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Foi subscrito pelo Professor Doutor Pedro Dias o texto, publicado na revista Munda em novembro de 1981. Faremos a sua divulgação nesta entrada e na seguinte.
A evolução do espaço urbano de Coimbra é hoje bastante bem conhecida, porque dado não ter sido regular, se podem precisar com razoável rigor os seus limites em determinadas datas, nos momentos em que certos eventos a fizeram desenvolver ou a mutilaram.
O povoamento do morro da Alta atual justifica-se plenamente, por ser dominante ao último local até à costa onde era fácil atravessar o Mondego, em qualquer época do ano, dado que, a partir daqui o rio entrava na sua vasta planície aluvial por onde desbordava nas invernias. Assim, este ponto era de passagem quase obrigatória no trânsito entre o Norte e o Sul, pois também para montante, e devido às escarpas que cingiam o leito do Mondego, a viação era difícil. Era, pois, o morro onde a cidade veio a crescer de excecional valor estratégico, no campo militar, e também privilegiado para o florescimento de uma povoação, pois era uma encruzilhada, onde as trocas se poderiam fazer e onde os habitantes se poderiam ocupar a fornecer serviços aos passantes.
Os vestígios pré-históricos são raros, de qualquer modo, existem, o que prova a permanência do Homem no atual perímetro urbano, muitas dezenas de milhares de anos antes da nossa Era. Na margem Sul, para lá de Santa Clara, também, nas grutas dos Alqueves, deixou a marca da sua passagem, aí, na forma de espólio funerário. Pouco sabemos desses nossos remotos antepassados, exceto que, com a sua decisão de se fixarem, iniciaram a História da Cidade de Coimbra.
Mas é do período de dominação romana, já dos primeiros dois séculos da Era Cristã. que nos ficou o mais antigo testemunho material importante: o criptopórtico. Situa-se sob as construções do antigo Paço Episcopal, hoje o Museu Nacional de Machado de Castro, e é formado por duas galerias sobrepostas que serviam para suportar uma grande plataforma artificial na vertente, a fim de se construir o fórum. Aí era o centro da vida da civitas, que então se chamava Aeminium. Por aqui passava a grande via Olissipo-Bracara Augusta, a verdadeira espinha dorsal da viação peninsular ocidental. As invulgares dimensões deste criptopórtico são denunciadoras da importância desta cidade hispânica.
Museu Nacional Machado de Castro. Criptopórtico romano. Imagem acedida emhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Museu_Nacional_de_Machado_de_Castro#/media/Ficheiro:ForumRomanoDeCoimbra3.jpg
Não é de aceitar que a área ocupada fosse multo grande. Certamente não ultrapassaria o perímetro que, mais tarde, as muralhas medievais haveriam de definir. O cemitério. ao lado do grande aqueduto, que o atual substitui no final do séc. XVI, prova o fim da urbe romana, na zona do castelo onzecentista. Na atual Baixa, é provável que também houvesse alguns núcleos de casas, e os Banhos Reais, que D. Afonso Henriques cedeu para a construção do Mosteiro de Santa Cruz, podiam ser umas termas ou um balneário romano.
Com a invasão germânica, a fácies de Coimbra/Aeminium teve, forçosamente, de se modificar. O brilho da civilização romana foi-se apagando, mas, mesmo assim, a cidade ganhou importância, relatlvamente a outros povoados que, décadas antes, a ultrapassavam em prestígio o valor económico e político. Em meados do séc. VI, o Bispo de Conimbriga muda-se para o morro mondeguino e a nova residência do Episcopus Conlmbrlgensls, a Imlnio visigoda. passa a chamar-se Coimbra, enquanto aquela cidade florescente, três léguas a Sul, desapareceria.
O que era a Coimbra do séc. VII? Ao certo não sabemos. Que era pequena e modesta não se duvida, mas suficientemente importante no panorama peninsular, para que quatro monarcas nela cunhassem suas moedas: Recaredo, Lluva, Slsebuto e Chintila.
Com as invasões muçulmanas de 711, a cidade seguiu o destino de todas as que se situavam a Sul das montanhas das Astúrias, e durante mais de três séculos foi islâmica, não obstante breves momentos de domínio de tropas cristãs, como aconteceu em 878. As marcas deixadas nas gentes e nos seus costumes foram profundas, mas no campo artístico os testemunhos dessa intensa colonização não chegaram até nós. Coimbra, pela sua posição geográfica foi o entreposto entre o Sul Islâmico e o Norte Cristão, tendo existido uma importante comunidade moçárabe, que levantou e melhorou os seus templos e que, mesmo depois da vinda para a terra portucalense dos senhores de linhagem franca, continuou a impor o seu modelo de vida, bem diferente do feudalismo de além Pirenéus. A cidade foi definitivamente reconquistada em 1064 pelas tropas de Fernando Magno, mas a reorganização de todo o vasto território e a defesa da linha do Mondego, ficou a cargo de um moçárabe de Tentúgal, o alvazil D. Sesnando, que nas prósperas cidades andaluzas passara os primeiros tempos da sua vida.
O mais antigo testemunho medievo do aspeto da cidade, ainda que vago, é dado pelo geógrafo ldrici, que nos confia que, no início do séc. XII, Coimbra estava «edificada sobre uma montanha, rodeada de boas muralhas, rasgadas por três portas e mui bem fortificada. Fica nas margens do Mondego, que corre a ocidente da cidade até ao mar e cuja foz é defendida pelo forte do Montemor. Sobre o rio existem moinhos. No território da cidade abundam vinhedos e hortas. Na parte que se estende até ao mar, do lado do poente. Existem campos cultivados onde criam gados. A população faz parte da comunidade cristã».
Sem dúvida que, durante os reinados dos nossos primeiros monarcas, a generalidade da população vivia dentro da cerca, onde ficava a alcáçova em que pousaram Afonso Henriques e os seus mais chegados descendentes, o castelo – o último reduto de todo o sistema defensivo – a Sé e o Paço dos Bispos, e as principais igrejas paroquiais.
Sé Velha. 1902. Acervo RA
Mas no arrabalde, além muros, já começavam a despontar alguns pequenos núcleos de habitações, sobretudo junto dos templos que aí se levantavam: Santa Justa, S. Tiago e S. Bartolomeu. Em 1131 começou-se a construção do que viria a ser o mais importante mosteiro português, Santa Cruz. Nesse mesmo ano, e igualmente sob o patrocínio do príncipe D. Afonso Henriques, lançaram-se os fundamentos da grande ponte de pedra sobre o Mondego, cuja solidez desafiou séculos de enxurradas e de assoreamento.
Ponte de Pedra. Acervo RA
Tinha a cidade judiaria e mouraria, continuando a vida destas duas comunidades a processar-se sem grandes sobressaltos até ao final do séc. XV. O bairro judaico ficava na encosta, do lado de Santa Cruz, nas ribas de Corpus Chrlstl. No interior da cerca, uma grande via ligava a Porta de Almedina à Porta do Sol, junto ao castelo, passando pelo adro da Catedral e dividindo ao melo o espaço urbano intramuros. Outra, também de largo uso, fazia a comunicação entre a Porta de Belcouce, a mais próxima do rio, com o adro da Sé e com a Alcáçova.
No final da primeira dinastia a cidade estava já claramente dividida em almedina e arrabalde, cada zona com características muito distintas e bem definidas. Na nova zona além muralha – a Baixa atual – fervilhava o povo miúdo, os comerciantes e os artesãos, sobretudo em torno da Praça, balizada por duas igrejas paroquiais: a de S. Tiago e a de S. Bartolomeu. Nos becos e vias que dela saíam arruavam-se alguns mesteres, mantendo-se ainda em muitos casos a toponímia medieval. Na Alta, dentro dos muros, vivia o alto clero, os cónegos da Sé e outros beneficiados eclesiásticos, a nobreza local e os seus servidores, e também, evidentemente, algum povo.
Dias, P. Evolução do Espaço Urbano em Coimbra. In: Munda, Revista do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, n.º 2, pg. 5-11.
O traçado das ruas da cidade romana é indeterminável, pois os únicos edifícios romanos descobertos – o criptopórtico e a cave em frente da Sé Velha – são insuficientes para nos determinarem orientações.
A mediévica Porta do Sol era provavelmente, já no período romano, umas das entradas da cidade; ficava situada ao cimo da rampa natural que o aqueduto romano acompanhava. Do facto de quase todas as inscrições funerárias romanas de Coimbra terem sido achadas metidas nos muros do Castelo, ou nos panos da muralha entre este e a Couraça de Lisboa, V. Correia concluiu que o cemitério romano deveria ficar situado na encosta de S. Bento e do Jardim Botânico, isto é a poente da ladeira que subia até à Porta do Sol.
Desta entrada da cidade, divergiam muito possivelmente duas vias: uma delas, que na Coimbra moderna (mas anterior à demolição da Alta da cidade) era chamada Rua Larga, conduzia ao sítio que o edifício antigo da Universidade presentemente ocupa. Aqui, não pode deixar de ter existido um edifício romano importante, provavelmente publico … Outra via descia do sítio da Porta do Sol ao antigo Largo da Feira e daqui, pelo Rego de Água e Rua das Covas ou de Borges Carneiro, ao largo da Sé Velha. Se este era o principal arruamento da cidade romana no sentido leste-oeste, é tentador ver, na Rua de S. João ou de Sá de Miranda e na de S. Pedro, o eixo principal norte-sul. Nogueira Gonçalves, porém, considera esta última um corte artificial, talvez operado no século XVI.
Se o monumento romano à Estrela era um arco honorífico, devia marcar o início de uma rua da cidade. Esta seria a do Correio ou de Joaquim António de Aguiar, que António de Vasconcelos representa na sua planta de Coimbra no século XII. Na mesma planta, um outro arruamento, de antiguidade bem provável, é definido pelas ruas da Trindade, dos Grilos ou de Guilherme Moreira e da Ilha. Da antiguidade da Rua do Cabido, representada ainda na mesma planta, duvidamos algum tanto; inclinamo-nos mais a ver na Rua do Loureiro outra das principais vias antigas.
Tudo isto, porém, é conjetural.
Alarcão, J. 1979. As Origens de Coimbra. Separata das Actas das I Jornadas do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro. Coimbra, Edição do GAAC. Pg. 39 a 40
Os olivais ainda não impunham a sua expressão na paisagem coimbrã em 1085, embora já o azeite entrasse na onomástica coimbrã … Do século XII há inegáveis testemunhos da presença da oliveira nesta região. Mas a riqueza agrária é dadas pelas vinhas, plantadas numa zona muito vasta, a começar junto das portas das muralhas (Porta do Sol, pelo menos).
A paisagem agrícola era então muito mais caracterizada pela cepa do que pela oliveira. Junto da cidade, pertencentes a Santa Cruz, havia algumas oliveiras em Montarroio. Ao certo, um olival em «Lagenas», perto do Mondego, um outro (com vinha) em Vila Franca e um terceiro (olival, ou vinha e olival) na Várzea do Mondego … Mas sabe-se que em 1379 os olivais caracterizavam a paisagem coimbrã na margem esquerda do Mondego, no termo da estrada que vinha de Almalaguês … Nos finais do século XIV a cultura da oliveira estava, assim, muito divulgada em Coimbra. O azeite constituía então o principal produto agrícola.
…
Em 14 de Maio do mesmo ano (1488), considerando a notória destruição dos olivais velhos e novos pelos «muitos bois» de Santa Cruz e moradores da cidade, já o monarca havia concedido à Câmara que pudesse pôr aos daninhos aquelas penas que lhe parecesse. E eram bem necessárias porquanto a «novidade» dos olivais constituía ainda (e continuou a sê-lo durante muito tempo) a melhor cultura para «governança e repairo» dos moradores da cidade estava muito diminuída … ao gado de Santa Cruz outro se veio juntar: os bois dos obrigados a darem carne à cidade, ao Bispo, ao Cabido, os necessários ao serviço do Hospital Real, das freiras de Santa Clara e de outros; depois, com a transferência da Universidade, os animais dos seus carniceiros e recoveiros, dos colégios e dos mosteiros.
… O número (de bois que pastavam nos olivais da cidade) cresceu de tal modo que, em 1556, os vereadores se veem obrigados a solicitar providências régias. Embora os olivais continuassem a ser «o principal proveito desta cidade e de que os moradores della se mais ajudão», não havia quem os quisesses pôr «porque loguo he tudo destruído» … Ao prejuízo causado por estas reses somou-se, sobretudo após a transferência da Universidade, o provocado por animais diversos, nomeadamente os que podiam ser destinados ao talho. Entre eles os porcos.
Nos açougues citadinos o abate de porcos era muito inferior à dos bois e, sobretudo, à dos carneiros. Mas o facto não excluía uma criação de gado porcino que se nos afigura, pelo menos em algumas épocas, com certo relevo.
As posturas municipais decretadas sobre a pastagem dos porcos dentro da cidade ou do aro dos olivais foram múltiplas e visaram não só a defesa das culturas mas também a higiene da área urbana.
Pelas ruas, praças, rossios e arrabaldes costumavam os donos trazer este gado.
Oliveira, A. 1971. A Vida Económica e Social de Coimbra de 1537 a 1640. Primeira Parte. Volume I. Coimbra, Universidade de Coimbra, pg. 84 e 85, 88 a 90, 91 a 93
… a similitude do aparelho de construção ostentada pelo alcácer e pelos trechos arcaicos da muralha (num percurso homogéneo, entre a demolida «Porta da Traição» e a de «Almedina»), reconhecida por Vergílio Correia e Nogueira Gonçalves, tanto quanto o facto se confirmar que, do mesmo modo, “também pedras visigóticas foram aproveitadas para o enchimento dos muros” (sabendo-se hoje que onde se vê «visigodo» se deve, porventura, ver «moçárabe») … Tudo leva, assim, a crer que a importância simbólica e estratégica atribuída à recuperação de Coimbra, no quadro de um projeto imperial de «guerra santa» direcionado ao Reino de Leão, incluiria a sua conversão em praça militar, entendida como guarda avançada do Islão, em cujo âmbito se articulariam tanto o seu «repovoamento» como a sua poderosa fortificação; e que esta se levara a cabo por meio da edificação do «alcácer» e da própria cintura de muralhas, sem a qual, em boa verdade, não disporia aquele de verdadeira eficácia militar … desse modo melhor se compreendendo, aliás, a presença (há muito assinalada), no percurso mural, de trechos mais ou menos explicitamente «muçulmanos», como o arco ultrapassado da Porta da Traição, documentado em 1094, os arranques, também de arco ultrapassado, reconhecidos na Porta de Almedina, onde igualmente parecem divisar-se restos de duas torres circulares, estruturas que, pela sua afinidade técnica com a «alcáçova» e a muralha urbana, Nogueira Gonçalves atribuiria, uma vez mais, ao “século IX, ao período a seguir à primeira reconquista" e mesmo, talvez, a Porta do Sol, referenciada em 1087.
…
Parece, assim, configurar-se, no extremo norte do «Andalus» ocidental, mais do que um mero «alcácer», uma praça-forte cingida de muralhas: ciclópico anel, cerrando a ferradura e dando ao (duplo) «monte» a aparência «redonda» captada por Idrisi.
Pimentel, A.F. 2005. A Morada da Sabedoria. I. O Paço real de Coimbra. Das Origens ao Estabelecimento da Universidade. Coimbra, Almedina, pg. 197 a 199
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