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Apresenta-se com parapeito de quatro faces poligonais sobre base em forma de cone invertido. É revestido de finíssima decoração renascentista de candelabros, pequenos medalhões e outros motivos clássicos, tudo em delicado relevo à flor da pedra, mas os baldaquinos das figuras angulares são ainda de tradição gótica.
Púlpito de Santa Cruz
Nas quatro faces abrem-se elaborados nichos onde se sentam os quatro doutores da Igreja do Ocidente. São eles, começando do lado da entrada, Santo Ambrósio de Milão, mitrado, S. Jerónimo, com chapéu de cardeal e leão aos pés, S. Gregório Magno, com a tiara papal, todos ostentando um livro simbólico da sua sabedoria e dos seus escritos, e, por fim, Santo Agostinho segurando um templo nas mãos, como fundador da Ordem seguida em Santa Cruz.
S. Jerónimo com chapéu de cardeal e leão aos pés
Nos ângulos dispõem-se dez figurinhas plenas de grande significado. Na linha inferior representam-se os quatro profetas maiores, Isaías, Joel, Ezequiel e Jeremias, tendo ao centro o rei David segurando a harpa. Nos pequenos nichos superiores aos profetas erguem-se cinco donairosas donzelas: as sibilas do mundo clássico que se cria, desde o concílio de Niceia em 325, terem prenunciado o nascimento, a paixão e morte e a ressurreição de Jesus. Foi tema dos humanistas renascentistas, no esforço de conciliar a sabedoria da Antiguidade com a doutrina cristã, tendo o seu exemplo máximo nas pinturas de Miguel Ângelo no teto da capela Sistina e, igualmente, a sua expressão neste púlpito. Identificamo-las como: Cumana ou Ciméria, Herófila ou Samiana, Pérsica ou Caldeia (a do centro, com a cruz), Délfica, e Helespôntica ou Troiana.
O cone invertido de sustentação do púlpito gera-se a partir da representação de um monstro alado fantástico, a hidra de Lerna, com suas sete cabeças de serpente que renasciam sempre que se lhe cortavam, mas morta por Hércules no seu segundo trabalho. Um pouco mais acima, cinco harpias, monstros imundos, raptoras de almas, com rosto de mulher, corpo de abutre e orelhas de urso. Esta zona agitada é o mundo do pecado, por demais simbolizado nas sete cabeças da hidra. A transição para a parte superior é feita por frisos de elementos clássicos, onde cinco querubins transmitem paz e tranquilidade.
... o cone invertido de sustentação do púlpito
Nicolau Chanterene era, sem dúvida, homem culto e artista de génio, mas não poderia ter executado esta obra, de tão denso conteúdo iconográfico e teológico, onde o bem se sobrepõe ao mal, sem ter a aconselhá-lo os doutos cónegos crúzios. Infelizmente o tempo tem deixado as suas marcas bem notórias nesta obra prima da arte portuguesa e mesmo europeia.
Nelson Correia Borges
Borges, N.C. O Púlpito de Santa Cruz. In: Correio de Coimbra, n.º 4785, de 2020.05.07
Os púlpitos das nossas igrejas tornaram-se obsoletos com o advento da amplificação sonora e sobretudo depois do concílio Vaticano II, quando toda a ação litúrgica se centrou no altar da celebração. Foram substituídos pelo ambão, normalmente colocado à direita do altar, no lado outrora destinado ao Evangelho. Será difícil às novas gerações percecionar a função e utilidade que estava destinada a estas peças, sempre tratadas com muito esmero e muitas vezes expressão artística de alto merecimento. No pós-concílio, alguns púlpitos chegaram mesmo a ser retirados das igrejas, esquecendo que a sua presença de séculos é parte da história dos monumentos e das comunidades.
Púlpito de Santa Cruz
As origens dos púlpitos podem procurar-se na civilização romana, de que somos herdeiros. Estavam presentes nos edifícios públicos e no foro como um local elevado, onde se situavam os oradores. Nas primitivas basílicas cristãs havia já uma tribuna semelhante ao ambão dos dias de hoje. Na segunda metade do século XIII, a atividade oratória de franciscanos e dominicanos levou à criação do púlpito como uma tribuna elevada, no centro da nave e por vezes com um dossel ou quebra-voz, para melhoria das condições acústicas, geralmente posicionado do lado do Evangelho. A partir do século XVI o púlpito ganha grande protagonismo no espaço interior das igrejas. Ali se fazia lembrar o louvor a Deus e o proveito espiritual das almas para a salvação eterna, em sermões inspirados, por vezes exuberantes e teatrais para que a mensagem chegasse a todos, pois grande parte da população era iletrada.
Em Santa Cruz de Coimbra o púlpito situou-se junto à desaparecida grade que separava o espaço conventual do espaço dos fiéis.
o púlpito situou-se junto à desaparecida grade
Ele é bem a expressão da sapiente cultura dos cónegos crúzios e da arte refinada de Nicolau Chanterene. O escultor francês Nicolau Chanterene fez uma passagem quase episódica por Coimbra. No mosteiro de Santa Cruz deixou o melhor da sua obra, na fachada, no claustro e no púlpito, executado em 1521, data descoberta pelo Pe. Nunes Pereira quando fazia desenhos de pormenores, publicados neste jornal em 1985.
1521, data descoberta pelo Pe. Nunes Pereira
Parte do púlpito onde em 1985 foi identificada a data da sua construção, ilegível passados 35 anos.
Borges, N.C. O Púlpito de Santa Cruz. In: Correio de Coimbra, n.º 4785, de 2020.05.07
1131, 28 de Junho – Colocação da primeira pedra do Mosteiro de Santa Cruz “o nascimento visível da comunidade sediada na zona dos Banhos Régios, a pouca distância da muralha norte de Coimbra”.
1150 (cerca de) – Ano provável da conclusão do templo, bem como da parte conventual
... subsistem alguns vestígios arquitetónicos da notável igreja românica, que se pode conhecer e reconstruir através de restos construtivos e decorativos de valor excecional, porque realçam um saber qualificado, verdadeiramente responsável pela solidez das estruturas ainda visíveis, levantadas sob orientação técnica do mestre Roberto, coadjuvado de canteiros peninsulares ... a nave, de grandes proporções e com abóbada de berço, seguia da capela-mor até próximo do coro superior, a que correspondem os dois tramos dos atuais abobadamentos. Nos flancos, possuía três capelas laterias, em pleno coincidentes com as presentes e que mutuamente se ligavam por grandes arcos, perspetivando naves colaterais, cujos eixos eram perpendiculares ao da principal. Um átrio, repartido de três estreitas naves perpendiculares e cortadas de três outras transversais, abria na direção da nave central.
1500 (ao longo do século) - ... nos inícios de Quinhentos, começaram as obras do conjunto monumental, repartidas em três fases: a de dom Pedro Gavião que, sob a direção de Boytac, mandou desmanchar o nártex, as abóbadas, fez os atuais abobadamentos e janelas elevadas, a casa capitular, a capela das Donas, a sacristia manuelina; a do Venturoso (D. Manuel I) que, na supervisão de Marcos Pires, estabeleceu terminar os coroamentos da memorável igreja, bem como reconstruir o claustro do silêncio; por fim a de Dom João III, na qual Diogo de Castilho, com Nicolau Chanterene, levantaram o novo portal de pedra branca, na fachada românica
... Repentinamente, tudo desaparecia das interessantes estruturas medievais. Em presença daquelas intensas devastações, o pequeno mosteiro das Donas extinguia-se, ficando livres esses espaços, antes ocupados; o prolongamento das novas alas possibilitaram o claustro da Manga; também um grande refeitório, com anexos e cozinha, ficava circundado dos imprescindíveis apoios e serviços; enfermaria, dormitórios dos cónegos, dos noviços, repartições civis e portaria – com um outro claustro restrito.
Dias, P. e Coutinho, J.E.R. 2003. Memórias de Santa Cruz. Coimbra, Câmara Municipal. Pg. 22, 54, 59 e 61 a 62
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