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A muito divulgada água-tinta de G. Vivian, que é o n.º XVI de Scenery of Portugal & Spain, editado em Londres, em 1839, e de que apresentamos um pormenor na Fig. 3, é um manancial de informações sobre o trajo popular em Coimbra, na época, já que junto à fonte de Santana se agrupam diversas figuras citadinas que vão desde os estudantes, à esquerda, às senhoras de mantilha, à direita. Ali as vemos, conversando, uma de frente outra de costas, amantilhadas com a extraordinária coca armada em papelão e barbas de baleia.
Fig. 3 - Pormenor da estampa XVI da obra de G. Vivian, “Scenery of Portugal & Spain”, Londres, 1839, vendo-se, à direita, duas mulheres de mantilha
O desenho é em tudo coincidente com a descrição de António Cândido Borges de Figueiredo que, recordando com certa saudade as senhoras, que conheceu, de mantilha, não se abstém de ridicularizar esse trajo feminino:
«Quando eu era pequeno, quando eu usava calcinhas curtas, [...] nesse tempo, aí de 1858 para 1859, lembro-me perfeitamente de ter visto ainda algumas senhoras de mantilha, principalmente na semana santa. Conquanto eu então apreciasse muito o cortar bonecos de livros e colá-los em papel, para desassombrar as figuras das letras, confesso que, todas as vezes que percebia que íamos à missa ao Salvador, não cabia em mim de contente. É que, naquela igreja encontrávamos sempre as senhoras S., a casa de quem íamos depois da missa. Ora a casa das senhoras S., e as donas dessa casa tinham a arte de me atrair. A casa atraía-me, porque na sala havia sobre as mesas um papagaio e um gato empalhados, e uma recova de cavalinhos de vidro, e um pavão também da mesma matéria cuja cauda era composta de vidro em cabelo. [...] Quanto às senhoras S., essas atraíam-me, porque me davam uns certos bolinhos, muito melhores que especiones [...].
«Devo ser – e sou – grato à memória daquelas excelentes criaturas, que me deram tantas gulodices; todavia não posso deixar de rir-me ainda hoje do aspecto que as três senhoras – mãe e filhas – apresentavam quando iam à missa. As suas tradições de família, o seu recato, a sua devoção, não lhes permitiam adop- tar a moda. Nada direi da saia, ou vestido, preto quasi sempre, e, quando não preto, então da cor da túnica do senhor dos passos; mas a mantilha...
«Creio que ainda nalgumas partes do nosso Portugal se vêm as clássicas mantilhas; mas a mantilha de Coimbra era muito diferente das outras, – pelo menos não me consta que em outras partes se usassem do feitio daquelas. Compunha-se de uma tira de papelão grosso arqueada e convenientemente coberta de fazenda preta; colocada sobre a cabeça e segura sob o queixo por fitas, caía o pano preto exterior pelas costas e peito a modo de mantéu: até aqui não há nada de extraordinário; mas de diversos pontos do papelão que cobria a cabeça partiam algumas barbas de baleia que a distância de dois palmos da testa se uniam formando vértice, tudo isto coberto de fazenda igual à restante e apresentando a figura da maxila superior do ranforincho, ou, melhor, do pterodáctilo... E que lindos rostos, que rosadas e mimosas faces se escondiam sob esse hediondo e ridículo trajo!
«Mas foi o que usaram as damas do high-life de outrora; quem não trajava de mantilha, tinha de pôr o capote de cabeção e o lenço de cambraia muito branco c muito gomado. O bico formado atrás da cabeça pelo lenço era a perfeita antítese do bico da mantilha. As senhoras S. foram, creio eu. as últimas damas que usaram mantilha.»
Ainda um outro desenho, certamente de artista nacional, mas de autor desconhecido e que deverá datar do segundo quartel do século passado, vem de encontro aos testemunhos anteriores. Nele se vê uma cena matutina (Fig. 4). O desenho é desagradável, mas elucidativo. O garotito e a manteigueira, descalços, contrastam com a senhora de mantilha que se dirige, certamente, para a igreja.
Fig. 4 - Cena matinal, com senhora de mantilha. Desenho de autor desconhecido
E eis, suficientemente caracterizada, a mantilha coimbrã.
Borges, N. C. A Mantilha e o seu uso em Coimbra, In: “Munda”, 7, Coimbra, Revista do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, 1984, p. 60-71.
O Grupo de Arqueologia e Arte do Centro (GAAC), ao ser fundado na cidade de Coimbra, em 11 de maio de 1978, teve como primeiro objetivo «Promover o estudo, conservação, defesa e divulgação do património cultural, nomeadamente arqueológico, paisagístico, artístico e etnográfico». Ao longo dos anos, tem vindo a publicar a revista «Munda», cujo primeiro número apresenta a data de 11 de maio de 1981.
Munda, n.º 1. 18 de maio de 1981
Esta revista, nomeadamente os números da sua primeira fase, atualmente apenas consultáveis em algumas bibliotecas, destacaram-se pela qualidade da colaboração e não pode deixar de se lamentar os injustamente esquecidos artigos ali publicados. Por isso, iremos procurar recordar neste blogue, sobretudo aqueles trabalhos cuja temática se relaciona com a nossa cidade.
Começamos com um escrito do Professor Doutor Nelson Correia Borges, intitulado «A Mantilha e o seu uso em Coimbra». O autor apresenta ali um aprofundado estudo sobre a origem e evolução desta peça do vestuário feminino, «que se destinava exclusivamente a cobrir a cabeça da mulher, e era usada sobretudo para ir à igreja até não há muitos anos».
A parte final do artigo é dedicada ao estudo das especificidades da mantilha usada pelas mulheres de Coimbra.
Nas duas próximas entradas transcreveremos o texto e inseriremos as imagens que o ilustram.
Rodrigues Costa
Fig. 1 A lady of Coimbra in mantilla. Gravura da obra de Henry L’Evêque, “The costume of Portugal”, Londres, 1812
A representação mais antiga (Fig. 1) é uma belíssima gravura a «pointillé», incluída na obra de Henry L'Evêque, The Costume of Portugal, publicada em Londres. em 1812. Ostenta a seguinte legenda: «A Lady of Coimbra in Mantilla». Nela se recorta uma esbelta figura feminina sobre a paisagem da cidade, onde se reconhece a Sé Nova e o Mondego. Envolve-se na mantilha, com graciosidade, deixando a descoberto parte da «blusa» e da saia preta. Notaremos ainda no seu trajo as meias brancas e os sapatos finos, além das joias que ostenta. Em segundo plano segue, ao lado de um homem, outra mulher, também de mantilha. Parece-nos, todavia, que esta gravura não representa com fidelidade a parte que envolve a cabeça – a coca –, a qual, segundo outros testemunhos, era de muito maior dimensão, e a forma, ainda que não se afastando nas suas linhas gerais, aparece aqui mais comedida.
Assim a viu Carlos Van Zeller, oficial do exército britânico, cerca de 1834, com a sua coca muito saliente, terminando num bicoque, pelo que afirma, encurvava quase até ao nível do queixo. Não se poupa ao comentário depreciativo comum a quantos, nesta época, se referem a esta peça de vestuário: «The walking dress of fema'e of Coimbra is ridiculous in the estreem. The mantilha is in every aspect the same as that of Oporto except the cape which projects to an extraordinary lengíh beyond the face so as nearly to hide it, ending in a sharp point which bends down wards nearly as far as the chin».
Além das notas manuscritas, Van Zeller fez alguns esboços, dos quais nos interessam particularmente os pormenores da mantilha coimbrã que reproduzimos na Fig. 2.
Fig. 2 - Coca da mantilha coimbrã, segundo apontamentos de viagem de Carlos Van Zeller, em 1853
De facto, é a coca que verdadeiramente distingue e define a mantilha de Coimbra, só encontrando rivais no Porto, Viseu e Braga que não lhe ficam atrás na singularidade. Estamos em crer que o desenvolvimento do tamanho da coca foi uma consequência dos toucados, por vezes muito elaborados, em moda, sobretudo, na última metade do século XVIII.
Borges, N. C. A Mantilha e o seu uso em Coimbra, In: “Munda”, 7, Coimbra, Revista do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, 1984, p. 60-71.
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