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Nesta entrada do blogue “A’Cerca de Coimbra” vamos relembrar um texto escrito por Sousa Viterbo em finais do século XIX, na Revista Archeologica onde se refere à história das grades que, no passado, separavam, na igreja de Santa Cruz, a zona do falso transepto [cruzeiro] ocupada pelos Cónegos Regrantes, do espaço destinado aos fiéis.
Imagem onde se podem ainda vislumbrar as grades. Acervo RA
Revista Archeologica. Imagem acedida em: https://archive.org/details/revistaarchaeolo03lisb/page/n5/mode/2up
Sousa Viterbo. Imagem acedida em: https://www.bing.com/images/search?view=Francisco-Marques-de-Sousa-Viterbo.png&cdnurl …
Deste interessante texto, respigamos o que segue.
Dignas de rivalizar com alguns destes trabalhos artísticos, de que se ufanam as catedrais espanholas,
Baeza. Reja del presbitério. In: Navascués Palacio, Pedro, Sarthou Carreres, Carlos.Catedrales de España, Madrid. Espasa-Calpe, 51984, pg. 43.
seriam porventura as grades monumentais, que, no venerando templo de Santa Cruz, separavam o cruzeiro do restante da igreja e as que vedavam os túmulos dos reis. Hoje já não as podemos contemplar, mas sabemos da sua existência por alguns documentos e referencias históricas, que mais ou menos diretamente lhes dizem respeito.
Citaremos em primeiro lugar o trecho de uma carta de 19 de março de 1522, em que Gregório Lourenço dá conta a D. João III do estado em que se achavam as obras que o seu antecessor, D. Manuel, mandara fazer no templo de Santa Cruz. Um dos itens da carta é do teor seguinte: «Item Senhor, mandou que fezessem huua grade de ferro grande que atravessa o corpo da egreja de xxv palmos d'alto com seu coroamento, e ao rredor das sepulturas dos rreix a cada hua sua grade de ferro, segundo forma dhum contrato e mostra que pera ysso se fez. Estam estas grades feitas e asentadas, e pago tudo o que montou na obra dos pillares e barras das ditas grades porque disto avia daver pagamento a rrazom de dous mill reis por quintal asy como fosse entregando ha obra. E do coroamento das ditas grades que lhe ade ser pago per avalliaçam nom tem rrecebidos mais de cinquoenta mill reis, que ouve dante mão quando começou a obra, que lhe am de ser descontados no fim de toda hobra segundo mais compridamenle vay em huua certidam que antonio fernandes mestre da dita obra diso levou pera amostrar a V. A. E nom se pode saber o que desta obra he devido atee o dito coroamento destas grades ser avalliado».
O trecho da carta de Gregório Lourenço é parcamente descritivo, mas, apesar disso, muito agradecido lhe devemos ficar por ter salvado, ainda que involuntariamente, o nome do artista que fabricou a obra, António Fernandes.
Como se sabe, D. Francisco de Mendanha, prior do mosteiro de S. Vicente de Lisboa (1540), escreveu uma descrição em italiano do templo de Santa Cruz, a qual D. João III ordenou se traduzisse em português, sendo impressa nos prelos deste último convento. De tão curioso opusculo cremos que não se conhece hoje nenhum exemplar, mas D. Nicolau de Santa Maria perpetuou-o, incluindo-o na sua «Chronica», prestando assim um serviço, literário e artístico, bastante apreciável. Mendanha não se esquece de falar das grades e dedica-lhe as seguintes linhas:
«Além d'este pulpito espaço de 20 palmos contra a Capella mór está a grande e vetusta grade de ferro, que atravessa toda a Egreja, ficando dentro o Cruzeiro, e tem de alto trinta palmos».
O epiteto vetusta sintetiza, para assim dizer, em toda a sua singeleza, a formosura da grade. Entre Mendanha e Gregorio Lourenço há, todavia, uma discrepância no que respeita às dimensões; Mendanha dá a grade 5 palmos mais alta. Outra diferença notamos ainda. O prior de S. Vicente diz que as grades dos túmulos eram de cinco palmos de alto, todas de pau preto e bronzeadas com ouro: Gregório Lourenço claramente especifica que eram de ferro. Coelho Gasco { classifica de sumptuosas as grades do cruzeiro e accrescenta que n'ellas havia um epitáfio, ou antes letreiro, latino, em letras de ouro, que rezava da seguinte forma: Hoc templum ab Alphonso Portuqaliae primo rege instructum ac tempore pene collapsum, Regno succesore &: actore Emmanuele restauraoerit. Anno Natalis Domini MDXX.»
Esta data 1520 refere-se por certo á época em que foi assentada a grade e colocado o seu despectivo letreiro. A igreja já estava reconstruída, como, além de outros documentos, o demonstra o epitáfio do bispo D. Pedro. falecido a 13 d'agosto de 1516.
No priorado de D. Acúrcio de Santo Agostinho (eleito em princípios de maio de 1590) as grades foram pintadas e douradas de novo. Diz o cronista «… e porque as grades de ferro do cruzeiro e capellas da mesma igreja estavão pouco lustrosas, as mandou alimpar, pintar e dourar em partes e particularmente mandou dourar as armas reaes e folhagens, em que as ditas grades se rematão e tem as do Cruzeiro trinta palmos de alto e as das capellas quinze tambem de alto, e ficarão depois de pintadas e douradas muy aprazíveis á vista».
Não sabemos até que época durassem as grades de Santa Cruz.
Das que circundavam os sepulcros temos informação de 1620. Ou haviam chegado a extrema ruína ou foram substituídas ineptamente por outras. Referindo-se ao governo de D. Miguel de Santo Agostinho, que foi eleito pela segunda vez em 30 de abril de 1618, escreve o cronista da ordem: «Nos ultimos mezes do seu triennio ornou o P. Prior geral as sepulturas dos primeiros Reys deste Reyno, que estão na capella mór de S. Cruz com grandes grades de pao santo, marchetadas de bronze dourado.»
Ao que ficou descrito acrescento que, tanto quanto julgo lembrar-me, ainda vi junto dos túmulos reias umas grades destinadas a impedir os visitantes de se acercarem. Contudo, já não me recordo das suas caraterísticas. Se algum leitor estiver na posse de qualquer informação sobre este assunto seria interessante que a transmitisse.
Viterbo, F.M.S. V. As grades de S. Cruz-Cruz de Coimbra. In: Revista Archeologica, II, n.º 4. Abril 1888. Texto acedido em:
Prosseguindo na sua cruzada – porque é isso mesmo, uma cruzada em prol de Coimbra e da sua história – o Dr. Mário Araújo Torres acaba de editar com recolha de textos e notas suas, mais um volume do conjunto de livros esquecidos ou raros que ajudam à compreensão da nossa Cidade, no passado e no presente.
Capa do livro
Na contracapa podemos ler.
Imagem de parte da contracapa
Na presente edição reproduz-se o único exemplar conhecido da «Descripcam e debuxo do Moesteyro de Sancta Cruz de Coimbra», impressa em 1541 nas oficinas tipográficas do próprio Mosteiro, atualmente conservado na «Greenlee Collection» da «Newberry Library» de Chicago, e procede-se à transcrição integral do opúsculo, com atualização da grafia.
Imagem da pg. 29
Mas a obra ora publicada não se fica pela transcrição desta raridade bibliográfica, pois é enriquecida com os seguintes trabalhos em anexos.
Reproduzem-se os capítulos da «Crónica da Ordem dos Cónegos Regrantes do Patriarca Santo Agostinho» (1668), onde D. Nicolau de Santa Maria alegadamente reproduziu a «Descrição» de D. Francisco de Mendanha, com aditamentos sobre alterações entretanto ocorridas;
Imagem da pg. 85
O estudo de Sousa Viterbo (1890) sobre a descoberta do opúsculo, com anexos documentais dos reinados de D. Manuel I e de D. João III; e extratos de manuscritos de Jerónimo Roman (1588), de D. José de Cristo (1622) e do Cartorário D. Vicente, sobre as novas obras no Mosteiro posteriores a 1540.
Concluindo. O estudioso de Coimbra ou o simples amante das coisas com ela relacionadas, encontra reunido num só volume tudo o que foi escrito relacionado com a descrição do que era o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, nos séculos XVI e XVII.
Pelo meu lado, mais uma vez, o meu obrigado ao Dr. Mário Araújo Torres, pelo muito que está a fazer em prol da divulgação da história da nossa Cidade.
Rodrigues Costa
Mendanha, F. Descripcam e dubuxo do Moesteyro de Sancta Cruz de Coimbra. Reedição com recolha de textos e notas de Mário Araújo Torres. 2021. Lisboa. Edições Ex-Libris.
É sabido que os mosteiros e conventos ocupam os melhores troços de paisagem: vales férteis, outeiros com vistas soberbas, e, em regra geral, assegurando a presença de água dentro das suas cercas – bem cumprida no caso do Mosteiro de Santa Cruz.
... sempre seguro na sua excelente localização ao longo do vale da Ribela, vale largo de terras férteis para onde corriam águas de nascentes, formando um pequeno afluente que terminava no Mondego.
Vale da Ribela, atual Av. Sá da Bandeira
A escolha do lugar merece ser contada e Ilídio de Araújo transcreve-a de D. Nicolau de Santa Maria, que, por sua vez, conta como D. Tello, varão amigo e contemporâneo de D. Afonso Henriques, escolhe o sítio: «(...) achou hum fora da cidade, nos arrabaldes dela, onde chamavam os Banhos da Rainha, que lhe contentou mais que todos, por ter da parte Norte hum monte coroado de oliveiras, árvores bem afortunadas e ditosas que sempre pronosticavão grandes felicidades; porém a principal razão que o moveu a escolher este sítio foi aver nelles hua Igreja antiga de invocação de Sta. Cruz, que no tamanho e no estar fundada junto de hua horta se parecia com o Santo Sepulcro, que D. Tello trazia estampado na alma (...)». Razões da qualidade física e espiritual da paisagem misturam-se na origem da escolha do lugar.
Planta do Mosteiro de Santa Cruz em meados do séc. XIX
Os espaços exteriores deste convento foram mantidos intactos até meados do século XIX, garantindo séculos de utilização ao serviço da comunidade monástica. É certo que a área a área construída em redor da igreja passou de uma unidade com um claustro a três claustros com os respetivos edifícios em redor, mas a horta que comovera D. Tello, o parque e o cabeço das oliveiras mantiveram-se intactos de cima abaixo do vale.
É certo, também, que neste longo percurso de séculos, outros monarcas representado por outros religiosos deixaram a sua marca no convento e na cerca.
Castel-Branco. C. Os jardins de Coimbra. Um colar verde dentro da cidade. In: Monumentos. Revista Semestral de Edifícios e Monumentos. N.º 25, Setembro de 2006. Lisboa, Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, pg. 108-121
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