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No início desta pequena série de três entradas, dedicadas à viola toeira de Coimbra, escrevemos que a mesma seria terminada recordando “o que, em 1983, quando era Vereador da Cultura da Câmara Municipal de Coimbra o saudoso Fausto Correia e eu tinha a honra de chefiar o Departamento de Cultura, se implementou relativamente a este instrumento”.
Começo por citar uma notícia publicada no Diário de Coimbra de 9 de maio de 1983 – que Rui Marques, a quem agradeço, me disponibilizou – e onde se pode ler o seguinte:
Câmara cedeu violas toeiras a grupos folclóricos do Concelho
Viola toeira construída por Raúl Simões. Imagem acedida em: https://www.muralsonoro.com/mural-sonoro-pt/2014/3/4/viola-toeira
A Câmara Municipal de Coimbra entregou anteontem sete violas toeiras a grupos folclóricos do concelho.
O vereador do Pelouro, Fausto Correia, disse ao nosso jornal que esta medida vem na sequência de um processo de recuperação do instrumento musical, tradicional de Coimbra.
«O processo – salientou – iniciou-se com a aquisição dos instrumentos e da técnica, a Raul Simões, último fabricante, em Coimbra, da viola toeira».
Raul Simões, construtor e exímio tocador de viola toeira
«A partir daí – acrescentou – o professor Luís Filipe construiu 10 violas, sete das quais foram cedidas a grupos folclóricos, duas ficaram ao cuidado a Câmara e uma foi doada ao Instituto Português do Património Cultural».
Na sessão, que decorreu nos Paços do Concelho sob a presidência de Mendes Silva, presidente da Câmara, ficou ainda decidida a organização de um curso de aprendizagem de viola toeira.
O curso vai realizar-se no edifício Chiado em Coimbra, na próxima semana.
In: Diário de Coimbra, de 9 de maio de 1983
Uma outra notícia, saída no mesmo periódico, informa que no ato atrás referido estavam ainda presentes as Pessoas que então integravam a Comissão de Análise dos Grupos Folclóricos, constituída pelo Presidente da Federação do Folclore Português, Sr. Augusto Gomes dos Santos, pelo Doutor Nelson Correia Borges e pelo Dr. Francisco Faria responsáveis pelo reconhecimento “de interesse folclórico” dos grupos do Concelho de Coimbra.
O jornal O Despertar de 13 de maio do mesmo ano deu a conhecer o nome dos grupos a quem foi oferecida uma vila toeira: Camponeses do Mondego, de Ribeira de Frades; Típico da Palheira; Rancho de Vila Nova de Cernache; Vigor da Mocidade, de Fala, S. Martinho do Bispo; Rancho Típico do Bordalo; Rancho de Assafarge; e Casa do Povo de Ceira.
De memória, acrescento ainda as seguintes notas:
- O Município de Coimbra adquiriu aos herdeiros de Raul Simões, o último construtor de violas da cidade e homem que também tocava viola toeira, todo o material existente na sua oficina. Seguidamente, estabeleceu um acordo com o Museu Nacional de Etnologia, a fim de este levar a cabo a identificação e a catalogação dessas peças, cedendo-lhe, como contrapartida, alguns artefactos. Na altura, esse material destinava-se a reconstituir, no âmbito do projetado Museu da Cidade, a oficina do mestre violeiro.
- Algum tempo depois, cessei as minhas funções na Câmara de Coimbra e, por isso, desconheço o destino dado a esse precioso material. É evidente que o projeto da sua musealização, tal como a instalação do Meseu da Cidade, foram abandonados. Parece-me premente saber onde se encontra esse material, do qual faziam parte madeiras, moldes, ferramentas e produtos químicos que eram utilizados na sua oficina pelo último violeiro de Coimbra.
Após ter partilhado com os leitores estas informações talvez seja possível compreender melhor o espanto e a tristeza, para não dizer a revolta, que expressei na primeira destas entradas.
Rodrigues Costa
Começamos hoje a divulgar um artigo publicado em 1906, na Illustração Portugueza, onde o autor traça um retrato amargo das tricanas de Coimbra, quiçá excessivo, mas representativo da época em que foi escrito. Como se verá, na última entrada vislumbra-se no texto a face negra desse retrato.
Illustração Portugueza”, 5, Primeiro semestre, 2.ª série, Lisboa, 1906, p. 146, pormenor
E considero-o excessivo e a apontar para uma face negra, porque, do que conheço sobre o assunto e face ao que com ele estive relacionado, a tricana de Coimbra não passava só pelo retratado, mas existiam outras realidades, bem diferentes das descritas.
Como acentuou Nelson Correia Borges, o que caracterizava a tricana era a forma de trajar: «O cachené emoldura-lhe o penteado feito com desvelo e o rosto, que avulta entre duas alentadas argolas.
Cinge-lhe o busto o aristocrático chambre das avós, tufado nas mangas de bofe.
O aventalinho, com aplicação arrendada, é traço quase exclusivo da mulher de Coimbra. Por sobre tudo traça o xaile naquele jeito como só ela sabe e ninguém consegue copiar. A paisagem urbana situa-a. É a tricana. É Coimbra.
Decorre de aí concluirmos que o artigo peca por generalizar o que não é generalizável. Poderá descrever, parcialmente, a realidade da época, mas é injusto e desajustado no que respeita à maioria das mulheres de Coimbra, dado que elas pisavam outros caminhos.
O artigo, profusamente ilustrado, do qual só reproduzimos parte é o seguinte.
Op. cit., p. 146
«Ninguém como ella traja
A gosto do namorado:
Lenço de pontas atraz,
Chalinho de sobraçado,
Chinella curta, a fugir,
Embora o pé seja leve
E pequenino de ver
Na meia branca de neve;
Corpete todo a estalar,
Saia subida e ligeira,
Aventalinho tamanho
Como folha de figueira.»
Manuel da Silva Gaio.
O que maiormente enleva e surpreende, a quem aborda pela vez primeira a terra sagrada pelos amores de Inês, não é tanto a pompa dos seus lentes, o sabor das suas arrufadas ou a hirta majestade dos oito séculos de monarquia enfileirados na Sala dos Capelos, mas a subtil harmonia, a maravilhosa proporção e congruência que a Natureza estabeleceu ali, em tudo o que é criado.
Num clima benfazejo e quase sempre igual, nada de grandes traços, de fortes vegetações, ou dos coloridos berrantes na paisagem. Esta é alguma coisa como um quadro do japonês, místico sacerdote da arte, comprazendo-se em tirar os seus efeitos sempre de linhas breves, ondulantes, fugidias, de levezas de cor, de atitudes martirizadas nos caules finos e dolentes do arvoredo.
A cada passo uma colina, um montículo, um outeiro; mas até quando os horizontes se alargam, a planície a perder de vista não ganha nunca a bruteza da charneca, ou sequer a uniformidade fatigante do pastio da campina estremenha — antes fica toda feita em detalhes, e tão terna nas suas meias-tintas, que jamais a fitou um olhar nostálgico, sem pressentir nessas jardas de terreno como que a expressão dum instante de tristeza — que deveria ser branda e suavíssima — do Criador dos mundos...
O artista, por seu turno, possuído do espírito regional, buscou talhar na pedra afeiçoável das velhas construções do burgo, coisas ingénuas e sinceras, que não pudessem ofender a carinhosa melancolia das terras: e, havendo-o conseguido, só faltara que a mulher, fecho e síntese de toda a obra de beleza, não destoasse dos elementos do quadro, antes viesse traduzir, em quintessência, a alma de quanto a rodeava.
Op. cit., pg. 146, pormenor
Ponham no campo coimbrão uma alentejana bem fornida, ou a beiroa máscula e alvar, e aí teremos anulada toda a obra, como se, numa tela delicada de Ho-Ko-Sai, alguém fosse pintar em suplemento uma «touriste» alemã, pesada, inestética, de «canotier» e mala de viagem.
Por felicidade, ainda neste ponto foi coerente e sábia a Natureza.
Soares, A. As Tricanas de Coimbra. In: Illustração Portugueza, n.º 5. Primeiro semestre. 2.ª série. Lisboa, 1906, p. 146-149.
Neste último Sabat do mês de Hexevan da era da criação do mundo de cinco mil setecentos e oito [1947] – bendito e Eterno Deus de Israel – os meus olhos de mortal viram a sombra do grande arrabi da judiaria de Coimbra.
Bem pouco preparado estava para tal encontro.
Dia de maravilha esse: luminoso, tépido, a atmosfera pura como frequentemente acontece no outono, as distâncias nítidas e o ambiente vizinho dum encanto subtil. A luz trespassa-nos e convida-nos a gozar estas horas únicas que a Natureza dá antes de nos mergulhar nos sombrios nevoeiros e no horror do frio.
Eis-me por aí à toa, entregue ao prazer do momento.
Errando por Montarroio encontrei-me numa varanda natural, voltado para cidade velha, mais aliciante nesta luz dourada. Parei a olhar para a antiga judiaria, a rua do Corpo de Deus.
Posição sugestiva, hoje que se vê poeticamente o passado, posição de deserdado seria outrora.
Passava a muralha pela parte de trás, servindo de base agora ao Colégio Novo
Passava a muralha pela parte de trás, servindo de base agora ao Colégio Novo. Deste ponto o terreno inclina-se violentamente, em escarpas sucessivas, até atingir as linhas demarcadas pela Visconde da Luz e pelo terreno onde assenta o café de Santa Cruz, a sacristia, etc. alongando-se pela antiga Ribela acima.
Rua de Corpo de Deus, nos anos 50 do século passado
Havia um socalco levemente mais largo e nele se alcandoraram as casarias do gheto coimbrão, tendo dois acessos, um para o lado da Calçada e outro para a Fonte Nova; barricados estes, transformavam-se quase em fortaleza, bem precária contudo.
Desci ao vale por um caminho que representa um outro já multissecular. Fui ter ao sítio da Fonte Nova.
Vale da Ribela e Rua de Entremuros. Imagem da coleção particular do Dr. Branquinho de Carvalho
Pode ver-se de longe esta modelação forte e nobre, sempre repelida de cristãos, nervo do comércio e progresso deles, lançada aqui, como quase em toda a parte, fora das muralhas, como primeira vítima oferecida aos invasores.
Pode ver-se longe esta modelação natural do terreno, por intermédio de certas linhas que servem como que de curvas de nível e que são: a do Colégio Novo, no alto, a da rua do Corpo de Deus, a da parte traseira das casas desta, os diversos socalcos dos quintais até ao ângulo inferior, que serve de esporão terminal aquele dorso da colina, formado pelo ângulo da Visconde da Luz e da linha da rua das Figueirinhas. Representa esta (modificada pelos crúzios) uma estreita vereda que levava à Porta Nova e que nos serve hoje para avaliar rapidamente o declive do terreno.
Pode-se ver de longe esta modelação forte e nobre, sempre repelida de cristãos, nervo do comércio e progresso deles, lançada aqui, como em quase toda a parte, fora das muralhas, como primeira vítima oferecida aos invasores.
Gonçalves, A. N. 2019. António Nogueira Gonçalves. Colaboração em Publicações Periódicas. Coordenação de Regina Anacleto e Nelson Correia Borges. Prefácio de José de Encarnação. Coimbra, Câmara Municipal. Volume II, pg. 483-485.
No passado dia 2, publiquei uma entrada com o título “Coimbra: Fábrica de Lanifícios de Santa Clara 2” e, relacionada com ela, um leitor questionou-me no sentido de saber que estrutura é aquela que se vê à frente do convento … seria alguma capela de alminhas/via sacra como existe na ladeira que desce de Sta. Clara-a-Nova?
Referia-se ao edifício quadrangular que se visualiza na fotografia então publicada.
Complexo industrial da Fábrica de Lanifícios em Santa Clara. Finais da década de 70 do século. Fotografia do arquivo particular de Pedro Planas Meunier, acedida, em https://www.publico.pt/2019/07/08/local/noticia/ascensao-queda-fabrica-coimbra-1878945
Dessa estrutura, a partir de uma outra fotografia, obtivemos o seguinte pormenor que a mostra numa posição frontal.
Presumível capela no antigo Rossio de Santa Clara, hoje Praça das Cortes (pormenor)
Col. Carlos Ferrão
Respondi que, embora ainda me lembrasse do edifício, nada sabia sobre o mesmo, razão pela qual iria tentar obter algumas informações.
A primeira ajuda veio-me de Carlos Ferrão que disponibilizou boa parte das fotografias utilizadas para ilustrar esta entrada e suscitou várias hipóteses referidas mais à frente.
Uma vez na posse das fotografias pedimos uma opinião a Nelson Correia Borges que nos adiantou o seguinte parecer: Relaciono essa construção com os torreões que existem no terreiro da nossa antiga escola [a Brotero, atual Jaime Cortesão], com um que ainda está a meio da Av. Sá da Bandeira e mesmo com os da entrada no jardim de Santa Cruz.
Antigo torreão da cerca do Mosteiro de Santa Cruz, localizado na Av. Sá da Bandeira
Imagem do Google Maps
Numa das fotos vê-se bem o cuidado tratamento que foi dado ao lintel da porta e ao óculo superior, pelo que não tenho dúvida que a construção será bem anterior à Fábrica. Estes elementos parecem poder ser datados da segunda metade do século XVIII. Para o que serviria? Inclino-me para uma finalidade de tipo religioso e poderia ter albergado o cruzeiro viário referido pelo Prof. Nogueira Gonçalves. É evidente que teve intervenção posterior, como se vê pelas janelas laterais que se detetam em fotografias. Trata-se, no entanto, de mera hipótese de trabalho.
Perante esta pista, guiados pela mão de Regina Anacleto, chegamos ao Inventário Artístico de Portugal. Cidade de Coimbra e a um texto de Nogueira Gonçalves.
O primeiro, o Inventário, descreve o local, dizendo que dava acesso à Igreja do Convento de S. Francisco uma escadaria dupla, paralela ao adro, existindo uma grande cruz no muro em posição medial.
Na estrada, havia um cruzeiro do século XVII, que pela modificação viária, ficou metido na entrada da fábrica. (In: Correia, V., Gonçalves, A. N. Inventário Artístico de Portugal – Cidade de Coimbra. Lisboa, 1947, pg. 91).
Edifício inserido na entrada da fábrica
DGARQ - Centro Português de Fotografia (Estúdios Tavares da Fonseca), pormenor
O segundo, de Nogueira Gonçalves, diz-nos que A região coimbrã teve predileção por certa variante de cruzei¬ros, aquela em que a cruz se abriga num templete, formado de quatro colunas e suportam cobertura hemisférica ou piramidal.
Na própria cidade levantaram se alguns.
A piedade que os ergueu foi os melhorando pelo tempo fora ordinariamente seguindo as seguintes fases.
Primeiramente deu se lhes uma lanterna ou lâmpada e uma caixa de esmolas. Fecharam se lhes depois três lados, por meio de paredes, e no quarto colocou se uma porta com gradeamento de ferro; valorizaram se as paredes internas com diversos reves¬timentos; dotaram se, nalguns casos, de altar. O santuariozinho completou se frequentemente com um corpo de capela, ou mes-mo, amparado de maior favor, foi substituído por uma autênti¬ca capela ampla. (In: A. Nogueira Gonçalves. Colaboração em publicações periódicas. Coordenação de Regina Anacleto e Nelson Correia Borges. 2019. Coimbra, Câmara Municipal, I vol., pg.231)
Foram estes textos que nos levaram a eleger o título da entrada; contudo, eles não nos dão a certeza de que, inicialmente, teria sido essa a finalidade do edifício em apreço.
Como referimos, também batemos à porta de Carlos Ferrão que analisou as possíveis e diversificadas utilizações da estrutura depois da extinção das ordens religiosas e, consequentemente do convento, concluindo:
Independente do que teria sido antes, nos anos 20 do século passado, a estrutura, é apontada como sendo um Posto de Transformação (PT) de eletricidade da rede publica ligado à Fábrica de Santa Clara. Posto que era bidirecional, recebendo e injetando energia elétrica na rede pública.
Outra imagem do edifício
Col. Carlos Ferrão
Importa recordar que em Coimbra, existiram 21 centrais elétricas, todas termoelétricas. Uma de serviço público, as outras de serviço particular como a de Santa Clara, da empresa Planas & Cª que funcionou entre 1942 e 1947, com uma potência de 144 kW.
A fábrica por ser também produtora, era vendedora e compradora de energia à Câmara Municipal.
Depois de exploradas estas pistas concluímos que algo se adiantou, embora as dúvidas continuem a persistir.
Decorre daí o facto de serem bem-vindas outras informações passíveis de continuar a aclarar o assunto.
Rodrigues Costa
Com esta entrada iniciamos a divulgação de alguns artigos publicados por Nogueira Gonçalves entre 1921 e 1991, principalmente em jornais. Este texto, um dos que mais nos tocou, integra a obra recentemente editada pela Câmara Municipal de Coimbra, intitulada “A. Nogueira Gonçalves. Colaboração em Publicações Periódicas”, que teve a coordenação de Regina Anacleto e de Nelson Correia Borges.
É nossa intenção voltar, uma e mais vezes, a este livro de grande valor histórico, escrito de uma forma admirável pela sua beleza e singeleza.
Nada mais natural pensar que a antiga estrada da Beira até á Portela tenha seguido um traçado que a atual decalca; o próprio terreno parece indicar esse lógico trajeto; e, todavia, não se deu isso.
Deixaremos para outra vez o caminho da rua da Alegria, Arregaça, seguindo para Marrocos, o caminho da via longa como outrora se dizia.
A estrada da Beira partia não da ponte mas da parte alta, da porta do Castelo.
Sigamo-la.
Passada a porta da fortaleza tinha-se logo abaixo ao lado direito o caminho que permitia voltar á cidade pela porta da Traição; à esquerda a estrada de Entremuros que levaria a Fonte Nova, de onde se tomaria para a porta Nova ou rua das Figueirinhas ou ainda se cortaria a norte para o Montarroio.
Além de entrada principal da cidade travessas várias pois daí se tomavam; não faltaria a qualquer hora gente a calcorrear o ponto de separação viário.
Na parte mais plana, a do colo do monte, pedia um agregadozinho populacional. Coleção Regina Anacleto
Muito naturalmente o sítio, na parte mais plana, a do colo do monte, pedia um agregadozinho populacional. Ao lado direito, aonde vinha bater o muro da velha quinta dos crúzios, havia um, como hoje, em frente ao aqueduto. Prolongava-se mais que agora (e duma demolição recente ainda nos lembramos todos), fazendo uma correnteza de casas, tendo só encostadas aos arcos e em frente, portanto das outras umas duas ou três.
Tinha para o lado da Penitenciária a modesta capela de S. Martinho, e em ponto levemente anterior o oratório do Santo Cristo das Maleitas, transformação dum cruzeiro de caminho.
Era este o fatal bairro popular que precedia a entrada das cidades fortificadas. Tabernas, pequenos negócios, gente sem eira nem beira, vivendo em tugúrios e pronta a qualquer serviço humilde, a alombar todos os carregos, a encarregar-se de qualquer recado, tudo isso aí ficaria.
Sigamos o caminho, passando sob o arco principal, pois que a topografia foi modificada com o muro do jardim botânico. Era aqui o ladeirento e pequeno campo de Santa Ana, com o chafariz, donde seguia o caminho de Celas e cortava o da Beira para o novo bairrozinho, o de S. José, tirando o nome do colégio conventual de S. José dos Marianos (hospital militar).
Logo na esquina, tal como hoje, lá esperaria sem sombra de dúvida outra taberna aos que vinham da cidade e aos que cansara a ladeira que nós iremos descer.
Paremos e deixemos que os nossos olhos repousem a despedir-se das duas casas que as demolições deixaram em pé por uns breves dias.
Uma das coisas mais incompletas que há pelo campo das ciências é a geografia humana; em nenhum livro dos vários que dela se ocupam e que percorri (em nenhum!) encontrei este capítulo: – a taberna fulcro da fixação dos agregados populacionais. Valia a pena estudá-lo e escrevê-lo, que daria perspetivas novas a esta ciência.
A taberna atual deverá representar uma série infinda delas. Já ali beberam as tropas de Massena, para não falar em tempos mais antigos. Quantos almocreves, carreiros, gente de todo o género por ali não passou, quantos mendigos ali não trocaram uns tostõezinhos por um bom copo, compensador da miséria e do abandono, dando-lhes um verdadeiro antegosto dum céu particular!
Não há sensibilidade nesta desgraçada terra, não há amor da tradição, escusado será pedir à fria gente da Câmara para a conservar no meio dum larguito, enramada de larga parreira e com um loureiro a dar sombra. Dentro de dias o balcão esmurrado e nodoento será tirado, desaparecerá aquele soalho aonde cuspiram centenas de gerações! Exultaram os higienistas, como é de seu mau instinto, e eu entristecer-me-ei por saber que os malandros que hoje me pedem um tostãozinho não terão aonde o ir empregar sem tardança!
Capela de Santo Antoninho dos porcos, na sua atual localização. Coleção Regina Anacleto
Capela de Santo Antoninho dos porcos, interior. Coleção Regina Anacleto
Começava a descida e, à capela de Santo Antoninho dos porcos (pois que ali se fazia o mercado deles) passava o caminho pelo desvio angular que ainda ali se vê, para depois se meter pela ladeira calçada das Alpenduradas.
No fundo da descida, depois do mercado e das traseiras da fábrica, atingindo o vale, encontrava-se, como hoje, o começo do bairro do Calhabé e que se continuava esgarçadamente até perto da passagem de nível, sítio este aonde todos nós conhecemos umas casas baixas.
Numa destas parece que viveu o velho Calhabé. Coleção Carlos Ferrão
Numa destas parece que viveu o velho Calhabé, prazenteiro e bebedor, mas que fora homem de representação.
Já outrora ninguém pensaria que ainda fosse cidade o Calhabé, bem ao contrário do que os justos fados talharam e que começa a realizar-se: o Calhabé ser a cidade e Coimbra um pobre bairro do mesmo Calhabé!
Podia-se descansar um pouco que uma nova ladeira esperava o caminhante. Lentamente subia-se á Portela da Cobiça.
Portela da Cobiça. O que resta, no seu estado original, do percurso descrito
Lançado um último olhar à cidade afastada, transposto o colo, caminhava-se pelo vale transverso até ao rio, que depois se ia acompanhando para cima das Torres.
Local onde funcionava a “barca do Concelho”
Em frente aos Palheiros esperava-se que a barca do concelho viesse da outra margem e nos transportasse.
A cidade, aonde ficava ela!
Não vale a pena continuar só pela esperança de a tornar a ver do alto do monte, vencida a longa e áspera ladeira.
Lá seguiriam os viandantes, pelo cume, até Carvalho. Por Poiares, Almas da Serra, (S. Pedro Dias) iriam cair na Ponte de Mucela, aonde buscariam agasalho conforme a sua bolsa.
A serra máxima, a da Estrela do pastor, esperava-os. Quantas horas não levariam, moídos do mau piso e da distância! Tudo isso tão longínquo, não é verdade? E, todavia, para a gente da minha infância e um pouco mais velha, com a melhoria das diligências e da estrada a macadame, quão próximo e compreensivo, que os tempos anteriores se poderiam fazer surgir sem espanto; como tudo está longe, porém desta gente que já foi embalada num bom automóvel!
«Diário de Coimbra», 1952.12.25.
Gonçalves, A. N. 2019. António Nogueira Gonçalves. Colaboração em Publicações Periódicas. Coordenação de Regina Anacleto e Nelson Correia Borges. Prefácio de José de Encarnação. Coimbra, Câmara Municipal. Volume II, pg. 498-500
Será apresentado no próximo dia 6 de fevereiro, às 17h00, na Casa Municipal da Cultura, sala Francisco de Sá de Miranda, o livro A. Nogueira Gonçalves. Colaboração em publicações periódicas.
A. Nogueira Gonçalves. Colaboração em publicações periódicas, capa
A obra, editada pela Câmara Municipal de Coimbra, é constituída por 1148 páginas que se dividem por 2 volumes e incluem, no final, os índices onomástico e toponímico que, obviamente, se revelam de enorme utilidade. Reúne os textos que o Padre Nogueira Gonçalves foi inserindo, ao longo da sua vida, em publicações periódicas, não propriamente de índole científica, mas onde procurava transmitir ao cidadão comum, através de palavras simples e de frases bem buriladas, o seu muito saber. Todo este material, que se encontra disperso e, na maior parte das vezes, é de difícil acesso, passa a estar reunido numa única fonte.
Deve-se aos seus discípulos Doutores Regina Anacleto e Nelson Correia Borges a árdua tarefa de terem procurado e agrupado esses numerosos textos.
O índice dos dois volumes, que aqui reproduzimos, é elucidativo.
Índice da obra
Lembro-me bem da sua figura de homem alto e austero, a caminhar lentamente pela Cidade, de olhos atentos a tudo o que via.
P.e António Nogueira Gonçalves
Conhecendo parte dos escritos ora reunidos – que iremos divulgando neste blogue – não tenho qualquer dúvida em afirmar que se trata de uma obra que irá ser de consulta obrigatória para todos quantos se interessam e dedicam à história de Coimbra e da Região onde a nossa Cidade se insere.
Deve ainda salientar-se a qualidade estética dos textos, dos quais ressalta a paixão pelos temas tratados e o imenso saber de quem os escreveu.
Rodrigues Costa
Notas biográficas;
António Nogueira Gonçalves deixou uma profunda marca na historiografia da arte portuguesa, uma vez que iniciou caminhos nunca antes trilhados e que se vieram a tornar credibilizadores desta área do conhecimento.
Nasceu a 22 de dezembro de 1901 na Sorgaçosa, pequena aldeia escondida nas pregas da serra do Açor, bem perto da mata da Margaraça, concelho de Arganil… Ordenado presbítero a 26 de julho de 1925.
A “res artística” desde muito cedo o atraiu e, apenas com 19 anos, em setembro de 1921, publica no jornal A Comarca de Arganil, um texto onde dá a conhecer a existência, na igreja de Pomares, de um arco românico.
… A dimensão científica que o virá a projetar no tempo, absolutamente pioneira quando, nessa década de 30, desenhou os seus primeiros passos, prosseguirá quase até ao final da vida e manter-se-á, em muitos domínios, inultrapassada.
… A sua multifacetada erudição permitiu-lhe abranger vastas áreas: da Epigrafia à Pintura, da Heráldica à Arquitetura, da Paleografia à Escultura, passando pela Ourivesaria, pela Cerâmica, pelos Tecidos, etc.
Autor de uma vasta obra da qual se releva os “Inventários Artísticos da Cidade de Coimbra” (1947) e do “Distrito de Coimbra” (1952), inicialmente entregues a Vergílio Correia, mas que este mal teve tempo de começar e nos três volumes do “Inventário Artístico” dedicados ao “Distrito de Aveiro” (1959, 1981 e 1991), já da sua inteira responsabilidade.
… Foi nomeado conservador do Museu Machado de Castro em 1942, e depois da morte de Vergílio Correia assumiu a sua direção.
… Em 1968, a Universidade de Coimbra convidou-o para lecionar, na Faculdade de Letras, as disciplinas de História da Arte. Aí se manteve, até à jubilação, ocorrida no ano de 1976, ultrapassado que era o limite de idade.
… A Universidade de Coimbra concedeu-lhe o grau de “Doctor honoris causa” pela Faculdade de Letras em dezembro de 1979.
A Academia Nacional de Belas Artes, por seu turno, elevou-o à categoria de Académico de Honra e, posteriormente, agraciou-o, em 1991, com a Medalha de Mérito de Belas Artes, classe de ouro.
Anos depois, em 1983, a Câmara Municipal de Coimbra, terra que adotara como sua, numa homenagem merecida, atribuiu-lhe a medalha de ouro da cidade e o título de cidadão honorário.
A edilidade arganilense, considerando-o «uma personalidade multímoda, de saber diversificado e profundo», orgulhosa por o poder contar entre as suas gentes, numa sessão solene realizada a 6 de setembro de 1992, no salão nobre dos Paços do Concelho, condecorou-o com a medalha de ouro da municipalidade.
Homem «de um só parecer, de um só rosto, uma só fé, de antes quebrar que torcer», como diria Sá de Miranda, faleceu na sua Sorgaçosa natal a 25 de Abril de 1998.
In: A. Nogueira Gonçalves. Colaboração em publicações periódicas. Nota biográfica. 2019. Coimbra, Câmara Muncipal, pg. 11-13.
É uma das várias igrejas de Coimbra que tiveram de mudar de local, para fugir às inundações das cheias do Mondego. A igreja medieval situava-se no largo que é hoje conhecido por Terreiro da Erva – onde ainda se podem ver vestígios da capela mor e nave lateral –, no coração do território dos seus mesteirais: os oleiros de branco e de vermelho e os pintores de louça e azulejos – gerações de artífices que, durante séculos, fizeram de Coimbra um dos mais importantes centros ceramistas do país, com louça exportada para os quatro cantos do mundo e de que hoje pouco se sabe e nada resta, perdida a última oportunidade de estudar os seus vestígios com as demolições da famigerada viela central.
As cheias do Mondego foram sempre em crescendo. A de fevereiro de 1708 obrigou à trasladação do Santíssimo e da imagem do Santo Cristo para a igreja de Santiago, de barco! Logo se tratou de construir nova igreja. O local escolhido foi a encosta sobranceira ao Arnado, bem longe das investidas do bazófias. A primeira pedra foi lançada pelo bispo D. António de Vasconcelos e Sousa em 24 de agosto de 1710.
Igreja de Santa Justa, fachada principal
A fachada da igreja é monumental, pela sua situação altaneira. Flanqueada por duas torres, está amplamente rasgada de janelas que enchem de luz o interior. Inclui um retábulo da segunda metade do século XVI, trazido da igreja velha. Sobre o frontão das janelas intermédias situam-se quatro nichos com esculturas dos séculos XV e XVI incluindo as santas Justa e Rufina, padroeiras dos oleiros. Junto à base das torres encontram-se duas lápides epigrafadas com a história da igreja.
Igreja de Santa Justa, interior
O interior é de arquitetura sóbria, mas bem delineada, de nave única, coberta por abóbada de arco um pouco rebaixado. Divide-se em cinco tramos, sendo o primeiro ocupado pelo coro alto. Neles se rasgam arcos, formando capelas à face. A capela-mor, de um só tramo mais profundo, é mais estreita que a nave, encontrando-se o altar em plano mais elevado.
Igreja de Santa Justa, a imagem do Santo Cristo dos Oleiros
Os primeiros arcos a seguir ao coro alto são preenchidos na parte superior por pinturas do início do século XVIII, envolvidas em molduras de talha dourada, representado a Virgem com o Menino e o Batismo de Cristo. No arco, do antigo lado do Evangelho, encontra-se a imagem do Santo Cristo dos Oleiros, do século XV.
Igreja de Santa Justa, interior pormenor
Os arcos dos tramos seguintes abrigam retábulos. Os quatro primeiros enquadram-se no rococó coimbrão, embora de forma mais original: as colunas têm grinaldas de flores envolventes e entrecruzadas e, no terço inferior, caneluras em espiral. Sobre os altares da nave, oito telas da época joanina, mostram os passos da paixão de Jesus, cujos símbolos se exibem também no coroamento da fachada exterior. Os capuchinhos, que em tempos detiveram esta igreja, fizeram nela algumas alterações, como a ablação das mesas dos altares da nave e a substituição das imagens antigas por outras do século XX.
Os retábulos junto à capela-mor têm diferente linguagem. O do lado norte é adaptação de outro, seiscentista, vindo da igreja antiga. Tem colunas espiraladas, revestidas de vinha, uvas, meninos e aves debicando. Na predela há um relevo com a degolação dos Mártires de Marrocos. O retábulo fronteiro, da época joanina, também de colunas espiraladas, mas com grinalda no cavado. É dedicado às Almas do Purgatório, tema não muito comum na diocese.
Igreja de Santa Justa, altar-mor pormenor
A capela-mor é dominada pelo magnífico retábulo de talha dourada, de grande aparato, saído, certamente, de oficinas do Porto. Data dos primeiros decénios do século XVIII. Estrutura-se em colunas retorcidas sobre mísulas e reveste-se de acantos, flores, aves e profusão de crianças e anjos. Um grande sacrário, com quatro colunas salomónicas por lado, em diagonal, serve de base à escultura do Padre Eterno, com a pomba simbólica e anjos. Aos lados dispõem-se as imagens das titulares: as santas Justa e Rufina. Encima este conjunto escultórico o camarim onde se ergue o trono eucarístico, com baldaquino.
Desconhecem-se nomes de arquiteto, artistas e artífices. A mesma esponja que apagou a memória da atividade dos oleiros parece ter atingido também esta igreja. Mas as obras valem por si e basta o retábulo-mor para ombrear com outras obras-primas da arte em Coimbra.
Nelson Correia Borges
In: Correio de Coimbra N.º 4732, de 21.03.2019
Joaquim Martins Teixeira de Carvalho
Contavam os velhos que a voz dos sinos tinha força de convencer os homens.
Da campainha de S. Francisco Xavier se conta na India que levava atrás dele os mais infiéis.
Goa. Igreja do convento de S. Francisco Xavier
Não havia cão de herege, que, ao ouvir a campainha, não ficasse inquieto, agitado, movendo-se sem saber porquê, e não acabasse por dobrar a cabeça e pôr-se a andar atrás dela até a igreja.
Os sinos passavam por falar a verdade; nas igrejas estavam em altas torres para serem vistos de longe e atirarem para vales distantes a sua voz a anunciar a hora da oração, ou da vida ou da morte.
Há quem diga até que os sinos eram indiscretos e que, muitas vezes, em lugar de palavras de oração, contavam sem querer o que ia nos conventos, e por eles se vinha a saber o que por lá se passava.
Em Coimbra, contavam-me antigamente que os sinos até conversavam, e se respondiam uns aos outros.
Convento do Buçaco antes da construção do Hotel
No Bussaco, a cada hora de oração tocavam os sinos das ermidas todas dispersas pela mata e, contam crónicas, que o diabo tentara por vezes impedir que alguns frades juntassem a voz do pequeno sino das suas ermidas desertas à dos outros que em cada hora chamavam num coro baixo, com medo do vento e da chuva, à oração.
Buçaco. Capela do Sepulcro
Em Coimbra os sinos eram de menos devoção, e deviam fazer rir muito o próprio diabo.
Quando eu cheguei a Coimbra, explicou-me um dia um velho a voz dos sinos desta terra.
Era ao pôr-do-sol. Vínhamos descendo do Penedo da Saudade para o jardim.
Mosteiro de Santa Teresa. Porta da igreja
Pela porta da igreja de Santa Teresa sumiam-se caladas mulheres de idade, com o ar remediado, que dá a limpeza devota.
Alguns estudantes passeavam no adro.
De dentro vinha o canto rezado das freiras, áspero e delgado.
O sino pôs-se a dobrar, cortando as sílabas.
- Pe … ni … tência…, pe …ni… tência! …
Assim o ouvi, mal mo disse o velho com quem ia, e que andando e sorrindo repetia imitando a voz do sino pe … ni … tência…, pe …ni… tência! …
Quando chegamos ao fundo da ladeira, fez-me o meu companheiro notar a voz doutro sino, que vinha de longe, do convento de Santa Clara, que brilhava alegre na atmosfera dourada do poente.
Vista de Santa Clara. c. 1860. (Passado ao espelho, p. 50)
Pus-me a ouvir o sino, e ele a ensinar-mo a entender.
O som era mais grave, mas duma gravidade de ironia e dizia muito claramente.
- Tan … ta não! Tan.. ta não!
Eu ria-me. Quando ele me chamou a atenção para o sino de Sant’Ana, que se ouvia então e me disse:
- Veja o que diz esse agora!
- Eu sei lá!
- E bem simples: nem tanta, nem tão pouca!
Colégios de Tomar e de Sant’Ana. No primeiro plano a residência do prior-mor de Santa Cruz e, por cima, os Arcos do Jardim. Junto destes o pequeno Bairro de S. Sebastião. (Fototeca BMC. Cota: BMC_A033)
E era verdade. O sino de Sant’Ana, dizia num som delgado, com voz de nariz:
- Nem … tan … ta … nem … tão … pouca! Nem … tan … ta … nem … tão … pouca!
Assim fiquei eu sabendo que quando, às horas de oração o sino de Santa Tereza dizia:
- Penitência, penitência!...
O de Santa Clara lhe respondia:
- Tanta não! Tanta não.
E o de Sant’Ana fechava conceituosamente o coro, repetindo:
- Nem tanta! Nem tão pouca.
E assim fazia eu ideia, do que devia ser a vida destes conventos.
…
Pátio da Universidade e torre. 1869. (Passado ao espelho, p. 55)
Dos da Universidade, tão austeros canta João de Deus:
Toca o capelo, vou vê-lo
E vejo de vária cor
Não doutores de capelo
Mas capelos de doutor.
Esses também a mim me enganaram.
T.C.
Carvalho, J.M.T. Bric-à-Brac. In. Resistência, de 1903.01.29
A existência de uma feira dos porcos, em Coimbra, poderá ter resultado de uma determinação municipal que proibia estes animais de vaguearem pelas ruas da cidade fazendo estragos e causando sujidades.
Outrora, essa feira, segundo Nelson Correia Borges, realizava-se nas imediações do atual local da capela, um pouco mais a montante na direção do Penedo da Saudade. Ali teria existido uma capela da invocação de Santo António, protetor destes animais na doença.
Quando, nos finais do século XIX e inícios do XX a cidade se começou a alargar e o Bairro de S. José iniciou a sua expansão foi construída no início da Rua dos Combatentes da Grande Guerra uma casa com risco neomanuelino que acoplou uma capela substitutiva da do largo da feira, entretanto demolida.
De acordo com o mencionado autor, o nome de “Bairro de S. José” deve-se à proximidade do colégio dos carmelitas descalços, isto é, ao colégio de S. José dos Marianos, mais comummente chamado de colégio das Ursulinas. E é assim conhecido, porque depois da desamortização de 1834 o edifício, a partir de 1850, foi ocupado pelas freiras Ursulinas do Real Colégio das Chagas que deixaram a sua casa de Pereira devido aos problemas de paludismo e, até 1910, ali fizeram funcionar um colégio destinado à educação de meninas.
Casa neomanuelina
A casa, propriedade que foi (ou ainda atualmente é) da família Ferreira D’Araújo, parece ter sido riscada por um dos proprietários e a sua construção, que se arrastou por alguns anos, aconteceu na década de vinte do século passado.
Adossada à casa, mas sem com a mesma comunicar, foi igualmente construída a atual capelinha popularmente designada por Santo Antoninho dos Porcos.
Capela de Santo Antoninho dos porcos
Recordo-me de, nos anos oitenta do século XX, me terem mostrado um registo, daqueles que os homens, nas romarias, costumavam colocar debaixo da fita do chapéu, com uma gravura da imagem do santo e relacionada com a feira. Desconheço o destino do dito registo, mas o seu sumiço é mais do que provável e poderá ter tido o “eterno descanso” num qualquer caixote de lixo.
No interior da capela existe um pequeno nicho retabular, trabalhado, provavelmente, em pedra de Ançã, mas atualmente dealbado, onde se insere a imagem de Santo António.
Nicho-retábulo da capela
Não se conhece qualquer documento que aponte para o nome do artista que lavrou a decoração pétrea do edifício da Rua dos Combatentes. Apenas fontes orais, transmitidas pelos proprietários e que merecem credibilidade, indicam o nome de José Barata. Este artista, ligado à Escola Livre das Artes do Desenho, foi o grande mestre do trabalho neomanuelino existente na cidade de Coimbra e não só. Sabe-se que a cantaria ornamental existente na casa neomanuelina que se ergue na Rua do Corpo de Deus, mandada construir pela família Ferreira D’Araújo, saiu do seu cinzel.
As colunas que se podem visualizar no nicho-retábulo da capela de Santo Antoninho dos Porcos apresentam grande similitude com as da porta axial da Sé Velha, esculpidas por José Barata, aquando do restauro levado a efeito naquele templo, nos finais do século XIX, sob a orientação de António Augusto Gonçalves.
Colunas do nicho-retábulo
As colunas que ladeiam o nicho-retábulo são diferentes entre si. O fuste da esquerda mostra uma decoração fitiforme com flores de quatro pétalas a preencher os espaços livres e a da direita apresenta um esquema geométrico, formando “losangos” com uma bola no centro. Os fustes rematam com capitéis de motivos vegetalistas.
Algumas destas informações sobre esta pequena jóia de Coimbra, escondida dos olhares de tantos que por ali passam, foram-me transmitidas por Regina Anacleto.
Resumo da intervenção na homenagem a Nelson Correia Borges, aquando das comemorações do 30.º aniversário do Grupo Folclórico de Coimbra
... um Homem que o é por inteiro, vertical, amigo do seu amigo, de grande humanidade na dignidade da sua modéstia. Um Homem com quem sempre vale a pena falar e que tem sempre algo para nos ensinar.
… docente do Instituto de História da Arte … a partir de 1978. O seu doutoramento ocorreu em 1993, com uma dissertação subordinada ao tema Arte Monástica em Lorvão. Sombras e Realidade. Das origens a 1737, a qual veio a ser editada pela Fundação Calouste Gulbenkian em 2002. Antes, em 2001, alcançou a sua agregação.
… Professor de História da Arte Moderna e Diretor do Instituto de História da Arte (1997-1999)
… principais monografias que publicou: Mosteiro de Lorvão, 1977; João de Ruão, escultor da Renascença Coimbrã, 1980; A Capela do Tesoureiro da antiga Igreja de São Domingos, 1980; A Arte nas Festas do Casamento de D. Pedro II. 1987; Do Barroco ao Rococó, volume 9 da obra História da Arte em Portugal, 1987; Coimbra e Região, Lisboa, 1987, obra que, em minha opinião, é a mais conseguida das monografias publicadas sobre Coimbra e a sua região; Doçaria Conventual de Lorvão, 2013.
… Académico Correspondente da Academia Nacional de Belas-Artes (Lisboa); da Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa, Secção de Belas-Artes (Lisboa); membro da Comissão Diocesana de Arte Sacra de Coimbra; … um dos fundadores AFERM-Associação de Folclore e Etnografia da Região do Mondego; membro do Conselho Técnico Regional da Federação do Folclore Português.
Foi fundador de três associações de defesa do património: Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, a Associação Pró-Defesa do Mosteiro de Lorvão e o Grupo Folclórico de Coimbra.
… viu ser reconhecida a sua autoridade nas seguintes aéreas: Arte das Ordens Religiosas em Portugal; Rococó em Portugal; Arquitetura e talha em Coimbra e região centro (Barroco e Rococó); Cultura e arte populares / Folclore.
Nelson Correia Borges tem dois amores:
O primeiro amor foi o que lhe veio do berço: Lorvão, as suas gentes e o seu Mosteiro.
Mosteiro do Lorvão de que tem sido um incansável defensor … na sua qualidade de fundador e Presidente da Direção da Associação Pró-Defesa do Mosteiro de Lorvão, que vem exercendo desde 1983.
O segundo amor foi pela Cidade onde cresceu, se fez Homem e um respeitado historiador. Amor por Coimbra no seu todo: na sua arte, nos seus monumentos, na sua cultura, na sua história mas também e, essencialmente, no seu Povo.
Coimbra que lhe deve, na sua participação empenhada, mas sempre desinteressada, a realização de tarefas, para além das atrás referidas e entre tantas outras, das quais importa destacar:
- A partir de 1978 e até à sua desativação, integrou a Comissão de Análise dos Grupos Folclóricos, como elemento especializado na área do traje popular onde realizou um notável trabalho de formação dos responsáveis pelos grupos folclóricos que permitiu a colocação do folclore coimbrão no patamar de exigência onde já esteve e ao qual importa regressar;
- Apoiou cientificamente a exposição “Aspetos do Trajo Popular Feminino em Coimbra”;
- Realizou inúmeras visitas guiadas a monumentos da Cidade de que a recente visita à Igreja do Salvador é só o último exemplo;
Da dimensão e a qualidade do trabalho na investigação e recolha que pacientemente vem realizando ao longo dos anos nos campos da etnografia e do folclore coimbrãos há ainda que acrescentar:
- A redescoberta e a divulgação da doçaria conventual coimbrã, que tem tido como momento alto, a reposição anual da tradicional “Feira dos Lázaros”;
- A recuperação de inúmeras de músicas tradicionais cantadas e dançadas em Coimbra nos finais do século XIX e inícios do século XX que permitiu a reposição, com rigor histórico das tradicionais “fogueiras” de Coimbra e das “serenatas futricas”, bem como dos cantares coimbrãos, nos ciclos do Natal e da Páscoa.
Tudo feito sem alardes, na simples afirmação do que se ama e da verdade histórica.
…
Coimbra e nomeadamente o seu Município têm que olhar para o acerbo que este Homem vem criando ao longo dos anos, para o que ele tem feito pela nossa Cidade e para o muito que ainda lhe pode dar.
Coimbra tem que dizer de uma forma clara: Obrigado Senhor Professor Doutor Nelson Correia Borges pelo que já fez e pelo muito que esperamos possa ainda fazer em prol da cultura deste Concelho.
Costa, A.F.R. Intervenção na homenagem a Nelson Correia Borges, aquando das comemorações do 30.º aniversário do Grupo Folclórico de Coimbra. Coimbra, 31 de Janeiro de 2016
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