Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Colaboraram na feitura desta entrada muitas mãos. Para além da minha participação contei com a ajuda, na investigação e na cedência de imagens, de Carlos Ferrão e Pedro Rodrigues da Costa. Henrique de Melo e Regina Anacleto também partilharam algumas imagens.
Deu origem a este trabalho um anúncio publicado no dia 8 de novembro de 1885 no jornal Correio da Manhã, que integra o acervo documental] de Carlos Ferrão.
Correio de Manhã, 8 de novembro de 1855. Acervo Carlos Ferrão
No canto inferior esquerdo do referido jornal aparece este anúncio da Companhia real dos caminhos de ferro portugueses.
Correio de Manhã, 8 de maio de 1855, pormenor. Acervo Carlos Ferrão
Da análise do anúncio podemos concluir:
- A existência, ainda que provisória, de uma estação central de Coimbra, estabelecida na atual Praça do Comércio, da onde partiam carros americanos para as estações de Coimbra e de Coimbra B.
Praça do Comércio, antiga Praça Velha
- Que, para além de passageiros e de mercadorias, a empresa também transportava valores; no caso do dinheiro em cobre o custo da tarifa era calculado em relação ao peso/quilo.
Rodrigues Costa
Em dias comuns, o movimento na Praça não seria muito diferente do resto dos arruamentos. Transeuntes, tendas, algumas vendedeiras, carros de bois, crianças correndo ou pombas ciscando – alimentando-se, talvez, do que havia sido deixado da última feira semanal – seriam visões comuns. Esta relativa tranquilidade, porém, não devia equiparar-se ao bulício que a Praça experienciava em tempos de feira franca.
Durante os reinados de D. Fernando e D. João I, esta ocorria de 15 de Setembro a 15 de Outubro. Coincidia com o S. Miguel de Setembro, época de colheitas e de pagamento de rendas, e a ela acorria gente de todo o termo, para comprar e para vender, constituindo-se no verdadeiro encontro entre o campo e a cidade.
Tais características faziam da feira, portanto, um vivo e colorido retrato da sociedade medieval. Era ali que o abastado burguês citadino exibia suas roupas adornadas e sua bolsa cheia de moedas, procurando pelo melhor sapato, o melhor tecido ou, talvez, alguma joia. Impressionava, com toda a certeza, o lavrador que, vindo de uma localidade recôndita nos confins do termo coimbrão, aproveitara as isenções fiscais próprias do evento para montar uma banca e vender o produto de suas colheitas a fim de obter algum lucro, que talvez fosse gasto por ali mesmo, em um novo utensílio doméstico ou peça de roupa para sua família. À sua banca, acorria, entre muitos outros, o mesteiral local, com o intuito de abastecer-se do que era necessário para as suas atividades e, no processo, surpreender-se ao passar por estrangeiros a balbuciarem uma língua estranha, vendendo panos exóticos ou outros produtos vindos de fora do reino. Tudo isto, claro, vigiado pelos oficiais do concelho, dispostos a manter a ordem e que tinham no pelourinho, situado bem ao centro da praça, tanto um instrumento de punição como um elemento representativo do poder municipal.
Reconstituição do pelourinho, na sua presumível localização quando instalado na Praça
Por fim, em frente a porta da igreja Santiago, alguns cónegos reúnem-se no alto de sua escadaria, juntamente com um casal. A meio deles, sentava-se um tabelião, rabiscando um grande livro. Era algum emprazamento a tomar forma. Foi este o caso, por exemplo, de Diogo Lourenço e Catarina Anes que, em 5 de Outubro de 1437, em plena feira, receberam de emprazamento, do Mosteiro de São Jorge, um casal e herdade em Santa Luzia, termo de Coimbra, tendo o contrato sido celebrado “ante a porta prinçipal da egreja de San Tiago”.
Dissertação. Imagem nº 8 e 9: A igreja de Santiago após a reconstrução, retratada atualmente / A capela Norte, construída no séc. XV em estilo gótico, pg. 41.
A ocasião, porém, não seria só para negócios. Era, também, a oportunidade de rever os amigos, quem sabe fazer outros novos, atualizar-se acerca das novidades e comentar os assuntos do reino, da cidade, da família, e, até mesmo, da vida alheia. Do que falavam exatamente? Não sabemos, mas podemos supor. Muito provavelmente, um assunto corrente na feira de 1395 seria, por exemplo, o do divórcio entre Afonso Fernandes e Catarina Martins. Ele, dito da Cordeirã, fora escrivão do almoxarifado, e ela, filha de Martim Lourenço, conhecido por Malha e que sabemos ter sido almoxarife de Coimbra entre 1361 e 1367. Foram casados por dez anos e eram, certamente, conhecidos dos moradores da zona da Praça, pois tinham uma casa na Rua dos Peliteiros e um cortinhal em Poço Redondo, localidade próxima.
Não sabemos o que terá causado o divórcio e, muito menos, de quem teria partido a iniciativa, se de um dos cônjuges ou se, em uma hipótese menos provável, da Igreja. Teria o ex-escrivão abandonado a esposa? Era um dos motivos que levariam a tal fim. Se assim o fosse, dar-nos-ia razões para interpretar as quinhentas libras que uma tal Catarina Beata “avia de dar ao dicto Affonso Fernandez do corregimento de pallavras que dissera do dicto Affonso Fernandez” – referidas no instrumento de partilha de bens do casal – como o possível resultado de uma pouco respeitosa observação em relação ao caso. De qualquer modo, a situação era rara e, tratando-se de personagens de alguma visibilidade, certamente terá gerado comentários.
Nesta mesma época, outro tópico que deveria estar entre os discutidos pelos habitantes da cidade seria o da insegurança durante a noite. O povo, este, já apontava culpados: os homens responsáveis pela guarda noturna. Aparentemente, o alcaide-mor, ao invés de utilizar, para este fim, funcionários conhecidos, “escriptos nos livros”, valia-se do serviço de “homees vaadios e nom conheçudos”, não sendo incomum o aparecimento, ao raiar do sol, de pessoas maltratadas e até mesmo mortas, dentre outros malefícios. Por vezes, após a descoberta destes crimes, os ditos homens abandonavam a cidade misteriosamente, sendo “de presumir que som culpados nos dictos mallafiçios ou em parte deles”. Foi este o conteúdo de uma reclamação ao rei, por ocasião das cortes de Santarém, em 1396, tendo o monarca mandado que fossem cumpridos os costumes da cidade de utilizar, para este fim, pessoas conhecidas da população.
Imediatamente acima da Praça, ao cimo das escadas que, já no séc. XIV estariam situadas imediatamente em frente ao arco da Barbacã, estava o eixo formado pela Calçada – antes Rua dos Francos – e a Rua de Coruche, um dos mais importantes da cidade. Tais artérias serviram, durante o período medieval, como reduto de mercadores, fama confirmada por fontes contemporâneas, como é o caso de um decreto fernandino, datado de 1367, que garantia privilégios, especificamente, aos “mercadores moradores na Rua de Coruche e na Rua de Francos”.
Fotografia antiga da hoje designada rua Visconde da Luz 1
Encontramo-los nas fontes desde as primeiras menções a ambas as ruas, em inícios do século XIII, tendo sido muitos deles, ao longo da Idade Média, sepultados no cercano templo de Santiago, como nos provam as diversas citações a mercadores presentes no Livro de Aniversários desta colegiada.
Augusto, O.C.G.S. A Baixa de Coimbra em finais da Idade Média: Sociedade e cotidiano nas freguesias de S. Bartolomeu e Santiago. In: Revista de História da Sociedade e da Cultura, 13 (2013). Acedido em https://www.studocu.com/pt/document/universidade-de-coimbra/historia-da-cidade-de-coimbra/apontamentos/a-baixa-de-coimbra-em-finais-da-idade-me-dia/8576144/view
À época em que se redigiu o testamento, Constança Esteves vivia na companhia de uma tal Senhorinha, a quem acabou por deixar um olival “alem da ponte na Varzea e quatro geiras de terra no campo de Mondego”, estipulando que, à morte desta, tais propriedades fossem transferidas para a Albergaria de Santa Maria de São Bartolomeu, cuja sede se situava na freguesia de Santiago. Ao lado do edifício onde estava instalada a albergaria, encontravam-se as casas que, no séc. XVI, seriam reformadas para servir de Paços do Conde de Cantanhede, e que correspondem, por certo, às doadas por D. João I, em 1390, ao prior do Hospital e Marechal do Rei, Álvaro Gonçalves Camelo.
Junto da casa que pertenceu a esta personagem, na Idade Média, corriam três ruas: a Rua dos Tanoeiros, atual Adelino Veiga; a Rua Olho do Lobo, atual Rua das Rãs e, provavelmente, a Rua dos Peliteiros, sendo as três paralelas e culminando no Arnado. Como os próprios topónimos nos indicam, por ali estariam concentrados, em finais da Idade Média, os tanoeiros, fabricantes de tonéis – destinados ao armazenamento de diversos produtos, dentre os quais, certamente, o azeite produzido na freguesia vizinha – e os peliteiros, curtidores de peles, especializados na obtenção da pelica, couro fino, de uso nobre.
Desta forma, não é surpreendente o fato de termos encontrado nas fontes testemunhos abundantes à presença destes profissionais na área, acompanhados de mercadores e, sobretudo, de sapateiros – que certamente se utilizavam do couro ali produzido – e carpinteiros, que poderiam estar envolvidos no fabrico dos tonéis. Para a Rua dos Tanoeiros, convém destacar também que, na primeira metade do séc. XV, era ali proprietário – dentre tanoeiros, sapateiros e carniceiros – o tabelião João Rodrigues, que fora criado do infante Dom Pedro, tendo sido por pedido deste ao concelho que acedera ao tabelionato, por volta de 1429.
A Rua dos Peliteiros, sobretudo, havia de ser uma artéria importante. O seu período áureo parece ter sido o século XIII e inícios do século XIV, centúria em que encontramos algumas referências a personalidades ilustres que nela, e em suas cercanias, detinham propriedades. Enumerando-as, citemos Vasco Gil, cónego de Santiago e tabelião público, que ali morou; D. Pascásio Godins, que foi deão de Viseu e de Coimbra; o chantre de Viseu e cónego de Coimbra Lourenço Esteves de Formoselha; Gonçalo Esteves, que havia sido escudeiro de D. Astrigo, raçoeiro da Sé, e Aldonça Anes de Molnes, monja de Lorvão. Próximo das casas habitadas por esta última, estariam outras, pertencentes ao seu irmão, o fidalgo Paio Anes de Molnes. Convém mencionar aqui, também, o alvazil Tomás Martins, que habitou em uma platea, na freguesia de Santiago, que poderá corresponder à Rua dos Peliteiros.
Rumando pela Rua dos Tanoeiros em direção à igreja de Santiago, atingir-se-ia, em inícios do séc. XV, a Praça. Devia parecer, nesta época, um grande terreiro de formato ainda um tanto irregular, sendo provável que não se estendesse até ao adro de S. Bartolomeu, como nos dias atuais. A meio desta, em frente a uma pequena escada encrustada no casario, já lá estava o pelourinho e, próximo dali, imediatamente ao lado da igreja de Santiago, os açougues. Em segundo plano, imponente, a muralha e suas torres.
Nos quarteirões à volta da Praça estariam em curso, provavelmente, demolições e novas edificações, no âmbito do processo de reorganização do espaço que lhe deu a configuração atual. Das que já ali estavam, algumas seriam dotadas de alpendres, como ao que renunciou, em 1455, Afonso Martins, que fora criado do infante D. Pedro, alegando ser “homem prove (sic) e meesteirosso”. Tal alpendre confrontava com casas do barbeiro Álvaro Fernandes e outras que haviam pertencido a Martim Afonso, também barbeiro e, à época, já falecido.
Dissertação. Imagem nº 16: Em azul, o traçado presumido da sota, desde a Rua de Quebra Costas até o Mondego, pg. 60
Dissertação. Imagens nº 17 e 18: O arco quinhentista / Detalhe do arco, pg. 93
A pequena concentração destes profissionais no local é entendível. Afinal, a Praça, em meados de quatrocentos, já seria um lugar relativamente central. Ademais, lembremos que os barbeiros, além de apararem a barba e o cabelo, tinham outras atribuições, dentre as quais pequenas intervenções médicas, como era o caso das sangrias. Seu local de trabalho afigurava-se, também, como um espaço de convívio masculino. No século XIV, o severo clérigo castelhano Martín Perez, por exemplo, via grande perigo no ajuntamento de homens no barbeiro, assim como, em contraponto, na concentração de mulheres nas casas de fiandeiras.
Augusto, O.C.G.S. A Baixa de Coimbra em finais da Idade Média: Sociedade e cotidiano nas freguesias de S. Bartolomeu e Santiago. In: Revista de História da Sociedade e da Cultura, 13 (2013). Acedido em https://www.studocu.com/pt/document/universidade-de-coimbra/historia-da-cidade-de-coimbra/apontamentos/a-baixa-de-coimbra-em-finais-da-idade-me-dia/8576144/view
Dos mercados ao Mercado D. Pedro V
Em Coimbra, os mercados e as feiras foram regulamentados, ao longo dos tempos, por cartas régias, mas os locais onde se processava a troca de produtos permaneceu inalterável até à segunda metade do século XIX.
Durante o período medieval e até a Oitocentos, a permuta de bens estendeu-se, na cidade, por vários locais. Um deles, o Forum Régio, situava-se entre a Torre da Rolaçom e a Sé, ou seja, mais ou menos na zona do atual Quebra-Costas e organizava-se em dois espaços: o “das tendas de baixo” (mais próximo do início do Quebra-Costas) e o “das tendas de cima” (mais chegado à Sé). Um outro local de troca de produtos ocupava, lá no cimo da colina, o terreiro do Paço Real. A partir de 1537, no Largo da Feira, frente à Sé Nova, após a transferência da Universidade para Coimbra, começou a realizar-se, às terças-feiras, um mercado semanal destinado, essencialmente, à comunidade estudantil.
Largo da Feira dos Estudantes. [Passado ao Espelho, p. 58]
Contudo a Praça de S. Bartolomeu (também conhecida por Praça do Comércio ou Praça Velha) pode considerar-se o local onde tradicionalmente acontecia o principal mercado, mas com o andar dos anos e com o aumento da população o espaço vai-se tornando cada vez mais exíguo e alguns produtos, sobretudo aves e grãos, passaram a ser comercializados em frente à igreja de Santa Cruz, no Terreiro de Sansão.
Fig. 07 – Praça do Comércio. [AHMC. Repartição de obras municipais. Luiz Antonio Nogueira. 1878. Pasta 49. B-14].
Os espaços atrás referidos, mesmo se se tiver em conta as contínuas disposições camarárias que especificavam o local exato da venda de cada produto, nem sempre eram acatadas de bom grado pelos vendedores (vendedoras em maior número) que se iam amontoando a esmo, de modo um tanto ou quanto caótico.
A ideia de reunir todas as transações num único local, começa a ganhar consistência e a necessidade de construir um mercado assume-se consensual. A partir de 1852 assiste-se à tentativa de concentrar, não sem oposição, os vários pontos de venda na horta do extinto mosteiro de Santa Cruz. Contudo, as opiniões dividiam-se quanto à localização do mercado e se uns apontavam para aquele local, outros inclinavam-se para a zona da Sota, na velha ‘baixa’ coimbrã.
Neste contexto, a 09 junho de 1858, Hardy Hislop, de nacionalidade inglesa, apresenta à Câmara um projeto para a construção de um mercado público cujos custos, na Sota, rondavam pelos 100 contos de réis e na Horta crúzia pelos 70.000$000 réis.
A escolha da zona onde o mercado se devia instalar, sob forte contestação, acabou por recair na horta de Santa Cruz, até porque esta, em virtude de ser propriedade da edilidade, tornava o cometimento mais acessível, contrariamente ao que aconteceria na Sota, onde, devido às cheias do Mondego, era necessário altear o local e proceder a expropriações.
Mas a debilidade das finanças municipais não consentiu a viabilização do empreendimento; por isso, mais tarde, a Câmara e o Conselho Municipal aprovaram, a 12 de março de 1866, um empréstimo de 13.000$000 réis tendente a fazer face à concretização da nova estrutura que teve por base o mais do que modesto projeto elaborado pelo engenheiro Everard, um provável técnico ferroviário britânico.
Fig. 08 – Mercado D. Pedro V em 1907. [Passado ao Espelho, p. 66].
A vereação, depois de “fazer festejos e convites”, decidiu marcar para o dia 17 de novembro de 1867 a inauguração do novo mercado, batizado com o nome de D. Pedro V; o imóvel foi-se tornando obsoleto e O Despertar, na sua edição de 17 de novembro de 1917, escrevia: “Também faz hoje 50 anos (já meio século!) que foi inaugurado o mercado D. Pedro V. Está a pedir museu das raridades”.
Radicara-se na cidade, entretanto, o arquiteto Augusto de Carvalho da Silva Pinto e a Câmara, em 1902, encarrega-o de riscar, a fim de “completar” o mercado existente, o projeto de um pavilhão destinado à venda de peixe.
Após serem ultrapassadas algumas barreiras, o edifício foi inaugurado em 08 de março de 1908. Esta estrutura que assentava prioritariamente no ferro e no vidro, se se pensar no contexto português e, sobretudo, no conimbricense, desenvolveu-se no âmbito de uma linguagem eivada de modernidade, embora, cronologicamente, face à Europa e à América, se apresentasse como tardia. Mas de nada lhe valeu inserir-se nas “modernas” tecnologias arquitetónicas, porque não deixou de ser depreciativamente apelidada de “aquário” por um dos jornais citadinos, quando, em 1921, o arquiteto emitiu uma opinião desfavorável acerca da transformação da igreja de S. João em “Café de Santa Cruz”.
Fig. 09 – Projeto para um mercado municipal. Arquiteto Silva Pinto. 1908. [AHMC. Repartição de obras municipais. Pasta 36. B-50].
Contudo, a edilidade, cônscia que estava da necessidade de dotar a cidade com um mercado condigno, encarregou o mesmo arquiteto, cerca de 1908, de riscar esse imóvel, que, apesar de aprovado, jamais saiu do papel (neste caso, do marion) e foi pena, pois, a ser edificado “constituiria hoje, sem dúvida, um dos mais curiosos exemplares da chamada arquitectura do ferro, tão representativa de uma época”.
Anacleto, R. Coimbra: alargamento do espaço urbano no cotovelo dos séculos XIX e XX. In: Belas-Artes: Revista Boletim da Academia Nacional de Belas Artes. Lisboa 2013-2016. 3.ª série, n.ºs 32 a 34. Pg. 127-186. Acedido em https://academiabelasartes.pt/wp-content/uploads/2020/02/Revista-Boletim-n.%C2%BA-32-a-34.pdf
Quem, hoje, passar em Coimbra, pela Praça do Comércio, não vislumbra nada que denote o edifício do hospital.
Poucos saberão que o espaço que acolhe uma típica loja de comércio oriental revela, ainda, no seu interior, arcadas e colunas manuelinas.
Hospital Real de Coimbra, pormenor da abóbada da entrada na capela
Mas, pouco adiante, podem ver-se pedras que falam…
Reprodução fotográfica das iniciais HRC, a seguir às quais foi colocada, posteriormente, a identificação do sequente proprietário - V.DE – a Universidade de Coimbra, herdeira dos bens do Hospital, após a sua extinção, em 1772. (Foto gentilmente cedida pelo Prof. Doutor Henrique Carmona da Mota).
Sobre o umbral da porta de uma casa, na rua Direita da baixa coimbrã, que na verga tem o número 73, está [estava] o registo epigráfico com a sigla HRC, formada pelas iniciais do nome da instituição, com as quais se identificava a posse de seus bens, sendo usadas também nos marcos de demarcação de propriedades rústicas.
O sinete da instituição apresentava também as armas reais. Atente-se na marca do sinete
que se encontra aposto na capa do livro de entrada e saída de doentes
(1711-1713) (PT/AUC/HOSP/HRC/17/003).
O Hospital era administrado de acordo com o seu Regimento, sendo gerido por um provedor e um almoxarife, fazendo, ainda, parte do seu número de funcionários o recebedor dos enfermos, o hospitaleiro, o escrivão, o porteiro, o capelão, o solicitador, etc.
Dentro das suas instalações os espaços dividiam-se por duas enfermarias (de homens e de mulheres), capela, casa do despacho, hospedaria, refeitório, despensa, adega e cozinha, tendo recebido, inicialmente, apenas 17 doentes.
A botica hospitalar não existiu, logo, desde o início da sua fundação, sendo feito contrato com boticários da cidade para fornecimento do que fosse necessário. No entanto, pelo Alvará de 24 de junho de 1548, pelo qual se ordena ao físico que dê, da botica, todas as mezinhas necessárias para a cura dos colegiais da Ordem de São Jerónimo, fica-se a saber que ela existe a partir dessa data, pelo menos.
Havia, ainda, casas de hospedaria, para receber “pessoas de bem” que estivessem de passagem, assim religiosos, como “mulheres honradas” e alguns estrangeiros que de caminho passavam pela cidade.
Um outro espaço existente era o designado “hospital dos andantes” ou “casa dos pedintes andantes” destinado a acolher os peregrinos passantes pela cidade ou pessoas indigentes que não tinham onde se albergar.
Os pedintes andantes poderiam ali ficar um dia e uma noite, existindo para seu conforto, de acordo com inventários de 1523 e 1659, mantas velhas “com que se cobriam os andantes”, um candeeiro e candeias de azeite, uma caldeirinha de barro para água. As instruções dadas em Almeirim, em 4 de maio de 1508, referem já a existência da “casa dos andantes”, com leitos para os andantes pobres, tendo cada leito o seu enxergão de palha, um almadraque de lã, um cabeçal de lã, cabeceira e dois cobertores de burel. Também o mobiliário das enfermarias era muito simples e, de acordo com o Regimento, de 22 de outubro de 1508, cada cama tinha: um enxergão, um almadraque, um colchão, um par de lençóis, um cabeçal e uma manta ou um cobertor.
Informação adicional.
Nota
Deslocamo-nos ao local e fotografamos o espaço. Assinalando que alguns dos capiteis foram mutilados, deixo à consideração dos leitores as imagens que então recolhi.
Hospital Real. Vista exterior na atualidade
Hospital Real. Loja chinesa 1
Hospital Real. Loja chinesa 2
Hospital Real. Loja fechada
Bandeira, A.M.L. O Hospital Real de Coimbra: acervo documental de uma instituição assistencial (1504-1772). In: Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra. Volume XXVIII. 2015. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra. Acedido em 2019.01.29 em
https://digitalis-dsp.uc.pt/bitstream/10316.2/37775/1/O%20Hospital%20Real%20de%20Coimbra.pdf
«… E vendo quão necessária coisa era, em a dita cidade, haver um bom hospital, segundo o requer a nobreza dela e a grande passagem que por ela fazem as gentes de todas as partes e, muito principalmente, nos tempos do Jubileu de Santiago e como os pobres e miseráveis não acham na dita cidade, nos hospitais que nela havia tal recolhimento…».
Através destas palavras, ficamos a conhecer a origem do Hospital Real de Coimbra, instituição assistencial hoje quase ignorada na cidade, mas que foi o porto de abrigo de tantos peregrinos, pobres e doentes. A sua fundação surge integrada num processo de revitalização da assistência médica, levada a cabo por D. Manuel.
D. Manuel I
Atendendo à dispersão de pequenas unidades hospitalares que funcionavam, mais como asilos para pobres, do que para assistência aos doentes, o rei entendeu por bem fazer a sua reunião e anexação em um só hospital.
Foi, isso mesmo, que se passou também em Lisboa, com a extinção de dezenas de albergarias e a sua anexação ao Hospital de Todos os Santos que recebeu Regimento em 1504, apesar de as medidas de unificação já terem sido encetadas por D. João II. Em Coimbra, foi também em 1504 que se iniciou a construção do novo Hospital, tendo-lhe sido anexados, em 1508, os antigos hospitais e albergarias da cidade. Por sua vez, em Évora, a reunificação de doze pequenos hospitais ocorreu em 1515.
Hospital Real de Coimbra
O ritmo de vida da instituição era marcado pelo som da sua campa, que era tangida para dar início à visitação dos professores da Faculdade de Medicina (das cadeiras de Prima, Tertia e Avicena) e seus alunos, logo pelas seis horas e meia da manhã (no verão) e pelas sete horas e meia (no inverno).
Enquanto a Universidade não teve o seu próprio hospital, o que só viria a acontecer depois da Reforma Pombalina, em 1772, a prática médica era exercida no hospital da cidade.
A visita diária aos doentes, nas enfermarias, demorava três quartos de hora, sendo obrigatória para todos os alunos da Faculdade de Medicina. Tinha lugar na presença do administrador do hospital e de seus enfermeiros, decorrendo desta visita a observação dos doentes, aos quais os médicos prescreviam as receitas necessárias, que eram escritas pelos enfermeiros, em tábuas engessadas de branco.
Depois desta primeira visita, seguia-se uma outra, numa sala à parte das enfermarias, para receber todos os enfermos da cidade que ali acudissem, em busca de lenitivo para os seus males. Se se verificasse que havia necessidade de internamento de algum destes doentes pobres, o professor determinaria esse internamento, mas se houvesse oposição do médico da instituição “o lente se conformará sempre com o regimento do próprio hospital”.
Desenho inserido no Regimento manuelino do Hospital Real de Coimbra (1508),
apresentando as armas reais, testemunhando a fundação régia da instituição. (PT/AUC/HOSP/HRC/02/001).
Data de 1704, o livro mais antigo de registo de entrada de doentes que hoje existe. Estes livros são testemunhos da maior relevância para o conhecimento de quem eram estes doentes e de onde vinham. Seguramente, terão existido para datas muito anteriores, sendo de lamentar que não tenham sobrevivido.
Os professores visitavam ainda, diariamente, os designados doentes de cirurgia, observando todos “os feridos e chagados” e dependia também da opinião dos professores a manutenção do boticário e do sangrador do Hospital, se estes não cumprissem as suas obrigações. O mesmo se diga quanto aos boticários da cidade que forneciam “as mezinhas” necessárias ao curativo dos doentes.
Assim se revela a estreita relação entre o Hospital Real de Coimbra e a Universidade, unindo-se na assistência e na boa formação dos futuros médicos.
Folha de rosto do Livro de receituário médico (cirurgia) de 1622 (PT/AUC/HOSP/HRC/13/133)
… Foi neste hospital que se iniciou, em Coimbra, a prática da anatomia, em casa apropriada para esse fim, assistindo os alunos da Faculdade de Medicina a duas “anatomias universais”, anualmente, de acordo com o que ficou estabelecido em Estatutos da Universidade, de 1559. Alonso Rodrigues de Guevara foi o primeiro professor de Anatomia, na Universidade de Coimbra, a partir de 1556, tendo sido convidado por D. João III. Pouco tempo residiu em Coimbra, tendo-se ausentando, por descontentamento, segundo se tem afirmado, por ainda não serem permitidas as anatomias em corpos humanos, o que de facto só mais tarde veio a acontecer.
Bandeira, A.M.L. O Hospital Real de Coimbra: acervo documental de uma instituição assistencial (1504-1772). In: Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra. Volume XXVIII. 2015. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra. Acedido em 2019.01.29 em
https://digitalis-dsp.uc.pt/bitstream/10316.2/37775/1/O%20Hospital%20Real%20de%20Coimbra.pdf
Determinaram as «Constituições Sinodais do Bispado de Coimbra», em 1591 … que em todas as igrejas houvesse um livro de Tombo, autêntico, donde constassem todas as suas propriedades e bens … Assim surge o «Inventário da prata e ouro, ornamentos e roupa do serviço da igreja de Nossa Senhora e dos Sanctos e de todas as cousas de que se serve a Igreja de S. Tiago que mandou fazer o prior».
…. O aspeto que esta igreja citadina de um dos topos da Praça Velha, depois de restaurada, nos oferece, poderá não ser, porventura, o mesmo da sua primitiva fábrica. Todavia, temos de reconhecer que a reconstituição feita foi, na ocasião, a única e a melhor possível.
A igreja de Sant’Iago antes das obras de restauro
A Igreja de Sant'Iago durante as obras de restauro
A igreja de Sant’Iago depois as obras de restauro
Está a sua fundação envolta em lendas que se relacionam com a tomada da cidade, em 1064, por Fernando Magno. De concreto apenas se sabe que antes da reconstrução dos finais do século XII e inícios do XIII – a nova igreja foi sagrada em 28 de Agosto de 1206 – já no local existia outro templo de que há referências documentais no século XII.
[A origem lendária da fundação da Igreja de Sant’Iago foi contestada, nomeadamente, por António de Vasconcelos … e F.A. Martins de Carvalho… Para estes historiadores o documento mais antigo respeitante a Sant’Iago apenas remontava a 1183. Foi A. Nogueira Gonçalves quem revelou e chamou a tenção para notícias anteriores àquela data].
No século XVI, a fisionomia do monumento foi grandemente alterada,
Com efeito, em 3 de Junho de 1546 lavrou-se contrato entre a Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia e a Colegiada de Sant’Iago para a construção da casa e igreja da Misericórdia sobre o velho templo românico.
Entrada para a Misericórdia antes das obras de restauro da Igreja de Sant’Iago
O novo edifício ficou edificado sobre a nave da «capela de S. Simão, onde ora está o Santíssimo Sacramento e sobre a capela de Vasco de Freitas», com entrada pela rua de Coruche, na parte posterior, o que era possível graças ao grande desnível do terreno. O patim de acesso foi feito sobre a «sacristia e capela de S. Simão».
Para segurança de ambos os templos se estipulavam a construção de «arcos», «na dita nave de S. Simão», bem como diversas medidas a tomar quanto ao encaminhamento das águas pluviais.
…. Que capelas ou altares haveria então na Igreja de Sant’Iago?
Também a este respeito o inventário fornece indiretamente algumas informações. O número não iria além de sete: três na cabeceira e quatro do corpo da igreja, sendo uma à Epístola e três do lado do Evangelho.
Na capela-mor se encontrava a imagem do orago, Sant’Iago, e o sacrário com o Santíssimo Sacramento que mais tarde esteve também na capela do Bom Jesus. Nas colaterais destacavam-se os altares de Nossa Senhora da Conceição, à Epístola. O primeiro era da administração da Colegiada. O segundo pertencia à respetiva confraria, constituída por nobres, no dizer do escrivão do inventário, e «muito rica», segundo as palavras do prior.
…. No corpo da igreja, do lado direito, entre a porta travessa e a escada que subia para o coro, situava-se a capela gótica primitivamente dedicada a S. Pedro e depois a Santa Escolástica, ao Bom Jesus, e, por fim, ao Sacramento. Nas obras de restauro foi transferida para o tramo fronteiro, indo ocupar o espaço da capela de Santo Ildefonso.
Do lado esquerdo estavam as capelas de Santo Elói e Santo Ildefonso, a que mais tarde se juntaria a do Espírito Santo, instituída em 1653 por Úrsula Luís, viúva do mercador Manuel Roiz-
…. A capela de Santo Ildefonso era da família dos Alpoins.
.… A capela de Santo Elói «que edificaram e fabricaram os ourives desta freguesia …» era a primeira, ao entrar no portão principal.
…. Resta ainda a capela de S. Simão e a de Vasco de Freitas… A primeira é a da Senhora da Conceção, ou seja, a colateral direita da cabeceira da igreja. A última deverá talvez corresponder à do Bom Jesus, primitivamente de S. Pedro.
Quanto a Santo André, que aparece com certo destaque no inventário, com suas vestes próprias e um possível altar, onde «servia» uma estampa e um frontal de rede, a ter existido na verdade este altar, seria bastante singelo. O mais lógico é que se tratasse de uma imagem integrada num dos outros altares.
…. Além das confrarias de Nossa Senhora da Conceição, dos nobres, e de Santo Elói, dos ourives, o inventário fala ainda das de S. Simão, Santo André, Sant’Iago, Santa Bárbara, Nossa Senhora da Piedade e Espírito Santo. Todas possuíam a sua arca, destinada a arrecadar a cera que cada confrade deveria pagar anualmente e de que se faziam as tochas que eram levadas na procissão do Corpo de Deus.
Borges, N.C. 1980. O Inventario dos Ornamentos e Joias da Igreja de Sant’Iago de Coimbra, em 1697. Coimbra, Instituto de História da Arte. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Orgulhoso e altaneiro, bem cioso dos direitos que representa, o pelourinho não desvenda com facilidade a sua origem, mas verificamos que a sua existência se estendeu a toda a Europa ocidental, cronologicamente até à implantação das ideias liberais e que, nalguns países, ultrapassou mesmo esta época. Sabemos também que atravessou os mares e se implantou no Novo Mundo por influência de portugueses, espanhóis e ingleses.
Herculano pretende ver a sua origem associada ao direito itálico (jus italicum) que consignava uma total organização municipal e permitia levantar no forum a estátua de Marsyas ou de Sileno com a mão erguida, símbolo da liberdade burguesa.
Pinho Leal, filia a origem destes monumentos na columna moenia, colocada pelo cônsul romano Moenio na praça, isto é, no forum que se estendia frente à sua casa, onde se realizavam os julgamentos feitos pelos magistrados (triumviros), se aplicavam os castigos públicos e se faziam as festas populares.
Teófilo Braga vê no pelourinho a representação do Genius Loci romano, patrono da independência municipal.
Luís Chaves filia o aparecimento do pelourinho na antiga imagem do poste pessoal ou coletivo de um clã, de um povoamento ou de um agrupamento religioso.
Mas a sua origem, provavelmente, tem de se ir buscar em tempos ainda mais recuados.
Todas as picotas, mais ou menos esbeltas, mais ou menos ricas na sua decoração, têm um elemento comum: a coluna.
… Monsenhor Nunes Pereira, nos idos de Quarenta, escrevia que os pelourinhos “testemunham a autonomia (jurisdicional, digo eu) que a terra goza ou gozou noutros tempos. Devem ser estimados, conservados e reconstituídos onde isso possa fazer-se”.
*
O pelourinho de Coimbra transferiu-se do adro da Sé Velha, onde se encontrava junto à Casa do "Vodo" (casa da audiência da Câmara que se erguia frente à igreja da Sé [Velha] para a praça do Comércio nos finais do século XV (1498).
Retirado deste lugar, deslocou-se para o Largo da Portagem (1611), tendo então sido adaptado a fontanário. Aí permaneceu até 1836, ano em que o desmontaram e armazenaram até 1894.
Grimpa do pelourinho de Coimbra, original
Do original resta apenas a grimpa, conservada no acervo do Museu Nacional de Machado de Castro.
*
Da sua reconstrução, ocorrida nos anos oitenta do século passado, posso dar testemunho.
Eu era, ao tempo, Chefe de Serviços de Turismo aos quais estava adstrito o Gabinete de Salvaguarda do Património, de que era responsável o arquiteto António José Monteiro.
Tendo sido determinado pelo então Presidente da Câmara, Dr. Mendes Silva, a recuperação da Praça do Comércio, na altura mais conhecida por Praça Velha, entendeu-se reinstalar ali uma reconstituição do Pelourinho, até porque ele, outrora, já estivera erguido naquele local.
Pelourinho de Coimbra na Portagem
Baseado em desenhos que se pensam ser fidedignos, o arquiteto António José Monteiro riscou uma proposta reconstrutiva e o saudoso Mestre Pompeu Aroso bateu as partes metálicas, copiando-as do original, existente no Museu Machado de Castro.
Pelourinho de Coimbra reconstituição
Praça Velha com reconstituição do pelourinho
Bibliografia
. Anacleto, R. 2008. Para que servem os pelourinhos? Conferência proferida nas I Jornadas de História local, Pampilhosa da Serra. Auditório Municipal, 2008.04.10 e 2008.04.11.
. Malafaia, E.B.A. 1997. Pelourinhos portugueses. Tentâmen de inventário geral. Col. Presenças de Imagens. Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda.
. https://pt.wikipedia.org/wiki/Pelourinho_de_Coimbra. Acedido em 2018.07.17
Oh, Pelourinho da Praça.
Travesseiro de quem ama.
Quantas vezes o meu amor
Lá terá feito a sua cama. (Quadra popular)
Os pelourinhos ou picotas, monumentos modestos e simultaneamente altivos, enxameiam Portugal de Norte a Sul e, desde sempre, atraíram sobre si as atenções de inúmeros estudiosos que, afora alguma pequena divergência, têm assumido uma enorme consonância quanto ao seu significado.
… Nas nossas aldeias, que se espalham a esmo por esse Portugal “quase incógnito”, frequentemente, são estas pedras velhas e enegrecidas de séculos o único elo que liga o presente com o passado; e se outras razões não houvesse, esta já nos permitiria chamar a atenção para a necessidade de preservar esses monumentos que se erguiam outrora, preferencialmente, frente à Casa da Câmara, ao palácio do Senhor, à Sé ou ao Mosteiro.
… “Ces poteaux [qui] auraient un charme trés grand” como afirma o Conde de Raczynski, não se podem considerar “padrões ou symbolos da liberdade municipal”, mas funcionavam como o sinal da jurisdição, da administração autónoma da justiça, face à autoridade central. …Os habitantes do aglomerado populacional deviam viver uns com os outros observando a ordem jurídica estabelecida e se algum, de entre eles, violava as normas, logo a assembleia municipal ou os seus magistrados … aplicavam justiça e faziam executar as penas em locais públicos, a fim de, pelo terror, impedir a repetição de atos criminosos.
… a de Coimbra [a Câmara] não lhe fica atrás: no titolo das coimas e das vynhas que se encontra no Livro da Correia e que foi coordenado em 1554, determinava-se que, quando o condenado não pudesse pagar a pena pecuniária esta fosse substituída por huma ora ao pee do pelourjnho, e desde as novas atee as dez horas com a fruyta com que foj tomado ao pescoço. A mesma Câmara, em novas posturas promulgadas em meados de seiscentos voltou a insistir na pena de exposição no pelourinho.
As Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas não se eximem de legislar no sentido da utilização do pelourinho como local do cumprimento de penas.
Folha do rosto das Ordenações Afonsinas
… Na opinião de Paulo Pereira, o pelourinho, lugar onde se aplicava a justiça, a partir do século XV, pode ter deixado de estar associado à execução judicial, porque passou a ser o local do costume, onde se fixavam alvarás e éditos, defendendo mesmo aquele autor que a picota vai perdendo o cariz prático e utilitário que lhe esteve na origem para, no reinado de D. Manuel, conhecer uma revitalização capaz de lhe permitir adquirir um carácter prioritariamente simbólico e artístico.
Na realidade, a análise da documentação existente permite constatar que as notícias de aplicação de penas nos pelourinhos foram escasseando paulatinamente. No entanto, no século XVIII, ainda encontramos referências à aplicação de açoites naquele local.
…Os pelourinhos são, na realidade, o símbolo da administração autónoma da justiça local ou da jurisdição feudal e o ponto onde os criminosos, expostos à vergonha pública, sofriam os castigos.
Instrumento de tortura 1
Instrumento de tortura 2
Instrumentos de tortura 3
… A voz do povo também vem corroborar a nossa suspeição de que as picotas são verdadeiros postes de justiça. Não é verdade que frequentemente se ouve dizer: que venha a este pelourinho, ou então, hei-de levá-lo ao pelourinho?
… Pensa-se, por vezes, que o pelourinho desempenhava a dupla função de forca e de poste de castigo, mas, se assim fosse, não se compreenderia que os documentos aludissem de forma individual a estas duas estruturas e que permanecesse na toponímia a referência ao local onde a primeira se situava, sempre fora do centro populacional.
Em Coimbra, por exemplo, sabemos que o pelourinho, segundo uns, se encontrava na Portagem mesmo frente à cadeia e, se nos guiarmos por outras indicações, no largo da Sé Velha, mas a forca, essa estava implantada na zona da Conchada, onde ainda hoje existe a Ladeira da Forca.
… O pelourinho não servia apenas para nele se castigarem os delinquentes, mas também o pregoeiro aí dava publicidade a certos atos do concelho, o porteiro executava decisões de jurisdição civil ordenadas pelo alcaide e pelos outros magistrados, afixavam-se éditos, faziam-se até leilões; e, lá nos confins deste nosso Portugal, era ainda junto do pelourinho que o vizinho, quando recém-chegado da cidade ou de longínquas paragens para onde emigrara, contava as novas e punha a população em contacto com as realidades de um outro mundo em que eles viviam, mas do qual não faziam parte.
Bibliografia: . Anacleto, R. 2008. Para que servem os pelourinhos? Conferência proferida nas I Jornadas de História local, Pampilhosa da Serra. Auditório Municipal, 2008.04.10 e 2008.04.11.
O hospital de Coimbra, hospital de D. Manuel, hospital real, hospital novo, hospital d’el-rei, hospital geral, hospital público, hospital da Praça, hospital de Nossa Senhora da Conceição ou hospital da Conceição, aparece fundado, ou pelo menos profundamente reformado, por el-rei D. Manuel, em 1508 ou poucos anos antes, na praça de S. Bartolomeu, hoje Praça do Comércio, num edifício que este monarca mandou construir à sua custa ... Faz esquina com a rua das Azeiteiras, e compreende aquele grupo de casas até ao largo do Romal.
Hospital Real
... o primeiro «regimento» deste hospital, de 22 de Outubro de 1508, onde se vê a expressa declaração de D. Manuel, de que tinha mandado construir o edifício à sua custa; e que o havia dotado com as rendas de pequenos hospitais existentes na cidade, e com cem mil réis da sua fazenda.
... o primeiro hospital da cidade ou primeiro do estado em Coimbra (excluindo as gafarias) teria sido a pequena albergaria dos «Miléos», que já existia muito antes de 1468.(1)
... o «Conimbricense» ... tinha publicado uma relação dos hospitais e albergarias incorporados no hospital real ... em 26 de Dezembro de 1866 e 2 de Janeiro de 1867. É a seguinte: «Hospital de Santa isabel da Hungria (paços de Santa Clara); de Nossa Senhora da Vitória (rua do Corpo de Deus); dos Mirléos (defronte da porta principal da igreja de S. Pedro, junto ao paço das Alcáçovas); de S. Lourenço (próximo da capela do Senhor do Arnado); de S. Marcos (ao cimo do beco de S. Marcos); de Santa Maria de S. Bartolomeu (na freguesia de S. bartolomeu); de Montarroio (em Montarroio); albergarias e hospitais de S. Gião (rua das Azeiteiras); de Santa Maria da Vera Cruz (proximo da igreja de S. João); de S. Cristóvaão (perrto da igreja de S. Cristovaão=; de S.Nicolau; de Santa Maria da Graça; da Mercê; e de Santa Luzia.»
... apesar do seu carater de obra real, nem por isso tomou grande vulto, porque foi aberto e conservou-se por muitos anos com 17 camas somente, 12 para homens e 5 para mulheres; não entrando nesse número de camas para alojamento dos transeuntes ou da albergaria propriamente dita.
... Supondo que o hospital da Conceição ou primitivo hospital de D. Manuel fora fundado na praça de S. Bartolomeu em 1508, tudo leva a crer que, sem interrupção, ali se conservasse até à sua mudança em 19 de Março de 1779, para o edifício dos Jesuítas, no angulo N.O., com entrada pela Couraça dos Apóstolos.
Simões, A.A.C. 1882. Dos Hospitaes da Universidade de Coimbra. Coimbra. Imprensa da Universidade, pg. 16-20, 73-74
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.