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Com esta entrada concluímos a revisitação de um artigo do Professor Doutor Nelson Correia Borges, dedicado a uma tradição popular – a Volta de S. João – que tinha lugar na freguesia de Cernache e que, infelizmente, voltou a ser esquecida.
A «Volta compõe-se de um grupo a cavalo e outro apeado. O grupo a cavalo é constituído por homens que montam cavalos ou éguas. de jaezes enfeitados com fitas ou flores de papel de cores garridas. Um destes cavaleiros é o porta-bandeira e segue no melo dos outros que se dispõem em duas filas de um e outro lado. Os restantes empunham lanças de madeira enfeitadas com duas fitas de seda, em reminiscência das primitivas cavalhadas. Estas fitas, nas cores verde e rosa, eram, no final, oferecidas às pessoas amigas.
No início deste século o trajo dos cavaleiros era formado por botas com polainas ou botas de cano alto, com esporas; calça preta, lisa ou de casimira às riscas, com fivela atrás; camisa branca de linho ou popelina. com peitilho e colarinho simples, sem vira; cinta azul com riscas finas transversais vermelhas e amarelas, de pontas franjadas, enrolada aberta, deixando pender uma ponta ao lado esquerdo; colete simples, ou com pequenina gola na parte da frente, de tecido geralmente igual ao das calças, com costas de riscado de cores vivas; chapéu preto de feltro, de aba larga, ou carapuça.
À frente dos cavaleiros seguia o grupo apeado, constituído por mulheres (as «mulheres da Volta»), igualmente dispostas em duas alas.
O trajo feminino utilizado na mesma época era também multo característico.
Sobre duas ou três saias brancas a mulher vestia uma sala preta de armur ou outro tecido, ou até de chita estampada; a saia atava à altura da anca com uma cinta de tecido de lã nas cores azul ou vermelha, formando grande laço atrás. O chambre era do tipo usual na região, em tecido de algodão liso, com lavrados ou estampados, em cores que podiam ir do rosa ao azul claro, com predomínio do branco; continha um forro interior que só na parte das costas era costurado conjuntamente com o tecido exterior, ficando a parte da frente a formar um corpete apertado sob o tecido solto de fora; muito justo ao pescoço, formava um espelho sobre o peito, enfeitado com rendas, espiguilhos ou favos; as mangas apertavam no pulso com elástico ou botão, colocado de modo a formar um folho rematado com renda, mas habitualmente usavam-nas puxadas até ao cotovelo. Este tipo de chambre, de corte rebuscado para fazer realçar as linhas do corpo, vestia muito justo nas costas e algo folgado à frente, conferindo grande elegância a quem o usava. Por cima da saia levavam ainda um avental de zampa ou outro tecido de algodão de cor clara – as preferências iam para o rosa, o azul e o branco – com terminação arredondada ou em bico, bordado com raminhos e flores. Nos pés calçavam chinelas, que multas vezes levavam na mão para poderem caminhar mais desembaraçadamente. A cabeça era coberta com o cachené de ramagens, atado sob a nuca, a deixar cair uma das pontas sobre o peito. Restam ainda dois complementos indispensáveis a este trajo: o xaile «chinês», ou de quadradinhos pretos e brancos, de oito pontas, levado à cabeça, cuidadosamente dobrado, e a sombrinha para defesa da ardência dos ralos solares.
Trajos da VOLTA DO S. JOÁO de cerca do 1900, apresentados na exposição «Coimbra Etnográfica», realizada pelos Serviços Municipais de Cultura e Turismo, em agosto de 1982. Op. cit., pg.17
Hoje em dia os trajos modernizaram-se em muitos aspetos, mas a maioria das pessoas manifesta a vontade de manter a tradição, utilizando algumas peças talhadas «à moda antiga», ou mesmo antigas, de acordo com as possíbilidades e o gosto de cada um.
Juntam-se ao grupo várias pessoas que vão a cumprir promessas, bem como outros homens e mulheres que queiram acompanhar, a pé.
O cortejo organiza-se junto à capela de Vila Nova e inicia a volta, sempre através de carreiros velhos, pela Feteira, onde o povo o recebe com colchas às janelas e lançando flores sobre a bandeira. Passa em frente da capela de Nossa Senhora da Conceição.
Capela de Nossa Senhora da Conceição. Fotografia de Zizas Bento, acedida em: Capela da Feteira - Google Maps
Aqui os feteirenses presenteiam os cavaleiros e «mulheres da Volta» com bolachas e bebidas e há pessoas que oferecem fitas à bandeira, em pagamento de promessas.
De Feteira seguem para Pousada, onde dão três voltas à capela de S. Pedro.
Pousada, capela de S. Pedro. Imagem acedida em: Rua do Ribeiro - Google Maps
Renova-se o ritual da oferta de bebidas e bolos e cumprimento de promessas, como aliás, em todos os lugares por onde a «Volta» passa.
Cernache é a próxima etapa, com passagem em frente da capela de S. João Evangelista. De uma janela pende a bandeira do titular da capela, a saudar o cortejo.
Continuam em direção a Vila Pouca, onde entram no adro da capela de` Santo António por uma porta e saem por outra.
Vila Pouca, Capela de` Santo António. Imagem acedida em: Capela De Santo António - Google Maps
Aqui os cavaleiros dão três corridas pelas ruas do lugar, enquanto as mulheres vão seguindo para a frente, pela velha estrada da Ribeira do Pão Quente, até atravessar a Quinta das Senhoras, no Orelhudo.
Casconha é a última povoação a ser visitada. Noutros tempos mudava o ritual neste lugar: os cavaleiros apeavam-se, à exceção do porta-bandeira e passavam a levar os animais pela arreata. Uma banda de música que os esperava incorporava-se no cortejo e seguiam todos de regresso a Vila Nova.
A missa da festa marca o ponto final da «Volta». As fitas que ornamentaram as lanças eram oferecidas às pessoas amigas ou às namoradas dos cavaleiros solteiros.
Não é única no seu género esta tradição na zona do campo de Cernache, pois assinalam-se manifestações semelhantes em Vila Pouca, em honra de Santo António, e em Cernache, dedicadas a S. João Evangelista que, todavia, se afastaram um pouco do costume tradicional. De facto, trata-se de um acontecimento típico dos festejos dos santos populares de junho e em especial de S. João Batista, o santo de mais rico folclore.
A «Volta do S. João» de Vila Nova de Cernache é uma expressão coletiva rica de sincretismo onde se caldeiam memórias da velha Cavalaria nas lanças e na carga que tem lugar em Vila Pouca e de antiquíssimos rituais pagãos propiciatórios cristianizados, nas três voltas à capela de S. Pedro da Pousada, com outros costumes menos antigos. Na caminhada através dos campos destes romeiros sem romaria, a cavalo e apeados, há como que o perpetuar de ancestrais ritos quase tão velhos como o próprio homem, como que o ecoar de uma ladainha do maio vinda da própria natureza. É a festa de solstício transformada pela igreja para honra de S. João e dos dois outros grandes santos populares de junho.
Nada disto conta, porém, para as gentes de Vila Nova de Cernache que teimam briosamente em não deixar morrer a tradição, numa afirmação da sua identidade como povo.
Borges, N.C. «A Volta de S. João» em Vila nova de Cernache. In. Munda, n.º 5 Maio 1983. Revista do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro. Pg. 15 a 18
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