas: - o seu autoritarismo anulando toda a liberdade e resistência moral; o seu favoritismo, deprimindo, acostumando o homem a temer, a disfarçar, a vergar a espinha; o seu literalismo, representado na horrenda sebenta, na exigência do ipsis verbis (…); o seu foro, tão anacrónico como as velhas alabardas dos verdeais que o mantinham; (…) a sua «chamada» espalhando nos espíritos o terror disciplinar de quartel; os seus lentes crassos e crúzios (…) o praxismo poeirento dos seus Pais Novos, e a rija penedia dos seus Penedos!».
O quadro gizado pela magistral pena queirosiana permite-nos facilmente adivinhar o ensino ministrado na Universidade, no período em que a frequentou (1865-1870): «conservador, anacrónico, irracional e opressor ... Por isso o reprovaram e só por isso».
... O movimento estudantil grevista teve uma tal amplitude que o governo foi forçado a ordenar o encerramento dos seguintes estabelecimentos de ensino: Universidade de Coimbra, Escolas Politécnicas, Médica e de Farmácia de Lisboa e Porto, Curso Superior de Letras, Institutos Industriais de Lisboa e Porto e Instituto de Agronomia e Veterinária. Proibiram-se todas as reuniões de estudantes. Os reitores dos liceus tinham instruções para não deixar entrar nos edifícios ninguém à exceção dos alunos ou pessoas das famílias destes reconhecidas como tal.
... o governo e o Conselho de Decanos tinham decidido que a expulsão dos alunos era a única maneira de manter o princípio da autoridade. A polícia universitária foi, pois, procurar os cabeças do motim ... «Sete estudantes não constituiriam manifestação. (…) É injusto tornar alguns homens responsáveis por actos que muitos praticaram sem premeditação»
O governo só veio a decretar a reabertura da Universidade depois das férias da Páscoa, a 8 de Abril. Contudo, a Academia deliberou manter a greve enquanto os colegas expulsos não fossem amnistiados.
... Após a época dos exames, o governo amnistiou os sete estudantes expulsos e permitiu que os chamados intransigentes pudessem matricular-se condicionalmente nos anos imediatos, submetendo-se aos exames do ano anterior depois das férias de Natal ... por Decreto de 26 de Agosto de 1907, o governo comutou as penas dos sete estudantes expulsos que apenas vieram a sofrer castigos de censura e de repreensão.
Gonçalves, M.N.L. A greve académica de 1907. Suas repercussões políticas e educacionais. In Revista Lusófona de Educação, 2007, 9, 61-84.
Afrontando as expressas recomendações das autoridades militares, Belisário Pimenta, ... viveu entusiasticamente a luta académica. Participou na greve geral, não encerrou matrícula como impunha o Governo, não fez exames. Foi um dos 160 intransigentes.
... Ele foi um repórter da crise: um repórter privilegiado, que a via pelo lado de dentro; e um repórter engajado, porque era um militante da causa estudantil.
.... Nesse dia 8 de Abril, levantou-se cedo, fardou-se e encaminhou-se para a Rua Larga, com uma grande ânsia de saber a atitude dos rapazes. O nevoeiro denso que cobria a Alta da cidade mal deixava ver ao fundo, junto à Porta Férrea, a mancha negra e compacta da multidão de estudantes, que, silenciosa, se estendia desde a Rua de São João. Os cavalos da guarda passavam, em trote indeciso, para um e para outro lado. A polícia invadira a Via Latina e os Gerais ... nenhum estudante, salvo um ou outro padre ou militar, entrara na Universidade ... “A greve era, pois, geral e solene”.
Ilustração Portuguesa, n.º 55, de 11.3.1907
... Foi depois à esquadra da Alta, onde estavam os estudantes presos na madrugada anterior ... expulsos, que, por força da decisão do Conselho de Decanos que os punira disciplinarmente, haviam sido compelidos a sair da cidade e que a ela não podiam regressar, tinham tentado entrar discretamente em Coimbra ... Na Baixa, todos falavam do brilhantismo da greve. No Lusitano – café que era o ponto de encontro dos republicanos na Calçada – e no passeio em frente, discutiam-se, permanentemente e com grande animação, as incidências da greve. Do outro lado da rua, os franquistas, no seu pouso do costume, às portas da Havaneza, mostravam-se furiosos. Nas montras de algumas lojas da Baixa exibia-se, “numa bela fotogravura com dizeres encomiásticos por baixo”, o retrato de José Eugénio Dias Ferreira, “pobre vítima amarrada ao poste da celebridade” ... No dia 10 de Abril, na Calçada, liam-se com avidez e discutiam-se os discursos feitos nas Câmaras no dia anterior .. Na noite seguinte, os estudantes expulsos foram libertados e conduzidos de comboio para Lisboa ... Houve manifestação de estudantes na estação e muitos dos manifestantes invadiram o comboio e acompanharam-nos até Pombal
... A animação crescente nos cafés da Baixa, particularmente no Lusitano, onde os rapazes se concentravam para saberem as novidades, para discutirem os acontecimentos do dia
... Sobre os estudantes caía agora todo o tipo de pressões: dirigentes da Sociedade Filantrópica Académica ameaçavam estudantes protegidos de lhes não ser concedida ajuda no ano letivo seguinte, se fossem grevistas ... Comandante de Infantaria 23, convocava os cadetes, para lhes recordar que, faltando aos atos, não lhes seria renovada a licença; o Reitor chamava os estudantes que eram também professores de liceu, para lhes sugerir que fizessem declarações de repúdio à greve, sob pena de lhes retirar as licenças que os liceus lhes haviam concedido para estarem em Coimbra; até o Bispo-Conde levou à demissão um professor do Seminário, que era também estudante de Teologia, que se recusou a aceitar as pressões que sobre ele exercia.
... E esse nome – pulhas – foi o que ficou colado aos estudantes que furaram a greve académica de 1907. Nas noites seguintes, cantava-se em coro no Lusitano uma cançoneta, cuja letra começava assim: “Para poder furar a greve/ Todo o pulha mete, mete (bis)/ Requerimento p’ra acto./ Mete, mete/ Mete, mete/ Em novecentos e sete./
Ribeiro, V.A.P.V. 19. 2011. As memórias de Belisário Pimenta. Percursos de um republicano coimbrão. Dissertação de Mestrado em História Contemporânea. Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Pg. 21 a 31
... a grande aglomeração de rapazes, que descia a escadaria, (da Via Latina) soltando frases de indignação, encabeçada por um pequeno grupo que erguia em ombros o licenciado José Eugénio Dias Ferreira. Aquela multidão de estudantes saiu pela Porta Férrea, meteu pela Rua Larga e desceu para a Baixa e, sempre a engrossar, seguiu para a Arregaça, para casa de José Eugénio, onde se ouviram discursos inflamados.
Dias Ferreira fora tratado de forma indigna e reprovado por unanimidade no ato de conclusões magnas, o que já se prenunciava, pois corria na cidade o rumor de que o doutorando – que na sua tese adotara uma metodologia positivista e exarara uma dedicatória a Teófilo Braga – seria reprovado.
Esse foi o rastilho que fez rebentar o grave conflito que ficou conhecido como a questão académica de 1907.
A assembleia magna da academia, reunida nessa noite, deliberou a falta às aulas no dia seguinte. O Governo de João Franco, reagindo desproporcionadamente, fez publicar, logo no dia 2 de Março, um decreto que suspendeu as atividades académicas até que fossem julgados os processos disciplinares a instaurar, relativos aos acontecimentos. O subsequente encerramento da Universidade e o envio de fortes contingentes policiais para Coimbra transformou aquilo que começou por ser apenas um incidente referido à reprovação de Dias Ferreira em um movimento reivindicativo de âmbito muito mais vasto, que se insurgia contra o anquilosamento da instituição universitária e reclamava a reforma profunda dos estudos.
... a deslocação a Lisboa de uma delegação da academia de Coimbra, encabeçada por António Granjo e composta por mais de quatrocentos estudantes, mandatada para apresentar ao Governo e ao presidente da Câmara dos Deputados exposições críticas sobre o ensino universitário, deram projeção nacional à questão académica. A causa coimbrã foi secundada pelas instituições universitárias de Lisboa e do Porto e pelos estudantes dos liceus. Os deputados republicanos, especialmente António José de Almeida, levaram o debate sobre a crise académica e sobre o ensino à Câmara dos Deputados e Hintze Ribeiro interpelava o Governo sobre a questão na Câmara dos Pares ... Bernardino Machado, figura de grande prestígio, que, por solidariedade para com os estudantes expulsos, pedira a exoneração do seu cargo de professor catedrático da Faculdade de Filosofia ... Confiando no efeito dissuasor das penas disciplinares decretadas, João Franco determinou que a Universidade reabrisse no dia 8 de Abril.
Enganou-se. A greve geral foi plenamente retomada a partir desse dia e a solidariedade com a Academia de Coimbra estendeu-se às escolas superiores de Lisboa e do Porto. Na semana seguinte, o Governo mandou encerrar todos os estabelecimentos do ensino superior e técnico do país. E, em 18 de Abril, foi nomeado ... um novo Reitor.
... O decreto de 23 de Maio veio definir os termos para encerramento de matrícula e admissão a exame. O mesmo diploma vedava a permanência na cidade de Coimbra aos estudantes que aí não residissem com as suas famílias ou que não frequentassem os cursos livres, então improvisados. Oitocentos e oitenta e seis estudantes, submetidos a pressões de múltipla ordem, acabaram por requerer exame. Os que se negaram até ao fim a fazê-lo – os Intransigentes – foram cento e sessenta.
O decreto de 26 de Agosto de 1907 veio comutar as penas de expulsão em repreensão e censura e permitir a submissão a exames a todos os que o pretendessem. Apesar da sua meia-derrota, a luta generosa desta geração de estudantes ficou gravada na memória da Academia.
Ribeiro, V.A.P.V. 19. 2011. As memórias de Belisário Pimenta. Percursos de um republicano coimbrão. Dissertação de Mestrado em história Contemporânea. Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Pg. 19 a 21
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