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Uma notícia, não assinada, publicada na edição de 19 de dezembro de 2004 do jornal Público, referencia a existência, na cave da antiga livraria Coimbra Editora, de vestígios arqueológicos – um trecho do fosso que integrava o sistema defensivo da cidade, silos árabes entulhados de cerâmicas e de fragmentos de alcatruz cerâmico – que julgamos relevantes para todos quantos se interessam pelas coisas de Coimbra.
A esta notícia acrescem documentos que nos foram disponibilizados que referem a realização em 2004, de uma reunião nos Paços do Concelho que teve por objetivo «aferir/otimizar a melhor solução para o fosso», na qual foi autorizado «um corte de 0,80m paralelo à parede sul, ao nível da cave» e, ainda, «um rebaixamento do coroamento do fosso no máximo de 0,34m».
“Acordo/autorização” que permitiu que os vestígios então encontrados sumissem parcialmente e os que restavam fossem seriamente mutilados.
Vestígios mutilados que a Livraria em ordem aos quais a Livraria Coimbra Editora. Ld.ª criou condições mínimas para a sua visualização.
Porta da Barbacã e fachada lateral do prédio, ainda com letreiro da Coimbra Editora. Imagem acedida em: https://www.bing.com/images/search?view=detailV2&mediaurl=https …
Logotipo da Coimbra Editora, colocado na frontaria das suas antigas instalações, na Rua do Arnado. Imagem acedida em: https://observador.pt/2020/09/22/coimbra-editora-cessa-atividade-ate-ao-fim-do-mes/
À declaração, no final de 2015, da insolvência da Coimbra Editora. Ld.ª, seguiu-se a compra do imóvel pela empresa Gomes & Góis, Ourives e Joalheiros que continuou a facilitar a visualização do que restava das descobertas feitas.
Porta da Barbacã e fachada lateral do prédio, com letreiro da empresa Gomes & Góis. Imagem acedida em: https://www.bing.com/images/search?view=detailV2&mediaurl=https
Recentemente, o imóvel voltou a ser vendido agora, segundo parece, a uma empresa estrangeira da área da restauração. Atualmente o edifício está encerrado, não sendo conhecidas informações seguras quanto a futura utilização do mesmo.
Os factos referidos, levaram-nos a refletir sobre o assunto e a voltar a uma questão que, desde há longos anos, tenho procurado interessar Coimbra, a qual resumo colocando as seguintes interrogações.
Será que Coimbra não merece um núcleo museológico dotado das condições técnicas de exposição hoje disponíveis, destinado a dar a conhecer a história milenar da urbe?
Será que o edifício onde durante tantos anos esteve instalada a Livraria Coimbra Editora e que possui ainda, no seu subsolo, alguns vestígios arqueológicos ligados aos primórdios longínquos da existência do burgo não seria o local mais adequado para nele se instalar esse núcleo?
Será que a civitas irá assistir sem um arrepio a que, dos vestígios arqueológicos ali descobertos, nada mais reste do que um conjunto de documentos esquecidos nos arquivos?
Será que interessa a Coimbra que, num local tão nobre, seja dada prioridade à abertura de mais uma venda de pizas ou de “artesanato”?
É para esta reflexão que convoco todos os que amam Coimbra.
Texto do artigo
Livraria Coimbra Editora. Instituto Português de Arqueologia e o Instituto Português de Património Arquitetónico tem opiniões distintas quanto à conservação do achado.
A remodelação da Livraria Coimbra Editora, implantada junto à Cerca e Portas de Almedina, em Coimbra, desvendou importantes tesouros do passado, mas um achado inédito – um fosso do sistema defensivo da cidade – ... Presumivelmente do período medieval, essa vala escavada na rocha, que ainda conserva uma profundidade de cerca de dois metros e meio, é um achado único em Coimbra. Embora apareça vagamente referenciada em documentos antigos, nunca tinha sido encontrada.
Para o IPA, sendo o fosso parte integrante do sistema defensivo de Coimbra, e encontrando-se este classificado como monumento nacional desde 1910, através da Cerca e das Portas de Almedina, deverá ser preservado e musealizado.
Mas o IPPAR, que tutela os monumentos nacionais, a 12 de novembro último deu parecer favorável à reformulação do projeto de arquitetura do dono do imóvel, autorizando o “desmonte de um trecho do fosso, salvaguardando o princípio da conservação pelo registo cientifico” … na prática, isso consistiria na destruição de uma parte significativa deste troço de fosso com a colocação no piso da cave de uma espécie de tampa amovível para que uma pequena parte pudesse ser observada...
Tesouros do passado
Além do troço do fosso, as obras de remodelação da livraria desvendaram no subsolo da cave outros tesouros do passado, considerados de grande importância para o conhecimento da ocupação da cidade de Coimbra.
“Naquela cave conseguimos percorrer a história de Coimbra, desde o século VIII até à atualidade”, comentou Costa Santos. Aí foram descobertos antigos silos árabes entulhados com cerâmicas e moedas de várias épocas, e ainda fragmentos de alcatruz cerâmico que cronistas norte-africanos diziam existir no vale do rio Mondego.
Várias peças cerâmicas de uso doméstico, algumas delas do período árabe, foram recolhidas quase intactas, e os arqueólogos admitem que ainda será possível a reconstituição de outras através da colagem de fragmentos. Três dos quatro silos foram destruídos durante as obras, após o seu registo científico … O silo conservado, semi-incrustado numa parede do edifício, será futuramente convertido em suporte expositivo da livraria. Igualmente a parte de uma das torres das portas da cidade aí descoberta, que Costa Santos julga datadas do século XIII ou XIV, ficará visível aos utentes da livraria, em consequência das adaptações ao projeto original de remodelação.
Publico, jornal. 2004. Achados Arqueológicos em Livraria Opõem Entidades em Coimbra. Texto acedido em: http://jornal.publico/2004/12/19/LocalCentro/LC03.html
Foi subscrito pelo Professor Doutor Pedro Dias o texto, publicado na revista Munda em novembro de 1981. Faremos a sua divulgação nesta entrada e na seguinte.
A evolução do espaço urbano de Coimbra é hoje bastante bem conhecida, porque dado não ter sido regular, se podem precisar com razoável rigor os seus limites em determinadas datas, nos momentos em que certos eventos a fizeram desenvolver ou a mutilaram.
O povoamento do morro da Alta atual justifica-se plenamente, por ser dominante ao último local até à costa onde era fácil atravessar o Mondego, em qualquer época do ano, dado que, a partir daqui o rio entrava na sua vasta planície aluvial por onde desbordava nas invernias. Assim, este ponto era de passagem quase obrigatória no trânsito entre o Norte e o Sul, pois também para montante, e devido às escarpas que cingiam o leito do Mondego, a viação era difícil. Era, pois, o morro onde a cidade veio a crescer de excecional valor estratégico, no campo militar, e também privilegiado para o florescimento de uma povoação, pois era uma encruzilhada, onde as trocas se poderiam fazer e onde os habitantes se poderiam ocupar a fornecer serviços aos passantes.
Os vestígios pré-históricos são raros, de qualquer modo, existem, o que prova a permanência do Homem no atual perímetro urbano, muitas dezenas de milhares de anos antes da nossa Era. Na margem Sul, para lá de Santa Clara, também, nas grutas dos Alqueves, deixou a marca da sua passagem, aí, na forma de espólio funerário. Pouco sabemos desses nossos remotos antepassados, exceto que, com a sua decisão de se fixarem, iniciaram a História da Cidade de Coimbra.
Mas é do período de dominação romana, já dos primeiros dois séculos da Era Cristã. que nos ficou o mais antigo testemunho material importante: o criptopórtico. Situa-se sob as construções do antigo Paço Episcopal, hoje o Museu Nacional de Machado de Castro, e é formado por duas galerias sobrepostas que serviam para suportar uma grande plataforma artificial na vertente, a fim de se construir o fórum. Aí era o centro da vida da civitas, que então se chamava Aeminium. Por aqui passava a grande via Olissipo-Bracara Augusta, a verdadeira espinha dorsal da viação peninsular ocidental. As invulgares dimensões deste criptopórtico são denunciadoras da importância desta cidade hispânica.
Museu Nacional Machado de Castro. Criptopórtico romano. Imagem acedida emhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Museu_Nacional_de_Machado_de_Castro#/media/Ficheiro:ForumRomanoDeCoimbra3.jpg
Não é de aceitar que a área ocupada fosse multo grande. Certamente não ultrapassaria o perímetro que, mais tarde, as muralhas medievais haveriam de definir. O cemitério. ao lado do grande aqueduto, que o atual substitui no final do séc. XVI, prova o fim da urbe romana, na zona do castelo onzecentista. Na atual Baixa, é provável que também houvesse alguns núcleos de casas, e os Banhos Reais, que D. Afonso Henriques cedeu para a construção do Mosteiro de Santa Cruz, podiam ser umas termas ou um balneário romano.
Com a invasão germânica, a fácies de Coimbra/Aeminium teve, forçosamente, de se modificar. O brilho da civilização romana foi-se apagando, mas, mesmo assim, a cidade ganhou importância, relatlvamente a outros povoados que, décadas antes, a ultrapassavam em prestígio o valor económico e político. Em meados do séc. VI, o Bispo de Conimbriga muda-se para o morro mondeguino e a nova residência do Episcopus Conlmbrlgensls, a Imlnio visigoda. passa a chamar-se Coimbra, enquanto aquela cidade florescente, três léguas a Sul, desapareceria.
O que era a Coimbra do séc. VII? Ao certo não sabemos. Que era pequena e modesta não se duvida, mas suficientemente importante no panorama peninsular, para que quatro monarcas nela cunhassem suas moedas: Recaredo, Lluva, Slsebuto e Chintila.
Com as invasões muçulmanas de 711, a cidade seguiu o destino de todas as que se situavam a Sul das montanhas das Astúrias, e durante mais de três séculos foi islâmica, não obstante breves momentos de domínio de tropas cristãs, como aconteceu em 878. As marcas deixadas nas gentes e nos seus costumes foram profundas, mas no campo artístico os testemunhos dessa intensa colonização não chegaram até nós. Coimbra, pela sua posição geográfica foi o entreposto entre o Sul Islâmico e o Norte Cristão, tendo existido uma importante comunidade moçárabe, que levantou e melhorou os seus templos e que, mesmo depois da vinda para a terra portucalense dos senhores de linhagem franca, continuou a impor o seu modelo de vida, bem diferente do feudalismo de além Pirenéus. A cidade foi definitivamente reconquistada em 1064 pelas tropas de Fernando Magno, mas a reorganização de todo o vasto território e a defesa da linha do Mondego, ficou a cargo de um moçárabe de Tentúgal, o alvazil D. Sesnando, que nas prósperas cidades andaluzas passara os primeiros tempos da sua vida.
O mais antigo testemunho medievo do aspeto da cidade, ainda que vago, é dado pelo geógrafo ldrici, que nos confia que, no início do séc. XII, Coimbra estava «edificada sobre uma montanha, rodeada de boas muralhas, rasgadas por três portas e mui bem fortificada. Fica nas margens do Mondego, que corre a ocidente da cidade até ao mar e cuja foz é defendida pelo forte do Montemor. Sobre o rio existem moinhos. No território da cidade abundam vinhedos e hortas. Na parte que se estende até ao mar, do lado do poente. Existem campos cultivados onde criam gados. A população faz parte da comunidade cristã».
Sem dúvida que, durante os reinados dos nossos primeiros monarcas, a generalidade da população vivia dentro da cerca, onde ficava a alcáçova em que pousaram Afonso Henriques e os seus mais chegados descendentes, o castelo – o último reduto de todo o sistema defensivo – a Sé e o Paço dos Bispos, e as principais igrejas paroquiais.
Sé Velha. 1902. Acervo RA
Mas no arrabalde, além muros, já começavam a despontar alguns pequenos núcleos de habitações, sobretudo junto dos templos que aí se levantavam: Santa Justa, S. Tiago e S. Bartolomeu. Em 1131 começou-se a construção do que viria a ser o mais importante mosteiro português, Santa Cruz. Nesse mesmo ano, e igualmente sob o patrocínio do príncipe D. Afonso Henriques, lançaram-se os fundamentos da grande ponte de pedra sobre o Mondego, cuja solidez desafiou séculos de enxurradas e de assoreamento.
Ponte de Pedra. Acervo RA
Tinha a cidade judiaria e mouraria, continuando a vida destas duas comunidades a processar-se sem grandes sobressaltos até ao final do séc. XV. O bairro judaico ficava na encosta, do lado de Santa Cruz, nas ribas de Corpus Chrlstl. No interior da cerca, uma grande via ligava a Porta de Almedina à Porta do Sol, junto ao castelo, passando pelo adro da Catedral e dividindo ao melo o espaço urbano intramuros. Outra, também de largo uso, fazia a comunicação entre a Porta de Belcouce, a mais próxima do rio, com o adro da Sé e com a Alcáçova.
No final da primeira dinastia a cidade estava já claramente dividida em almedina e arrabalde, cada zona com características muito distintas e bem definidas. Na nova zona além muralha – a Baixa atual – fervilhava o povo miúdo, os comerciantes e os artesãos, sobretudo em torno da Praça, balizada por duas igrejas paroquiais: a de S. Tiago e a de S. Bartolomeu. Nos becos e vias que dela saíam arruavam-se alguns mesteres, mantendo-se ainda em muitos casos a toponímia medieval. Na Alta, dentro dos muros, vivia o alto clero, os cónegos da Sé e outros beneficiados eclesiásticos, a nobreza local e os seus servidores, e também, evidentemente, algum povo.
Dias, P. Evolução do Espaço Urbano em Coimbra. In: Munda, Revista do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, n.º 2, pg. 5-11.
Razões topográficas exigiram a construção das igrejas medievais nos lugares em que se encontram.
O morro da primitiva cidade de Coimbra despega-se das outras colinas pelo colo dos Arcos do Jardim, donde partem os dois vales que o delimitam: o de Santa Cruz e o do Jardim Botânico. Saia um córrego médio do Marco da Feira, corria pela rua que depois tomou o nome de Rêgo-de-Água, depois, já mais volumoso e veloz na Rua das Covas, desfazia-se em espuma nas rochas do Quebra-Costas, e avançava já torrente pelo sítio onde será depois a Porta de Almedina, espraiando-se e depositando os materiais carregados na parte baixa da cidade, juntando-se aos aluviais do Mondego, que iam formando os diversos “arnados” que são o substrato do arrabalde antigo.
Planta da Cidade 1845
De facto, esta topografia é tão intrínseca que, nas grandes tempestades, a Natureza às vezes repõe o que o homem alterou. E assim aconteceu em 14 de Junho de 1411, em que foi tal a quantidade de água e o volume dos materiais transportados, que arrancou as portas chapeadas de ferro da cidade.
Temos assim uma linha de córrego que separa em duas partes, a antiga Almedina. Seguia, este córrego, um traçado que se aproximava bastante de uma reta e que agora está cortada pelo ângulo sudoeste do embasamento romano do Museu Machado de Castro e depois esquina noroeste da Sé.
Do outro lado, o vale de Santa Cruz contorna a colina, com grande bacia de receção pluvial. O vale tinha uma corrente contínua de águas, riacho que antes do seu encanamento pelas obras de Santa Cruz, tinha pelo menos um pontão e cuja corrente movia moinhos em várias épocas.
Delimitava pois, esse ribeiro, do lado norte, o arrabalde com forma de triângulo, e com duas igrejas: São Bartolomeu e São Tiago.
Ora, quais as razões topográficas da existência de duas freguesias em tão pequeno arrabalde?
O córrego médio da parte alta da cidade, cavado, não pela ação de águas contínuas, mas sim das de género torrencial, tinha à porta de Almedina como que o seu canal de transporte. O cone de depósitos devia ocupar, na sua maior estreiteza o espaço sensivelmente entre a R. das Solas e a das Azeiteiras.
Assim, quando o homem começou a construir no arrabalde, essas águas torrenciais obrigaram a repartir o povoado em dois grupos populacionais, com duas igrejas que até eram de padroado diferente. Sabe-se da existência de São Bartolomeu no séc. X, na primeira reconquista, apesar dos restos mais antigos, até hoje encontrados, serem do séc. XII, do período afonsino. O edifício atual data do séc. XVIII.
Planta da Cidade 1845 Pormenor
Quanto à Igreja de São Tiago é do fim do XII, princípio do XIII, do reinado de D. Sancho. Sabe-se, no entanto, que houve uma construção anterior de que nada se conhece, sendo bastante provável que remonte à primeira reconquista.
Anjinho, I.M.M. 2006. Da legitimidade da correção do restauro efetuado na Igreja de S. Tiago em Coimbra. Acedido em 17.01.2017, em
… Já fora de portas, encontrava-se um outro núcleo de propriedade régia, onde a concentração era quase compacta: a Judiaria Velha, no local onde existe a Rua Corpo de Deus.
… Em Coimbra, como sucedia em muitas outras cidades e vilas do país, o rei era o grande proprietário das casas habitadas pela minoria judaica …
… Embora correspondendo grosso modo ao espaço que é hoje ocupado pela Rua Corpo de Deus como aliás indicam os limites fixados no título da descrição “que se começa tralla ousia de Santiago e se vai ferir na rua derecta acima da egreja do Corpo de Deus”, a judiaria contava seguramente com outras ruas… provavelmente de menores dimensões, são as ruas da Marçaria, do Pintosinho e da Moreira.
… Na data em que o tombo foi realizado (1395) já a judiaria se encontrava desativada, tendo os judeus aí residentes passado para a judiaria próxima do mosteiro de Santa Cruz, local mais tarde designado por Rua Nova.
É uma imagem de abandono a que perpassa pelo texto onde se descreve a maioria das propriedades como abandonadas, em rossio ou em chão.
… A Judiaria Velha de Coimbra era, pela sua localização, um exemplo paradigmático das judiarias portuguesas: junto a uma via principal, económica e socialmente importante, a Rua da Calçada, encostada à muralha e quase delimitada nos topos por duas portas da cidade, Porta Nova e Porta de Almedina, para além de vizinha de um templo cristão, o de São Tiago, como tentativa de conversão da população judaica.
Embora pouco saibamos das casas que constituíam o bairro, não nos parece que se distinguissem do panorama geral. Oscilando entre o piso único e os dois pisos, por vezes recorrendo ao meio sobrado como forma de ganhar uma câmara extra, algumas contavam com cortinhais, num caso com uma amoreira noutro com quatro pés de oliveira. Um terceiro fora aproveitado para a edificação de uma cozinha. Só duas casas parecem fugir à regra: uma descrita como «paaço grande» a outra, de dois pisos e quatro portais, embora provavelmente dividida em duas moradas já que a traziam aforada Boroeiro Judeu e Samuel peneireiro.
O tombo não deixa perceber até que ponto a Judiaria era um espaço fisicamente delimitado e efetivamente fechado, embora a porta da Judiaria seja referida por duas vezes. Junto a esta, e na zona de maior movimento pela confluência com as Ruas da Calçada e de Coruche, situava-se a albergaria dos judeus. Não muito longe a carniçaria onde, provavelmente a cargo de «Salomon carneçeiro», a carne era tratada segundo os preceitos hebraicos.
… Um instrumento redigido a pedido dos judeus por Vasco Martins tabelião, em 1357, diz que moravam em cerca apartada e “sob chave e guarda de el-rei”.
Trindade, L. 2002. A Casa Corrente em Coimbra. Dos finais da Idade Média aos inícios da Época Moderna. Coimbra, Câmara Municipal de Coimbra. Pg. 122 a 123
A rua era, na sociedade do Oriente medieval, entendida e vivida como uma extensão natural da casa. Um espaço público que os particulares tendiam frequentemente a privatizar, prática tanto mais grave quanto mais estreita, sinuosa e íngreme fosse a rua em questão o que, de resto, sucedia na esmagadora maioria dos casos.
Do alvorecer ao toque das Trindades, em que o tanger do sino anunciava o recolher obrigatório, a rua fervilhava de movimento ... O mesmo se passava em Coimbra onde “se faziam muitos furtos de noite e porque é cousa deshonesta e de que os homens não têm necessidade haverem de estar depois do sino corrido à sua porta, e por se evitarem os maus azos, acordaram (os vereadores) que toda pessoa se recolha”
... à porta de casa, na soleira, num degrau ou no alpendre, desenrolavam-se inúmeras atividades ... As posturas municipais de Coimbra proibiam “maçar linho em ruas correntes” bem como lançá-lo “nos adros das igrejas estendido para se amanhar”, prova de que era um hábito comum.
... Presença constante eram os animais que cada vizinho criava. Galinhas, patos e porcos vagueavam livremente pelas ruas ... Também em Portugal, os regulamentos municipais tendem a restringir a criação de porcos no interior da cidade ... Em Coimbra não era consentida a sua presença pelas ruas da cidade «pela muita sujidade que fazem»
... Para a rua, onde já se acumulavam dejetos vários, lixos, excrementos de animais e até animais em putrefação, vertiam-se diariamente as águas domésticas, os conteúdos dos "camareiros" ... É o que se pode inferir pelas posturas municipais (coimbrãs): “quando quer que pelas ruas e praças se acharem bestas, cães, gatos, aves mortas e quaesquer outras coisas sujas e fedorentas”
... Em 1525, era D. João III quem determinava a limpeza de um monturo em Coimbra, lembrando que na cidade haviam falecido trezentas e setenta e três pessoas.
... “considerando como muitas pessoas no tempo das chuvas e enxurradas grandes deitam (em Coimbra) de suas casas nas ditas enxurradas muitas sujidades de esterco, palha com que os canos da cidade entupem donde se recebem muitas perdas”
... Em Coimbra, um dos espaços destinados à recolha do lixo situava-se fora da Porta do Castelo, “em uma grande barroca que aí está ao fundo da calçada”
… Em Coimbra, a edilidade proíbe a qualquer pessoa fazer «os seus feitos na praça ou em ruas e quelhas públicas» sob pena de 30 reais, medida que não se aplicava a «meninos de quatro anos para baixo». O incumprimento das posturas era de tal ordem que nem a escada que dava acesso à Torre de Almedina, onde então se realizavam as sessões camarárias, era poupada da «descortesia que os homens e moços faziam em virem fazer seus feitos». Aí, porém, o castigo era proporcionalmente mais grave: mil reais e quatro dias de prisão se fosse homem, mancebo ou escravo, trezentos reais e dez dias de cadeia se fosse moço».
Trindade, L. 2002. A Casa Corrente em Coimbra. Dos finais da Idade Média aos inícios da Época Moderna. Coimbra, Câmara Municipal de Coimbra. Pg. 96 a 101
A ocupação pré-romana da cidade é provável, ainda que não provada.
… Na área da cidade, mesmo da cidade alargada do nosso tempo, não se encontraram nunca vestígios pré-romanos. Os mais próximos são os da Caverna dos Alqueves.
Fica situada entre as aldeias da Póvoa e Bordalo, a poente de Coimbra, nas traseiras do mosteiro novo de Santa Clara. Descoberta pelo Dr. Santos Rocha, que aí fez explorações em 1898, foi escavada também por A. Mesquita de Figueiredo, em 1900 e 1901. O espólio encontrado é neolítico.
É provável que o festo da colina onde, no nosso tempo, se instalou a cidade universitária, tenha sido ocupado desde épocas recuadas. O sítio é excelente. Dois vales profundos cavam um fosso natural em redor da colina. O primeiro corresponde à atual Avenida de Sá da Bandeira. Por ele corria um ribeiro chamado ‘torrente de balneis Regis’ no documento de 1137 demarcatório da freguesia de Santa Cruz. O ribeiro, que tomava a direção da Rua da Moeda, tinha caudal suficiente para moer, na Idade Média, as azenhas instaladas nesta rua … O segundo vale corresponde ao Jardim Botânico e à sua mata. Uma rampa natural, que o aqueduto de S. Sebastião, ou dos Arcos do Jardim acompanha, separa os dois vales … Este morro é ainda fendido a meio por aquilo que Fernandes Martins chamou expressivamente uma «cutilada»: um valeiro que, saindo do antigo Largo da Feira, «e seguindo pelo Rego de Água em direção à Rua das Covas, ganha declive cada vez mais rápido, para se despenhar por Quebra-Costas, a caminho da Porta de Almedina». Em 14 de Junho de 1411, segundo revela Nogueira Gonçalves, uma enxurrada de tal sorte se precipitou por este córrego, que arrancou as portas chapeadas de ferro da cidade…
Um sítio naturalmente defendido e cómodo para assento de povoado fica assim definido entre a Couraça de Lisboa e o córrego da Rua das Covas ou de Borges Carneiro. Se nenhuns vestígios de épocas pré-históricas foram aí encontrados, isso se deve, certamente, ao facto de os trabalhos para a instalação da cidade universitária não terem sido acompanhados por arqueólogos.
Na área da atual cidade, outro ponto que os povos pré-históricos poderiam ter ocupado, é o morro da Conchada; não se conhecem aqui, porém, vestígios arqueológicos. Uma «necrópole com sepulturas antropomórficas abertas em rocha», provavelmente medieval, foi descoberta no vale de Coselhas.
Alarcão, J. 1979. As Origens de Coimbra. Separata das Actas das I Jornadas do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro. Coimbra, Edição do GAAC. Pg. 25 a 27
O trânsito, para Sul ou para Norte do País, obrigatoriamente, devia passar pela cidade e por dentro da cerca: almocreves, mercadores, caminhantes e «outros quaeesquer que levarem cargas». A pena era grave: perda das bestas e do que levassem.
O trânsito que vinha do sul entrava, como é óbvio, pela ponte. Daqui passava pelo Arrabalde em direção à porta de Almedina. Em vez de seguir adiante, penetrava na cerca por esta porta e ia sair pela do Castelo. Descia depois pela Ribela, pelo caminho que passava atrás da torre do mosteiro de Santa Cruz. Uma vez de novo no Arrabalde, o tráfego apanhava o caminho de saída: por Montarroio, «assy como se vay sair per cima dos paacos da gafaria»; daqui em diante, «per sob onde esta a forca, assy se vay sair aa ponte da Auga de Maios». Chegado a este ponto, seguia «pelas stradas direitas».
O caminho do trânsito norte-sul não foi indicado. Talvez fosse o mesmo, agora, descendo a colina.
No Arrabalde, «a par de Sam Bertolameu e a par de Santiago» ficaram as estalagens. Mas não podiam vender outra coisa que não fosse palha.
Oliveira, A. 1971. A Vida Económica e Social de Coimbra de 1537 a 1640. Primeira Parte. Volume I. Coimbra, Universidade de Coimbra, pg.156 e 157
… a similitude do aparelho de construção ostentada pelo alcácer e pelos trechos arcaicos da muralha (num percurso homogéneo, entre a demolida «Porta da Traição» e a de «Almedina»), reconhecida por Vergílio Correia e Nogueira Gonçalves, tanto quanto o facto se confirmar que, do mesmo modo, “também pedras visigóticas foram aproveitadas para o enchimento dos muros” (sabendo-se hoje que onde se vê «visigodo» se deve, porventura, ver «moçárabe») … Tudo leva, assim, a crer que a importância simbólica e estratégica atribuída à recuperação de Coimbra, no quadro de um projeto imperial de «guerra santa» direcionado ao Reino de Leão, incluiria a sua conversão em praça militar, entendida como guarda avançada do Islão, em cujo âmbito se articulariam tanto o seu «repovoamento» como a sua poderosa fortificação; e que esta se levara a cabo por meio da edificação do «alcácer» e da própria cintura de muralhas, sem a qual, em boa verdade, não disporia aquele de verdadeira eficácia militar … desse modo melhor se compreendendo, aliás, a presença (há muito assinalada), no percurso mural, de trechos mais ou menos explicitamente «muçulmanos», como o arco ultrapassado da Porta da Traição, documentado em 1094, os arranques, também de arco ultrapassado, reconhecidos na Porta de Almedina, onde igualmente parecem divisar-se restos de duas torres circulares, estruturas que, pela sua afinidade técnica com a «alcáçova» e a muralha urbana, Nogueira Gonçalves atribuiria, uma vez mais, ao “século IX, ao período a seguir à primeira reconquista" e mesmo, talvez, a Porta do Sol, referenciada em 1087.
…
Parece, assim, configurar-se, no extremo norte do «Andalus» ocidental, mais do que um mero «alcácer», uma praça-forte cingida de muralhas: ciclópico anel, cerrando a ferradura e dando ao (duplo) «monte» a aparência «redonda» captada por Idrisi.
Pimentel, A.F. 2005. A Morada da Sabedoria. I. O Paço real de Coimbra. Das Origens ao Estabelecimento da Universidade. Coimbra, Almedina, pg. 197 a 199
Na verdade, não custa admitir que a romanização de «Aeminium» tivesse por objetivo a incorporação de um povoado primitivo, aí encastelado (o «oppidum»), impedindo a sua reconstituição em local estratégico, como era o ponto de travessia do Mondego pela estrada (então organizada) «Ulissipo – Bracara Augusta», assim se originando uma pequena cidade que ao longo dos séculos I e II iria crescendo e estruturando órgãos políticos (refletidos no «fórum»), colhendo os benefícios das vias comerciais que aí se cruzavam, sem, por tanto, rivalizar com a opulenta Conimbriga.
…
… a opinião de C.A. Ferreira de Almeida, segundo a qual seria admissível que a Porta de Almedina assentasse numa base romana, como o próprio conceito (na verdade sensato) de que a hipotética muralha imperial representasse apenas um reforço pontual das qualidades defensivas da própria topografia … sendo que a comprovação da origem romana da Porta de Almedina não constitui necessariamente prova da sua inclusão num circuito murado, o mesmo sucedendo com a Porta de Belcouce.
Pimentel, A.F. 2005. A Morada da Sabedoria. I. O Paço real de Coimbra. Das Origens ao Estabelecimento da Universidade. Coimbra, Almedina, pg. 214
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