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No início desta pequena série de três entradas, dedicadas à viola toeira de Coimbra, escrevemos que a mesma seria terminada recordando “o que, em 1983, quando era Vereador da Cultura da Câmara Municipal de Coimbra o saudoso Fausto Correia e eu tinha a honra de chefiar o Departamento de Cultura, se implementou relativamente a este instrumento”.
Começo por citar uma notícia publicada no Diário de Coimbra de 9 de maio de 1983 – que Rui Marques, a quem agradeço, me disponibilizou – e onde se pode ler o seguinte:
Câmara cedeu violas toeiras a grupos folclóricos do Concelho
Viola toeira construída por Raúl Simões. Imagem acedida em: https://www.muralsonoro.com/mural-sonoro-pt/2014/3/4/viola-toeira
A Câmara Municipal de Coimbra entregou anteontem sete violas toeiras a grupos folclóricos do concelho.
O vereador do Pelouro, Fausto Correia, disse ao nosso jornal que esta medida vem na sequência de um processo de recuperação do instrumento musical, tradicional de Coimbra.
«O processo – salientou – iniciou-se com a aquisição dos instrumentos e da técnica, a Raul Simões, último fabricante, em Coimbra, da viola toeira».
Raul Simões, construtor e exímio tocador de viola toeira
«A partir daí – acrescentou – o professor Luís Filipe construiu 10 violas, sete das quais foram cedidas a grupos folclóricos, duas ficaram ao cuidado a Câmara e uma foi doada ao Instituto Português do Património Cultural».
Na sessão, que decorreu nos Paços do Concelho sob a presidência de Mendes Silva, presidente da Câmara, ficou ainda decidida a organização de um curso de aprendizagem de viola toeira.
O curso vai realizar-se no edifício Chiado em Coimbra, na próxima semana.
In: Diário de Coimbra, de 9 de maio de 1983
Uma outra notícia, saída no mesmo periódico, informa que no ato atrás referido estavam ainda presentes as Pessoas que então integravam a Comissão de Análise dos Grupos Folclóricos, constituída pelo Presidente da Federação do Folclore Português, Sr. Augusto Gomes dos Santos, pelo Doutor Nelson Correia Borges e pelo Dr. Francisco Faria responsáveis pelo reconhecimento “de interesse folclórico” dos grupos do Concelho de Coimbra.
O jornal O Despertar de 13 de maio do mesmo ano deu a conhecer o nome dos grupos a quem foi oferecida uma vila toeira: Camponeses do Mondego, de Ribeira de Frades; Típico da Palheira; Rancho de Vila Nova de Cernache; Vigor da Mocidade, de Fala, S. Martinho do Bispo; Rancho Típico do Bordalo; Rancho de Assafarge; e Casa do Povo de Ceira.
De memória, acrescento ainda as seguintes notas:
- O Município de Coimbra adquiriu aos herdeiros de Raul Simões, o último construtor de violas da cidade e homem que também tocava viola toeira, todo o material existente na sua oficina. Seguidamente, estabeleceu um acordo com o Museu Nacional de Etnologia, a fim de este levar a cabo a identificação e a catalogação dessas peças, cedendo-lhe, como contrapartida, alguns artefactos. Na altura, esse material destinava-se a reconstituir, no âmbito do projetado Museu da Cidade, a oficina do mestre violeiro.
- Algum tempo depois, cessei as minhas funções na Câmara de Coimbra e, por isso, desconheço o destino dado a esse precioso material. É evidente que o projeto da sua musealização, tal como a instalação do Meseu da Cidade, foram abandonados. Parece-me premente saber onde se encontra esse material, do qual faziam parte madeiras, moldes, ferramentas e produtos químicos que eram utilizados na sua oficina pelo último violeiro de Coimbra.
Após ter partilhado com os leitores estas informações talvez seja possível compreender melhor o espanto e a tristeza, para não dizer a revolta, que expressei na primeira destas entradas.
Rodrigues Costa
Concluímos, nesta entrada, a divulgação da publicação onde se relata o trabalho que está a ser desenvolvido na Miami University, relacionado com a revitalização da viola toeira.
A viola toeira e Coimbra
A viola de Coimbra tinha duas denominações distintas: a “Banza” e a “Farrusca,” sendo que o termo Banza descende provavelmente do instrumento africano “Mbanza” levado na memória dos escravos para o Brasil e daí o termo ser utilizado para denominar um instrumento de corda.
Coimbra foi, até às invasões francesas, a universidade do Brasil, os estudantes que vinham estudar na universidade traziam consigo a sua musicalidade, com ritmos, melodias e ambientes harmónicos dos “lundus,” combinando harmonia europeia e ritmos africanos, e a modinha brasileira, baseado na moda portuguesa e sempre acompanhada pela viola. A modinha ficou tão popular que o Jornal de Modinhas foi publicado em Lisboa entre 1792 e 1795. José Ramos Tinhorão confirma que “o costume dos estudantes, tanto de Lisboa quanto em Coimbra, de preencherem as suas horas de lazer com tocatas e cantorias chamadas de estudantinas, levava-os a compor canções.”
Quando um estudante se enamorava era costume convencer alguns dos seus colegas para o acompanhar nas noites mais claras, iluminadas pela lua cheia, pois não existia iluminação publica nas ruas, a cantar à janela da sua amada. Ouvia-se uma serenata deliciosa. Cantando versos como “menina vinde ao luar, vinde ver quem está a cantar,” o instrumento que acompanhava a sua voz era a viola de Coimbra, conhecida agora como viola toeira. Assim nasceu a Serenata, assim nasceu o Fado de Coimbra. Francisco Faria, em Fado de Coimbra ou Serenata Coimbrã?” interroga-se: “Por que chamar a isto fado? Canção coimbrã é uma música de ar livre, a estiolar em ambientes fechados, nos quais perde força expressiva e significado social, para se tornar canção-espetáculo...”
Provavelmente aprenderiam a cantar com familiares e tutores que sorviam a estética parisiense e, no caso da música, a italiana e a austríaca. Por esta razão ouve-se cantar na canção das ruas de Coimbra, a técnica operática do canto lírico que persiste na atualidade e que muito a diferencia do fado de Lisboa. A viola que acompanhava os estudantes era denominada de banza (muito raramente ainda se utiliza hoje expressão como “profissional da banza”). Era semelhante à farrusca a viola dos futricas e tricanas, mas ao nível das decorações era bastante ornamentada e rica segundo a estética barroca, com a utilização de madeiras nobres, madrepérola e marfim.
Quando um estudante se enamorava era costume convencer alguns dos seus colegas para o acompanhar nas noites mais claras, iluminadas pela lua cheia, pois não existia iluminação pública nas ruas, a cantar à janela da sua amada. Ouvia-se então uma serenata deliciosa.
Eduardo Loio a tocar uma réplica da viola de Bento Martins Lobo. Op. cit.,
Provavelmente aprenderiam a cantar com familiares e tutores que sorviam a estética parisiense e no caso da música a Italiana e austríaca. Por esta razão ouve-se cantar na canção das ruas de Coimbra, a técnica operática do canto lírico que persiste na atualidade e que muito a diferencia do fado de Lisboa. A viola que acompanhava os estudantes era denominada de banza (muito raramente ainda se utiliza hoje expressão como “profissional da banza”). Era semelhante à farrusca a viola dos futricas e tricanas, mas ao nível das decorações era bastante ornamentada e rica segundo a estética barroca, com a utilização de madeiras nobres, madrepérola e marfim.
Revitalização e construção
A viola toeira está a passar por uma revitalização nos últimos anos, com muito interesse nas comunidades académicas e musicais, reconhecendo o potencial de um instrumento com possibilidades expressivas. Com o movimento de early music e o desejo de voltar a usar instrumentos originais na música histórica, vários instrumentos extintos ou esquecidos estão a ser reutilizados em tipos de música antiga e folclórica. A viola toeira cai nesse movimento, e a canção coimbrã.
Em termos acadêmicos, investigadores estão explorando a história e desenvolvimento da viola toeira e música composta para o instrumento, pesquisando a música em arquivos e museus em Portugal e no exterior. Várias teses e dissertações foram escritas recentemente, explorando música disponível como o “Coimbra Codex” em arquivos como a Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, a Biblioteca Nacional e a Fundação Gulbenkian, em Lisboa. Outras fontes estão a ser descobertas, e muita informação está disponível na internet. Instrumentos antigos estão a ser estudados também, com exemplares de violas portuguesas de 12 cordas do século XVIII acessível em museus em Portugal e outros países, construídas por António dos Santos Vieira, de Lisboa, exposta no Ashmolean Museum, em Oxford, Inglaterra, a de Pedro Ferreira de Oliveira (Lisboa, c. 1790), da antiga coleção de Arnold Dolmetsch, actualmente no Horniman Museum, em Londres, outra de José Pereira Coelho (Lisboa, c. 1785) no Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa.
Uma parte dessa revitalização é a construção de instrumentos, principalmente nas últimas décadas. Construtores redescobriram o instrumento e começaram a construir instrumentos baseados nos exemplares históricos, alguns muito elaborados, outros mais simples. Ultimamente, ateliers e fábricas começaram a produzir instrumentos em número significativo.
A construção da viola toeira respeita as técnicas de construção ibéricas que remontam ao século XVI, em que o braço e o cepo ou bloco da quilha são uma peça única, onde as laterais, ilhargas ou costilhas são coladas em duas ranhuras perpendiculares à mediana do braço, previamente serradas. Este método de construção é muito diferente do utilizado em França e Itália, que emigrou para os Estados Unidos onde a caixa acústica é construída separadamente do braço sendo unidos posteriormente através de um encaixe ou malhete.
A cidade de Coimbra é uma parte essencial da revitalização e a construção da viola toeira, com estudantes, músicos e luthiers amadores e profissionais interessados em construir e tocar o instrumento.
Há muitos websites dedicados às violas portuguesas e à viola toeira, e é possível comprar instrumentos, estojos e cordas em vários países do mundo. Projetos como EcoMusic na Universidade de Aveiro estão a investigar a história e revivalismo do instrumento e outros aspetos da música portuguesa.
A viola toeira tem um passado interessante e variado, e será fascinante ver o que o futuro reserva para esse instrumento.
Thomas Garcia a construir uma viola toeira na Coimbra Luthier School. Op. cit.,
Garcia, T.G.C. e Loio, E. A Viola Toeira: História, Desenvolvimento, Revitalização e Construção. Acedido em: https://veduta.aoficina.pt/14/a-viola-toeira/
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