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Na época distante a que me estou reportando – mais concretamente, no meu tempo - havia poucas distrações. Os académicos, se queriam gozar um bocado tinham que as inventar. Os divertimentos que a cidade lhes oferecia eram o cinema (mudo) no Teatro Avenida
Teatro Avenida
– o Sousa Bastos estava abandonado e o Tivoli apareceu mais tarde – os arraiais dos Santos Populares, a romaria do Espírito Santo, em Santo António dos Olivais, a festa da Rainha Santa, de dois em dois anos, e os bailes. Isto para não falar nas manifestações de índole puramente académica, tais como a Queima das Fitas (a 27 de Maio) que era a expressão viva da alegria reinante entre a juventude universitária,
Enterro do Grau, 1905
os saraus do Orfeão e da Tuna (onde nos era dado o prazer inefável de escutar as vozes melodiosas dos saudosos Lucas Junot, Edmundo Betencourt, Armando Gois, Paradela de Oliveira e Serrano Baptista, infelizmente já falecidos), as récitas de despedida dos quintanistas - especialmente de medicina – e o `futebol!...
Equipa de futebol da AAC. 1923.06.03. Acedido em https://www.facebook.com/academica.oficial/photos/
Este, praticado em puro amadorismo, começou justamente por essa altura e graças à virtuosidade desse ídolo que em vida se chamou Teófilo Esquível, a conquistar adeptos e a «eletrizar» as multidões. (Não emprego o termo alienar, hoje muito em voga, por que a demência coletiva pode ser motivada por razões várias, estranhas ao desporto).
Os preços do cinema - vem a talho de foice recordá-los - eram: 3$00 a plateia e 15$00 um camarote de cinco lugares onde cabiam e entravam, sem (pagar qualquer sobretaxa, quantos estudantes quisessem! E a geral ainda era mais barata!...
Representavam-se no dito teatro uma ou outra peça desempenhada por afamadas companhias em digressão. Pelo palco da velha sala da Avenida Sá da Bandeira passaram as grandes figuras da cena portuguesa daquela época: Palmira Bastos, Amélia Rey Colaço, Alves da Cunha, Robles Monteiro, Chaby Pinheiro, Alexandre de Azevedo, Ilda Stiquini, Maria Matos, Lucília Simões, Adelina e Aura Abranches, Vasco Santana, Auzenda de Oliveira, Estêvão Amarante, Raúl de Carvalho - para só falar daqueles que vi. E no seu ecrã projetaram-se os filmes mais reclamados do cinema americano, alemão e francês, então os de maior fama mundial, abrilhantados pela orquestra que Teixeira Lopes regia. Mal esta se quedava silenciosa por instantes, logo se ouvia a voz de um estudante gritar:
-Toca a música!...
Que mal havia nisto?
Nas noites de teatro a «malta» ocupava normalmente a geral, colocada em anfiteatro ao redor da plateia (no rés-do-chão, portanto) enchendo de alegria a vasta sala com seus ditos espirituosos e levando o entusiasmo ao seio dos artistas. Os atores-empresários saiam de Coimbra gratos pelos aplausos carinhosos recebidos da generosa e hospitaleira Academia; e sempre que a casa estava passada - o que sucedia frequentemente – davam entrada gramita aos estudantes que, por falta de recursos, não podiam comprar bilhete, deixando-os ficar sentados nas coxias, da plateia. Resumindo: em noite de espetáculo teatral só não entrava quem não queria!
Teatro Avenida. Sarau, 1946. Col. Resto e Coleção
Em determinado ano, porém, os empresários levados pela ânsia de progresso meteram-se em grandes e dispendiosas obras. Para alargar a plateia acabaram com a geral no rés-do-chão e implantaram-na lá no alto, perto do palco, mas junto ao teto, estilo «galinheiro». Nunca mais se sentou lá um estudante!... Os camarotes, lugar económico e convidativo para os menos endinheirados, desapareceram também, sendo substituídos pelo balcão. Estragaram tudo! Entretanto apareceu o sonoro, subiram os preços, as «Gretas Garbos» eclipsaram-se, as películas baixaram de nível, a estudantada criou novos hábitos, surgiu o Tivoli a fazer concorrência, e a empresa, que investira seus capitais na melhor das intenções, teve de enfrentar dificuldades. Se o velho Avenida falasse teria muito que contar!...
Os bailes, porém, eram a «perdição» de meia Academia. Havia-os nos clubes recreativos das várias camadas sociais, nas ruas, largos e praças durante o S. João, nas casas particulares - os celebérrimos assaltos onde entravam amigos e desconhecidos! - nos hotéis e em improvisadas salas, não esquecendo os agradáveis serões nos casinos das praias e termas mais próximas, nem os bailaricos nas localidades vizinhas. Lembro-me muito bem de que por mais de uma vez fui parar a Pombal para assistir ao «baile do calcanhar rachado» -calcanhar rachado porque nele tomavam parte as moçoilas do campo, de pé descalço e gretado - que se efetuava no velho celeiro do Marquês, pavimentado a tijolo. Daqui resultava que a partir de certa hora da noite o ambiente tornava-se irrespirável. Levantavam-se horríveis nuvens de pó vermelho que deixavam também vermelhas as nossas capas pretas; e na manhã seguinte a nossa saliva ainda era avermelhada! Mas sabia-nos bem...
Em quase todos os bailes e chás-dançantes que se realizavam em Coimbra e arredores, tinham entrada os estudantes que se portavam como gente civilizada.
O que se comia nessas festanças, Santo Deus! Recordo-me de que uma noite, durante um baile em casa do Violante - atleta do Sport Clube Conimbricense - eu e poucos mais, à nossa conta, «devorámos» um presunto! …
Muito se dançava em tais «festarolas» ... A bailar os rapazes conheciam as raparigas, a bailar se combinavam namoricos, a bailar se faziam e desfaziam casamentos...
Hoje é muito diferente. Tudo muda na vida; até o nome das coisas! Os rapazes novos passaram a chamar-se jovens (tal e qual como as raparigas; é a tendência geral para o unissexo!), os velhos são designados por idosos, os aleijados por diminuídos físicos, os loucos por débeis mentais, as criadas de servir por empregadas` domésticas (e vê-las?), os sapateiros por manufatores ide calçado... e por aí adiante!
Não critico nem reprovo. Apenas registo...
Andava eu por Coimbra, despreocupado, de capa aos ombros e cabeleira ao vento, quando começou a evolução. Pessoas, hábitos e costumes, atividades de ordem vária e preconceitos, ouviram soar, justamente nessa época já tão distante, o «tiro de partida» para a grande «cavalgada» rumo ao progresso; e ninguém vê, nem sabe onde fica a meta-desta corrida vertiginosa. Posso mesmo dizer que foi a minha geração que sofreu o primeiro embate da grande viragem que em poucos anos modificou a histórica e linda cidade de alto a baixo, que é como quem diz da cabeça aos pés: apareceram as primeiras raparigas matriculadas nas várias Faculdades (até aí as poucas que estudavam não iam, geralmente, além do curso liceal), multiplicaram-se os automóveis, duplicaram as linhas e o número dos carros elétricos,
Carro elétrico para o Calhabé, com o “chora”. Col. Pedro Rodrigues da Costa
surgiram como grande novidade os recipientes metálicos para recolha do lixo, que o irreverente Castelão de Almeida «batizou» de Jacós - nome que pegou; Jacob era, na altura, o presidente da Câmara - iniciou-se a urbanização da periferia (Calhabé, Montes Claros e Olivais praticamente eram subúrbios), começou (ou recomeçou) a moda do beija-mão às senhoras, e, mais ou menos, todas as atividades escolares, sociais, e citadinas, sofreram alterações. Umas terão sido para melhor, outras para pior. Só o tempo, grande mestre, o dirá. Uma coisa é certa: o progresso não para. Acabaram-se os quartos sem janela e desapareceram os candeeiros de petróleo! Simplesmente, nem todas as benesses terão trazido a felicidade à gente nova. Esta, em meu entender, é hoje mais ambiciosa do que no meu tempo. Ambição aliás legítima. Porém, talvez por via dela, e também por má perceção de quem a devia compreender, a juventude estudantil parece menos alegre do que era há cinquenta anos.... Será?
Sampaio, A. Coimbra onde uma vez… Recordações de um antigo estudante. 1974. Portalegre, edição do Autor.
A Cidade Oitocentista (continuação)
Toda esta gente que tentava subir na vida a pulso, quando atingia o estatuto económico de pequena burguesia, aspirava a fazer-se reconhecer como tal e nada melhor para se afirmar do que e a ostentação; por isso, as moradas, tanto as dos vivos, como as dos mortos, passaram a funcionar como sendo o seu cartão-de-visita. Mas, as dos vivos exigiam áreas amplas e de forma nenhuma podiam caber nas ruas tortuosas e acanhadas da cidade medieval. A urbe tinha de crescer e, por isso, rompem-se os muros e um novo centro urbano emergiu após a urbanização de zonas que até aí mais não eram do que arrabaldes. Os bairros novos que então despontaram correspondem ao gosto e às aspirações da sociedade que os vai habitar. O burgo mudou completamente a sua fisionomia.
O acumular de capital por parte de todos estes homens de negócio, embora moderado, repita-se, ajuda a explicar que, em 1874, se instalasse na cidade, mais propriamente na Rua Visconde da Luz, centro vital da urbe trabalhadora, o Banco Comercial de Coimbra que acabou por ter vida efémera.
Rua Visconde da Luz. 1911-1920
Nesta época atuaram na cidade outros fatores de desenvolvimento, pois em 1864 passa a fazer-se sentir, em Coimbra, o “arfar” das locomotivas, facto que acaba por a despertar e por lhe abrir outras perspetivas. Naquela data apenas se consuma a ligação ferroviária entre Lisboa e Porto, mas, posteriormente, com todo o corolário de consequências bem visíveis sobretudo a nível da mentalidade e da economia, através da linha da Beira Alta, em 1882, a cidade fica ligada à Europa e o famoso Sud Express une, em 1895, diretamente Coimbra a Paris. A chegada do caminho-de-ferro introduz nas pequenas cidades da província uma dinâmica de crescimento. E Coimbra não fugiu à regra.
Fig. 02 – Estação do caminho-de-ferro. [Revelar Coimbra, 22].
Refira-se, sem que tal se possa aplicar ao “apeadeiro” de Coimbra, ou seja, ao edifício pomposamente conhecido por Estação de Coimbra B ou Estação Velha, quase inalterado ao longo de mais de um século, que se na época medieval, as cidades rivalizavam entre si, porque cada uma delas pretendia construir a sé catedralícia mais imponente, a partir do século XIX, esse sentimento transferiu-se para o cais de acolhimento de passageiros do novo meio de transporte, uma vez que deixava de interessar o símbolo do poder, para passar a estar em causa o carisma do progresso.
Ponte da Portela
Um outro agente de desenvolvimento a fazer-se sentir na urbe passa pela construção, em 1873, da ponte da Portela que substituiu a tradicional barca de passagem (que operava a montante da Portela), permitindo que chegassem à cidade os chamados carros da Beira, isto é, estrados de quatro rodas, com jogo dianteiro móvel, puxado por um tiro de muares e com um toldo branco a cobrir a carga. Para Coimbra transportavam produtos produzidos na serra: batatas, castanhas, cebolas, leguminosas secas, queijos e mantas; na torna-viagem carregavam para o interior mercadorias de mimo e utilitárias proporcionadas pelo comércio citadino.
Na Portagem, a estreita e velha ponte manuelina, a famosa ponte do O, por onde passava todo o tráfego vindo do sul ou do norte, da Beira (nascente) ou do litoral mondeguino (poente) após dois anos escassos de trabalho, em 1875, cede lugar à ponte metálica de Santa Clara que ligava aquele largo à outra margem do rio. Esta nova ponte, projetada por Matias Heitor de Macedo, garantia, em toda a extensão do tabuleiro, o cruzamento de veículos, sendo também dotada de passeios laterais destinados aos peões.
Fig. 03 – Ponte metálica de Santa Clara. [Bilhete Postal].
Coimbra legitima, durante o último quartel do século XIX, a proeminência de importante nó vial.
… Na realidade, os lugares arrabaldinos do Calhabé, de Celas e dos Olivais começam a poder desfrutar dos benefícios carreados por este novo meio de transporte [os carros elétricos] que rapidamente se apossou de “velhos caminhos vicinais” capazes de transmitir “à periferia o frémito do centro”, de atrair ao “seu percurso novas moradias” e de condicionar “prolongamentos tentaculares da cidade”. Poucos anos depois toda esta área fazia parte do perímetro urbano da urbe que também passou a incluir Montarroio e Montes Claros, zonas que, paulatinamente, iam ficando pejadas de casas.
… Em 1813, o arquiteto da Universidade Joaquim José de Miranda, risca as modificações destinadas a levar a cabo no largo da Portagem e, anos depois, em 1857, o arquiteto João Ribeiro da Silva projeta a retificação da Calçada e da Rua de Coruche.
Fig. 04 – Projeto da estrada entre as Ruas da Calçada e Sofia (pela Rua de Coruche). [MNMC. Inv. n.º 2873]
O bairro de S. José, encostado à cerca do Seminário, e o de S. Sebastião, que se desenvolvia à sombra do aqueduto, começaram a crescer. Na outra margem, com proteção conventual, evoluía gradativamente o bairro de Santa Clara.
Anacleto, R. Coimbra: alargamento do espaço urbano no cotovelo dos séculos XIX e XX. In: Belas-Artes: Revista Boletim da Academia Nacional de Belas Artes. Lisboa 2013-2016. 3.ª série, n.ºs 32 a 34. Pg. 127-186. Acedido em https://academiabelasartes.pt/wp-content/uploads/2020/02/Revista-Boletim-n.%C2%BA-32-a-34.pdf.
Aos pés da cidade de Coimbra, corre o Mondego, rio que veio a ser determinante para a história do Mosteiro de Santa Clara e de outros cenóbios que se localizavam junto das suas margens – o de S. Francisco da Ponte, o de Santa Ana e o de S. Domingos (os dois primeiros situados na margem esquerda do rio e o último na margem direita, numa relação de proximidade que veio a tornar-se fatal.
Dos primitivos edifícios destas instituições nada restou, exceção feita à igreja de Santa Clara, cuja atual feição foi moldada por séculos de vicissitudes, e que surge agora aos nossos olhos como uma ruína resgatada aos avanços do rio.
…
Os Frades Menores chegaram a Portugal em 1217, instalando-se em Coimbra, Guimarães e Alenquer.
Em Coimbra, os primeiros Menores (ou, da Ordem dos Frades Menores, depois conhecida como Ordem de S. Francisco) fixaram-se antes de 1220, na Ermida de Santo Antão dos Olivais (mais tarde Santo António dos Olivais) e, em 1247, estavam já instalados no Mosteiro de São Francisco da Ponte (desaparecido em 1602) na margem esquerda do rio Mondego, ou seja, em locais periféricos afastados das casas monásticas já estabelecidas.
Informação do editor do blogue
Na conhecida gravura de Coimbra que integra a obra Estampas Coimbrãs é possível identificar: na margem esquerda do rio, a jusante da ponte o primitivo mosteiro de São Francisco; também na margem esquerda e a montante da ponte o primitivo mosteiro de Santa Clara; no meio do rio, numa pequena “ilha” as ruínas do Mosteiro de Santa Ana.
No que respeita ao Mosteiro de S. Domingos as ruínas do mesmo foram, recentemente, identificadas por baixo do edifício da Avenida Fernão de Magalhães onde funciona o Almedina Coimbra Hotel.
Trindade, S. D. e Gambini, L. I. 2008. Mosteiro de Santa Clara-a-Velha. Coimbra, Direção Regional de Cultura do Centro, pg. 9, 13 a 15
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