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Nesta entrada iremos referir os objetos de arte levados de Santa Cruz, para o hoje Museu Nacional Soares dos Reis, arrolados no seguinte documento transcrito por Madaíl.
Mosteiro de Santa Cruz, santuário
«Termo de entrega das pinturas e mais objectos para o Mozeu da Cid.e do Porto
Aos quatro de Junho de mil oitocentos e trinta e quatro annos em Coimbra e Mosteiro de Santa Crus aonde eu Escrivão vim Com Francisco Pedro de Oliveira e Souza, Comicionado do Mozeu Portuençe para este na forma da ordem retro escolher, e Serem entregues os objectos que houvesse na mesma Casa para fazer Conduzir ao mesmo Mozeu e procedendo o mesmo na mesma escolha Se entregar e lhe forão entregues os objectos escolhidos que Saõ os que Se Seguem –
Seis paizages ao Devino pinturas em Cobre
Seis floreiros ditos, em Cobre
Cinco Nascimentos do Menino, em Cobre
Tres descimentos da Crus, em Cobre
Quatro Vezitações dos tres Reis Magnos, em Cobre
Tres Santos Antonios a receber o Menino, em Cobre
Huma pintura da flagelação de Christo, em Cobre
Outra ditta Calvario, em Cobre
Duas dittas a Sepultar Christo, em Cobre
Outra ditta = Senhora da Piedade, em Cobre
Outra ditta = Vezitaçaõ de Santa Izabel, em Cobre
Duas ditas Assençaõ de Nossa Senhora, em Cobre
Outra ditta de Trnafiguraçaõ no Horto, em Cobre
Outro ditto de Santa Izabel Raynha da Ungria, em Cobre
Outro ditto = Morte de Saõ Francisco, em Cobre
Outro ditto = Baptismo de Christo, pintura em pedra
Outro ditto de Nossa Senhora apresentando o menino a Santa Catherina, em Cobre
Outro dito de Saõ Joaõ pregando no dezerto, em Cobre
Outra ditta de Nossa Senhora entre huma gloria de Meninos Com dois Santos em adoração.
Outros ditos de Saõ Pedro, e São Paullo em Cobre e redondos
Duas famílias Sagradas, piquenas em Cobre
Huma dita redonda, Senhora da Cadeira, pintada em pedra
Outra pintura dita do Nascimento pintada em pedra e ouvada
Hum saõ Jeronimo em Cobre
Outra pequena pintura em pedra, vezitaçaõ dos tres Reis
Quatro Evangelistas, pinturas em Cobre
Huma Senhora com o Menino em Cobre
Santa Maria Magadallena em Cobre
Vinte e Seis pequenos quadros esmaltados em Cobre, da Paixão de Christo.
Mestre da Paixão de Cristo; esmalte pintado sobre cobre. In: O Património Artístico das Ordens Religiosas entre o Liberalismo e a atualidade
Três notas finais;
– No documento ora transcrito são ainda arrolados 21 títulos, sendo o primeiro Antiguidades Gregas, Italicas, e Romanas com 52 volumes;
- Para além da livraria do Mosteiro também foram também levados livros do Colégio de S. Agostinho, sendo referido o título Homens Ilustres, com 52 volumes;
Colégio de S. Agostinho, claustro. Coleção Regina Anacleto
- Não foram encontrados documentos referentes à retirada da espada dita de D. Afonso Henriques, nem da escrivaninha/tinteiro, aqui referidos em entradas próprias.
Madail, A.G.R. 1949. Inventário do Mosteiro e Santa Cruz à data da sua extinção em 1834. Separata revista e aumentada da Revista O Instituto , vol. 101, 1943, acedida em:
http://webopac.sib.uc.pt/search~S17*por?/tinstituto/tinstituto/1,291,309,E/l856~b1594067&FF=tinstituto&1,1,,1,0
Nesta entrada iremos abordar o que foi levado de Santa Cruz no que respeita a livros e manuscritos. Madaíl começa por referir que com a ocupação de Coimbra pelas forças liberais em 8 de Maio de 1834, cidade que era conhecida, desde o relato de Balbi, pelas suas magnificas Bibliotecas monásticas, caem, ato contínuo dois emissários da Comissão de Administração dos bens dos Conventos abandonados … um deles era Francisco Pedro de Oliveira e Sousa, por parte do Museu portuense; o outro, Alexandre Herculano, pela Biblioteca.
Ao Subprefeito da Província em Coimbra, José Maria Ribeiro Vieira de Castro, repugnou a diligência, que constituía um enxovalho e uma espoliação à cidade, e contrariava as instruções de 18 de Maio que o encarregavam de nomear uma comissão responsável pelos bens dos Conventos. De nada valeu porque em 30 de Maio foi determinado que nada mais lhe competia que cobrar deles recibos dos objetos que escolherem.
… Em 5 de Junho estava a escolha feita, concluída a relação de tudo, assinados os recibos e apensos ao processo; só um deles se encontra datado, mas todos são do punho dos próprios comissionados e constituem impressionantes relações de preciosidades arrebatadas injustamente a Coimbra, que, havia três séculos já, dispunha duma biblioteca na Universidade onde tudo devia ter sido recolhido; por iniciativa do Vice-Reitor, certamente alarmado com o conhecimento do que os comissionados do Porto estavam levantando, como a conjugação das datas permite concluir, assim o compreendeu, e dispôs, a Portaria de 9 desse mês, mandando recolher à Universidade os livros de objetos de Museu.
… Em dezembro de 1834 é que a Universidade foi entregue do que restava da famosíssima Livraria do Mosteiro de Santa Cruz. Chegava em último lugar…
O que foi levado para o Porto foi arrolado em diversos recibos, sendo:
- Manuscritos, num total de 157, sendo o primeiro da lista o Breviarium gothicum.
Breviarium gothicum. Edição impressa de 1775
Imagem acedida em: https://archive.org/details/A104159/page/n6/mode/2up
- No que concerne livros e documentos – de diferentes tamanhos e alguns com dois ou mais volumes – foram agrupados por temas:
- História e Antiguidades, com 439 títulos, sendo o primeiro Historia de la India oriental por San Roman;
Imagem acedida em:
https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=42118
- Literatura, com 125 títulos, sendo o primeiro Statii opera;
- Ciências e Artes, com 160 títulos, sendo o primeiro Annales du Musée trinta e volumes;
Imagem acedido em:
: https://www.biodiversitylibrary.org/item/189419#page/5/mode/1up
- Jurisprudência, Economia, Política, com 21 títulos, sendo o primeiro Cours diplomatique avec Supplement;
- Teologia, com 37 títulos, sendo o primeiro S. Philastrii opera.
Ou seja, foram levados de Santa Cruz 782 títulos, necessariamente com um número muito maior de volumes. Número que há época era extremamente significativo.
Termina Madail com a seguinte nota.
Herculano deve ter retirado de Coimbra precipitadamente, perante o visível despertar da opinião pública, e o protesto do Vice-reitor da Universidade … A própria Câmara Municipal procurou «varrer sua testada»; convocou uma reunião extraordinária em 5 de junho, data, justamente, da entrega dos objetos aos comissionados do Porto, ficando na ata, para memória, o registo seguinte: «E nesta se deliberou que se fizesse hum officio ao Dezembargador Corregedor desta Cidade para elle, sendo sua attribuiçaõ impedice a remessa dos objectos».
Protesto inútil, meramente formal; fora exatamente o Corregedor quem recebera do Sub-Prefeito ordem para tudo deixar escolher.
Madail, A.G.R. 1949. Inventário do Mosteiro e Santa Cruz à data da sua extinção em 1834. Separata revista e aumentada da Revista O Instituto , vol. 101, 1943, acedida em:
http://webopac.sib.uc.pt/search~S17*por?/tinstituto/tinstituto/1,291,309,E/l856~b1594067&FF=tinstituto&1,1,,1,0
Sob esta epígrafe publicamos há algum tempo um conjunto de informações relativas ao que foi “tirado” do Mosteiro de Santa Cruz e levado para o Porto.
O entendimento das razões desse facto e do que foi levado é possível conhecer a partir do trabalho de Rocha Madaíl que iremos passar a utilizar. Nesta entrada iremos procurar compreender as razões que estavam subjacentes à ira liberal contra o Mosteiro, começando com a seguinte citação de um documento divulgado por Madaíl no trabalho em apreço. Trata-se de uma carta datada de 30 de Maio de 1834 dirigida pelo Sub Prefeito Interino Joze Maria Ribeiro de Castro, ao Corregedor da Comarca de Coimbra, Manuel Homem Rebelo Freire de Almeida.
Sendo publico, e notorio que o Prelado Geral do Convento de S.ta Cruz desta Cidade, e mais quatro Religiosos Conventuaes do mesmo Mosteiro, se evadirão, e abandonarão aquella Caza na occazião da entrada das Tropas Fieis [8 de Maio de 1834] nesta Cidade e Acclamação do Governo Legitimo de S. M.J. o Duque de Bragança Regente em nome da Rainha; e sendo de igual notoriedade publica que o referido Prelado serviu hostilmente contra o Governo do Mesmo Augusto Senhor, na qualidade de Commandante, de hum Corpo de Voluntarios, e não menos sabido que o mesmo Convento, recebeo alguns Religiozos dos Conventos Abandonados da Serra, Grijó, em cujos termos hé considerado Supprimido… nomeio a V.S.ª para proceder sem perda de tempo ao Inventario do referido Convento … Sirva-se igualmente enviar-me uma hua relação Nominal de todos os Religiozos do Convento.
Mosteiro de Santa Cruz, fachada da igreja.Coleção Regina Anacleto
… Sobre o drama político, em que desde sempre se consubstanciou a gloriosa mas acidentada vida de S.ta Cruz de Coimbra – arrastada, nos últimos tempos, pelo torvelinho das violentas paizões que dominavam a época e às quais, a instituição não soube ou não pôde manter-se estranha – caía agora, com a frieza terminante do ofício acima transcrito, inglório e implacável, o pano do ultimo ato.
O que se lhe seguiu e aqui se relata, mais do que um epílogo, foi uma farsa que podemos perfeitamente isolar da vida daquela casa sete vezes secular; de comum com ela tem apenas o lugar da ação.
… Pelo que respeita a Santa Cruz de Coimbra é de notar que sempre o mosteiro gozara da fundada tradição de professar ideias antiliberais; com a vinda de D. Miguel a Coimbra em outubro de 1832, de caminho para o Porto, onde os liberais desembarcados no Mindelo se haviam instalado já desde 9 de julho, mais se arreigaram dedicações, e velhas simpatias absolutistas se concitaram.
Mosteiro de Santa Cruz, púlpito. Coleção Regina Anacleto
O Rei [D. Miguel] chegou a Coimbra no dia 20, mas desde 12 que o seu Estado-Maior se encontrava na cidade, e aquartelado justamente no mosteiro de Santa Cruz.
Madaíl transcreve de seguida um documento em que se descreve, minuciosamente. os preparativos para alojar D. Miguel e o seu séquito no Mosteiro, o que não veio a ocorrer pois este preferiu alojar-se no Paço da Universidade.
Mosteiro de Santa Cruz, túmulo de D. Afonso Henriques. Coleção Regina Anacleto
Prossegue Madaíl salientado que Conquanto não lograsse hospedar o monarca adentro de seus muros, o mosteiro recebeu-o nos dias 23 e 25 … vendo todo o convento, santuário e igreja; a pedido do Rei, foram abertos os túmulos de D. Afonso Henriques e D .Sancho I, patenteando-se-lhe, e à régia comitiva, a própria ossada do fundador da monarquia portuguesa.
Mais adiante acrescenta que Na noite de 7 para 8 os miguelistas abandonavam Coimbra às quais se juntaram … o Geral de Santa Cruz e mais quatro Cónegos; para a identificação destes últimos não dispomos de elementos suficientes; mas o Geral sabemos que era D. João da Assunção Carneiro.
… Primeira consequência do abandono do Paço episcopal e do Mosteiro de Santa Cruz por parte, respetivamente, do Prelado e do Prior Geral, foi a instalação das tropas liberais nestes edifícios.
Madail, A.G.R. 1949. Inventário do Mosteiro e Santa Cruz à data da sua extinção em 1834. Separata revista e aumentada da Revista O Instituto , vol. 101, 1943, acedida em:
http://webopac.sib.uc.pt/search~S17*por?/tinstituto/tinstituto/1,291,309,E/l856~b1594067&FF=tinstituto&1,1,,1,0
Numa entrada publicada há algum tempo que teve por base uma comunicação da Senhora Dr.ª Ana Paula Machado, Conservadora no Museu Nacional de Soares dos Reis, do Porto, abordava a existência de uma série de 24 placas de esmalte pintado “subtraídas” ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra.
Prometi, então, voltar a este tema.
Cena da Verónica, integra a série de vinte e seis placas de esmalte pintado
A razão dessa promessa decorreu de, na referida publicação, essa série de placas ser classificada como datando do 1.º terço do Século XVI e como sendo uma das séries sobreviventes mais completa pelo que constitui hoje uma referência incontornável entre as suas congéneres europeias; mais à frente, a autora refere que este conjunto não encontrou na última revisão de programas e percursos do Museu Soares dos Reis, enquadramento adequado, estando presentemente em reserva.
Quer isto dizer, traduzindo para uma linguagem entendível por não especialistas, que as referidas peças estão, há largos anos, devidamente acondicionadas e guardadas, longe dos olhares do público.
Confesso que, ao aperceber-me desta situação, senti uma grande revolta, tendo mesmo escrito uma petição, dirigida ao Ministério da Cultura, que teria d ser, obviamente, apoiada pelo Bispado e pela Câmara de Coimbra, no sentido de solicitar o regresso das referidas placas, ora acondicionadas num qualquer caixote, ao local de onde haviam sido retiradas, isto é, ao Santuário do Mosteiro de Santa Cruz.
Acabei por arquivar a petição, porque já não acredito na eficácia desta forma de participação cívica.
Sinceramente, por esta e por outras razões similares, estou cansado de lutar contra os moinhos de vento da ignirância, do imediatismo da política e do desinteresse dos decisores políticos – de todos os quadrantes – pela nossa história, pelo nosso património e pela nossa cultura.
Peço desculpa pelo meu desabafo.
Em ordem a este tema pretendo hoje chamar a atenção para um estudo – a que voltarei – de Rocha Madail, e no qual colhi as seguintes informações:
«Casa das reliquias» de Santa Cruz
Os esmaltes, que o próprio Diretor interino da Academia de Belas Artes do Porto em 1864 aceitava «terem estado na banqueta do Altar do mesmo Santuário» de Santa Cruz de Coimbra, são vinte e seis preciosíssimas laminas de cobre esmaltado com viva policromia e ouro, medindo 8x10 cm cada, agrupadas em políptico sobre tabuleiro de madeira, e representando cenas da vida de Cristo.
Trabalho das célebres oficinas de Limoges da primeira metade do século XVI, o seu finíssimo desenho segue muito de perto outros tantos passos da coleção conhecida por «pequena Paixão de Cristo», de Albrechr Durer.
Joaquim de Vasconcelos ocupou-se deles no fasciculo 9 da «Arte Religiosa em Portugal», e o Sr. Dr. Armando de Matos dedicou-lhe desenvolvido estudo de identificação em 1934 na revista «Museu»; por informação que então lhe fornecemos, extraída do presente inventário, já nessa data ficou incontroversamente regista a sua proveniência, que Joaquim de Vasconcelos suspeitava ser a «casa das reliquias» de Santa Cruz.
«Casa das reliquias» de Santa Cruz, pormenor 1
«Casa das reliquias» de Santa Cruz, pormenor 2
Fico com a esperança de que este meu lamento incentive outros, mais jovens e com mais força, a lutarem pela devolução das peças ao local de onde nunca deviam ter saído.
. Madail, A. G. R. 1938. Inventário do Mosteiro de Santa Cruz à data da sua extinção em 1834.
. Machado, A.P. A propósito de três itens de inventário. In: O Património Artístico das Ordens Religiosas entre o Liberalismo e a atualidade, n.º 3. 2016. Pg. 161-172
A série de vinte e seis placas de esmalte pintado, com cenas da Paixão, diretamente inspiradas na série de gravuras da chamada Pequena Paixão de Dürer, é talvez o mais enigmático dos três itens a que aqui nos dedicamos, já que nada sabemos sequer sobre a sua entrada no Mosteiro de Santa Cruz.
Coroação de espinhos, último quartel do Século XVI, atelier do Mestre da Paixão de Cristo; esmalte pintado sobre cobre. Museu Nacional de Soares dos Reis (fot. José Pessoa IMC/ MC)
…. Outrora talvez organizadas num pequeno retábulo ou num frontal de altar as pequenas placas foram ao longo do tempo merecendo esporádica atenção por parte dos autores portugueses.
Mosteiro de Santa Cruz, altar da Casa das Relíquias, onde a série das placas de esmalte poderão ter estado aplicadas.
… Em 1914, Joaquim de Vasconcelos dedica-lhes três páginas ao longo das quais propõe a datação da primeira metade do século XVI e sugere a Casa das Relíquias do Mosteiro de Santa Cruz como local da sua instalação no Mosteiro.
A apresentação da série na Exposição de Arte Francesa em Lisboa, em 1934, dá-lhe visibilidade junto de especialistas nacionais e estrangeiros que nesse contexto a classificam como do 1.º terço do Século XVI. Dessa data em diante passará a ser referida na maioria dos estudos especializados neste tema publicados desde os anos 60 na Europa e nos Estados Unidos.
Por ser uma das séries sobreviventes mais completa e uma das raras com registo documental anterior ao Século XIX, constitui hoje uma referência incontornável entre as suas congéneres europeias, razão pela qual, em janeiro de 2008, o Museu Soares dos Reis, em colaboração com o Centre de Recherche Scientifique de la Reunions des musées de France (CRRMF) e o Musée des Arts Decoratifs de Paris (MAD), se candidatou ao programa Eu-Artech com o objectivo de a analisar e inscrever num mesmo banco de dados em que se encontravam já a série da Wallace Collection e peças do MAD. O processo permitiu a revisão da sua datação (agora atribuída aos meados do século XVI e o início do século) e autoria, um atelier ainda em estudo da esfera de Pierre Reymond.
Batismo no Rio Jordão, integra a série de vinte e seis placas de esmalte pintado referida no texto
Cena da Verónica, Batismo no Rio Jordão, integra a série de vinte e seis placas de esmalte pintado referida no texto
Calvário, integra a série de vinte e seis placas de esmalte pintado referida no texto
A série de esmaltes, como aliás parte da arte religiosa da coleção, não encontrou nessa última revisão de programas e percursos, enquadramento adequado, estando presentemente em reserva.
Machado, A.P. A propósito de três itens de inventário. In: O Património Artístico das Ordens Religiosas entre o Liberalismo e a atualidade, n.º 3. 2016. Pg. 161-172
João Batista Ribeiro, no seu Inventário do Museu Portuense de 1839, regista «um estojo que contem um tinteiro de tartaruga marchetado d’ouro e madrepérola, que foi do uso de Fr. Bartholomeu dos Martires».
Escrivaninha, c. 1720-1747, tartaruga, madrepérola, liga de cobre e ouro. Museu Nacional
de Soares dos Reis (fot. José Pessoa IMC/ MC)
Mas já em 1838, no periódico O Panorama (1838: 122), se fizera referência a esta peça com essa associação ao nome do Arcebispo de Braga, acrescentando a menção a uma pena «com que se asignaram os decretos do concilio tridentino, monumentos curiosos doados a Sancta Cruz por D. Fr. Bartholomeu dos Martyres».
Igreja de S. Cruz. Santuário, onde a peça estava guardada
Dessa pena não volta a encontrar-se notícia, tão pouco do estojo a que alude João Batista Ribeiro. Trata-se de uma peça de produção italiana do século XVIII, construída em tartaruga, ornamentada com incrustações de motivos “chinoiserie” em ouro e elementos “rocaille”, grotescos e figuras alegóricas em madrepérola. Não é assinada, mas tem paralelos muito estreitos com peças da autoria de Gennaro e Giuseppe Sarao.
Foi apresentada na exposição de Arte Ornamental de 1882, sem classificação, mas já com a indicação de ter sido oferecida por Benedito XIV à Academia Litúrgica Pontifícia fundada em Coimbra em 1747.
Joaquim de Vasconcelos dedicou-lhe, em 1914, um breve estudo onde a classifica como trabalho francês, da corte de Luís XV e onde definitivamente deita por terra a associação ao concílio de Trento e a Frei Bartolomeu dos Mártires. Em 1998, a sua classificação foi revista por comparação com paralelos de outros museus, designadamente da Wallace Collection, tendo então sido datada do século XVIII e aproximada à produção da família Sarao.
A escrivaninha integra-se, desde 2001, no circuito da exposição permanente do Museu em articulação com peças de ourivesaria do Século XVIII.
Machado, A.P. A propósito de três itens de inventário. In: O Património Artístico das Ordens Religiosas entre o Liberalismo e a atualidade, n.º 3. 2016. Pg. 161-172.
A espada de Afonso Henriques, que hoje se guarda no Museu Militar do Porto, tem uma dimensão simbólica que ultrapassa largamente a sua dimensão física que, aliás, é surpreendentemente maneirinha, à luz das descrições daquele que a empunhava, que seria homem para medir nada menos do que 10 palmos, ou seja, muito mais do que dois metros.
…. Segundo a lenda, esta espada, juntamente com o escudo de Afonso Henriques, teria sido levada, como amuleto protetor, por D. Sebastião para a desastrosa incursão de Alcácer Quibir, mas teria ficado esquecida no barco que transportar o rei ao lugar que lhe serviria de sepultura.
Desenho da espada de D. Afonso Henriques. In: Arquivo Pitoresco. 1861
A revista Arquivo Pitoresco publicou, em 1861, a gravura que encima esta nota, acompanhada por um texto onde se conta a história da misteriosa espada de Afonso Henriques. Aqui fica.
«Foi esta a espada que libertou Portugal da dependência de Castela; que conquistou aos moiros Lisboa, Santarém, Palmela, Leiria e outras terras; a que fundou em Ourique a monarquia portuguesa.
Até à extinção das ordens religiosas, a espada de D. Afonso Henriques conservou-se junta ao seu túmulo na capela-mor de Santa Cruz de Coimbra; depois foi transferida para o museu do Porto; onde se acha, e ali foi tirado o desenho que hoje apresentámos.
É sabido que el-rei D. Sebastião, quando partiu para a desastrosa jornada de África, levou a espada e o escudo de D. Afonso Henriques. Não tendo, porém, desembarcado estas armas, quando a armada regressou ao reino foram estes dois monumentos restituídos ao convento de Santa Cruz. É isto o que afirmam os nossos antigos cronistas.
… Do modo por que estas armas saíram de Santa Cruz, é que há documento e testemunhos autênticos. Eis o que diz D. Nicolau de Santa Maria na Crónica dos Cónegos Regrantes:
«Depois de ter assistido no dia 20 de Outubro de 1570 a um doutoramento na universidade, passou D. Sebastião a visitar as sepulturas de D. Afonso Henriques e D. Sancho. O prior-mor lhe mostrou a espada de D. Afonso Henriques, a qual tomou D. Sebastião, e com grande veneração a beijou, dizendo aos fidalgos da sua comitiva: «Bom tempo em que se pelejam com espadas tão curtas! Esta é a espada que libertou todo o Portugal do cruel jugo dos mouros, sempre vencedora, e por isso digna de se guardar com toda a veneração». E entregando-a ao prior geral de quem a recebera, lhe disse: — «Guardai, Padre, esta espada, porque ainda me hei-de valer dela contra os moiros de África».
Passados oito anos, lembrado el-rei destas palavras, a mandou pedir ao geral de Santa Cruz … Desse fac-simile é que é o traslado que vamos apresentar.
D. Sebastião
«Padre geral e convento do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Eu el-rei vos envio muito saudar. Eu me tenho publicado em haver de fazer por mim com ajuda de Nosso Senhor uma empresa em África, por muitas e mui grandes razões, mui importantes ao bem de meus reinos, e de toda Espanha, de que também resulta benefício à cristandade, o que me pareceu escrever-vos assim para encomendardes ao Nosso Senhor o bom sucesso desta empresa, que por seu serviço faço, como para vos dizer que desejo levar nela a espada e escudo daquele grande e valoroso primeiro rei deste reino D. Afonso Henriques, cuja sepultura está nesse mosteiro, porque espero em Nosso Senhor que com estas armas me dê as vitórias que el-rei D. Afonso com elas teve. Pelo que vos encomendo muito que logo mas mandeis por dois religiosos desse convento que para isso elegereis. E como eu embora tornar, as tornarei a enviar a esse mosteiro, para as terdes na veneração e guarda que é devido a cujas foram, e por tudo. E por aqui entendereis que as não quero senão emprestadas para o efeito a que vou, e de quão grande contentamento isto é para mim. Escrita em Lisboa a 14 de Março de 1578. — Rei.”
Espada dita de D. Afonso Henriques, último quartel do Século XVI ?; aço; 99,5 x 14,5 cm. Inv. N.º 1 Div Museu Nacional de Soares dos Reis/ em dep. No Museu Militar do Porto (fot. José Pessoa IMC/ MC)
… “Recebida esta carta, mandou logo o padre prior limpar a espada do glorioso rei D. Afonso, e fazer-lhe uma bainha de veludo, com sua ponteira de prata doirada, e uma caixa preta em que fosse metida com sua chave, e fechadura doirada; e outra caixa preta em que fosse o escudo do mesmo santo rei, para irem estas armas com mais resguardo e veneração, e as mandou … a el-rei, o qual as recebeu com grande gosto e contentamento, dizendo, que se Deus lhe dava a vitória que esperava, prometia de fazer canonizar o glorioso rei D. Afonso, como já o intentara fazer el-rei João III seu senhor e avô.”
Neves, A.A. 2016. A Espada de Afonso Henriques. Acedido em 2019-09.17, em https://araduca.blogspot.com/2016/05/a-espada-de-afonso-henriques.html
A sagração dos aprestos de guerra de D. Afonso Henriques, enquanto relíquias teve um papel inquestionável na construção de que nos fala António Cruz de uma “legenda áurea”, que muito interessava aos monges crúzios e que foi já estudada por vários autores.
D. Afonso Henriques desbarata as forças do Rei de Badajoz
… A sua vinda para o Museu Portuense toma, pois, foros de iniciativa política eivada de simbolismo e por isso acaba inevitavelmente rodeada de polémica. Aos envolvidos no processo caberá o difícil papel da sua legitimação que debilmente se apoia na ideia de que D. Pedro IV a oferecera à cidade. Desse gesto não ficou qualquer registo escrito. A omissão é agravada pela ausência de registo de saída de Santa Cruz e de entrada no Museu Portuense.
O volume de correspondência trocado, de Maio a Outubro de 1834, entre o Prefeito do Douro, o Subprefeito de Coimbra, o Vice-Reitor da Universidade e o Ministro de Estado dos Negócios do Reino, acerca dos objetos retirados de Santa Cruz de Coimbra e da sua vinda para o Museu é bem elucidativo do confronto de vontades e da divergência de entendimentos relativamente aos princípios que norteavam a integração dos bens no património do Estado.
D. Afonso Henriques. Batalha de Ourique, quadro de Domingos António de Sequeira
… A Universidade e a Câmara de Coimbra multiplicam-se em pedidos e requerimentos para que fiquem na cidade os bens dos conventos locais suprimidos «por terem nella a sua sede os principais Institutos da Sciencias e das Artes; e onde por isso tais objectos serão com utilidade publica, mais consultados pelos Nacionais, e estrangeiros»
…. Alegava-se que esses bens formavam na cidade «huma distincta parte do seu ornamento, celebridade, e publica utilidade». … No documento em que se expõe essas alegações refere-se ainda que a «Espada do Grande Affonso acha-se depositada com outras preciozidades no Sanctuario do Mosteiro de Santa Cruz, não será justo que esta estimadíssima Relíquia do Fundador da Monarquia Luzitana se separe da Cidade onde repouzão as cinzas de tão Grande Heroe».
Igreja de Santa Cruz. Tumulo de D. Afonso Henriques.
Fotografia de António Luís Campos, acedida em https://nationalgeographic.sapo.pt/historia/grandes-reportagens/953-afonso-henriques
… Em 1863, coincidindo com um dos momentos em que é reclamada a sua devolução a Coimbra, é-lhe feita uma placa em prata para lhe servir de legenda com a simples informação «Espada de D. Affonso Henriques»
Em 1864, a Câmara de Coimbra reclama de novo «a devolução da espada que foi de Afonso I e outros objectos retirados do Mosteiro de Santa Cruz».
… Entre 1878 e 1903 Martins de Carvalho, nas páginas do periódico O Conimbricense, reclama repetida e veementemente a restituição da espada e das “outras preciosidades” a Coimbra, embora curiosamente duvide da autenticidade da espada.
Em 1933, a polémica reacende-se. Aquando da inauguração da sala Vitorino Ribeiro no Museu Militar de Lisboa, o seu Diretor reclama a espada para a Capital a pretexto de um monumento ao monarca fundador que aí planeava erguer-se … a polémica prosseguirá durante os vinte anos seguintes, entre a genuinidade, a ilegitimidade da transferência e a imperiosidade da devolução a Coimbra.
Em 1943 Rocha Madahil publica um inventário inédito do Mosteiro de Santa Cruz, que dará de imediato lugar a uma exposição coimbrã exigindo a restituição da espada «tesouro supremo da Cidade» cuja permanência no Porto «representa não só uma afronta ao brio de Coimbra, como sacrílega mutilação do venerando túmulo do fundador da Pátria».
O pedido é recusado pela Direção Geral do Ensino e das Belas Artes,
… O pedido repetir-se-ia em 1947 para entrega ao então Museu Regional de Machado de Castro, de novo sem sucesso.
Machado, A.P. A propósito de três itens de inventário. In: O Património Artístico das Ordens Religiosas entre o Liberalismo e a atualidade, n.º 3. 2016. Pg. 161-172, acedido em http://artison.letras.ulisboa.pt/index.php/ao/article/view/72/65
O Museu Portuense ou Ateneu D. Pedro foi criado em 1833, por iniciativa de D. Pedro IV, e esteve na origem do que é hoje o Museu Nacional de Soares dos Reis.
Seria essa jovem instituição que, em junho de 1834, acolheria cerca de meia centena de pinturas e mais de cem volumes ilustrados provenientes do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e aí escolhidos por Francisco Pedro de Oliveira e Sousa e Alexandre Herculano.
Os dois comissários nomeados para procederem à escolha dos bens dos conventos abandonados terão ainda selecionado, para seguirem junto da primeira remessa de pinturas e livros, a célebre espada de D. Afonso Henriques, um estojo contendo uma escrivaninha italiana de tartaruga marchetada a ouro e madrepérola e uma série de vinte e seis pequenas placas de esmalte pintado de Limoges.
xxx
A existência de uma espada, dita de D. Afonso Henriques, venerada entre outras relíquias em Santa Cruz de Coimbra está relativamente mal documentada.
A sua presença no Mosteiro não é mencionada quando, em meados de quinhentos, ao tempo de D. João III, se reúnem os fundamentos para a canonização de D. Afonso Henriques. No documento onde se organizam esses fundamentos, além da narrativa dos alegados milagres do monarca / santo, faz-se uma descrição das suas relíquias que até ai se haviam venerado no mosteiro, conta-se que D. Afonso se igualava aos monges quando assistia a missa no Mosteiro, rezando no coro e ofício divino como qualquer deles e que para o efeito quando entrava deixava na porta a espada e vestia uma sobrepeliz.
D. Afonso Henriques. Datada do final do século XII ou início do século XIII, esta poderá ser a mais antiga representação do primeiro monarca português. Já coroado e de espada em punho, o rei enverga também o manto real. (Créditos: Museu Arqueológico do Carmo/ José Pessoa/ IMC). Acedida em https://nationalgeographic.sapo.pt/historia/grandes-reportagens/953-afonso-henriques
Em memória desse gesto, a porta por onde entrava ficou a designar-se de espada cinta, designação que manteve até à data da sua demolição em 1628. Todavia nenhuma espada propriamente dita é aí mencionada enquanto objeto de devoção.
… Parte do debate gerado em torno da genuinidade da espada que hoje conhecemos como de D. Afonso Henriques, é suscitado pela improbabilidade do regresso das armas de Alcácer Quibir depois da trágica derrota de D. Sebastião.
Em 1604, numa vida de San António de Padua da autoria de Mateo Aleman, fomos encontrar a mais remota referência a este episódio que até agora conhecemos, em que se justifica a não utilização das armas e o consequente regresso com facto de o exército de terra estar já vencido quando chegou a armada onde se transportava a recamara do Rei e onde viajavam estas armas e não por esquecimento como divulgaram outros ao longo do Século XVII.
Ainda na primeira metade do Século XVII, quer D. Vicente quer D. José de Cristo, memorialistas de Santa Cruz, voltam a referir-se a ela, este último para dizer que se perdeu num incêndio da Sacristia.
Em 1628, Faria e Sousa refere-as como «oyas inestimables» que são no Mosteiro, ainda nesses dias, a espada, o escudo e a sobrepeliz com que seguia o Coro.
D. Vicente e D. José de Cristo acrescentam às narrativas que trasladam observações de carácter prático que eventualmente decorreriam do seu contacto mais direto com os objetos em questão e com o cartório onde os registos dos acontecimentos que os envolviam se guardavam. Da espada regista D. Vicente:
«Assi com ElRei pedio nesta carta assi se fez,/ mandaramlhe a espada, e escudo, e pera ir/ mais venerado, lhe fizeram a caixa preta/ que agora tem, sobre a antiga, a espada também a alimparam, e lhe fizeram aquella/ bainha e cabos, e caixa, porque dantes disto/ nam tinha cabos, senão amaçam largo, e huã bainha antigo como de facas».
Na miscelânea de D. José de Cristo guarda-se uma descrição detalhada que, a nosso ver, vem avolumar as muitas dúvidas levantadas sobre a originalidade da arma que em 1834 chega ao Museu Portuense:
«Dej-/xounos também huã espada de cingir que tem sinco palmos / de comprido, a guarnição ao Antigo, de largura de tres dedos e / vaj se deminuindo ate a ponta em dous, a qual antiguamente / era maior e mais larga e Comprida, mas como he de tantos an-/ os o ferro vajse guastando de alimparem porque a conser-/vamos sem ferrugem e mui lustrada como tal reliquea me-/resse. Alem disto também lhe fizeram as guardas e punho / mais curto do que era quando El Rej D. Sebastião a quis levar / pera africa».
Espada dita de D. Afonso Henriques
A informação pode ser verdadeira e descrever a espada que efetivamente regressou do Norte de África e a sua posterior alteração, ou ser fantasiosa e descrever uma espada nova que se fez para substituir a relíquia perdida, justificando as diferenças entre a original e que então se descrevia com as alterações e a usura do tempo. Em qualquer dos casos a espada que hoje se conserva não apresenta vestígios de semelhante desgaste ou alterações.
Das relíquias de D. Afonso Henriques guardadas em Santa Cruz apenas a espada chegou até nós. Da sobrepeliz e do escudo, deixa, que saibamos, de haver notícia depois do século XVII.
Espada dita de D. Afonso Henriques, último quartel do Século XVI ?, Museu Nacional de Soares dos Reis/ em dep. No Museu Militar do Porto (fot. José Pessoa IMC/ MC)
[Em 1985] A espada de D. Afonso Henriques cuja posse tanta polémica suscitara, é solicitada para uma exposição comemorativa do 8.º centenário da morte do Fundador no Museu Militar do Porto sendo em seguida pedida para passar a integrar a exposição permanente desse museu. A facilidade com que o Museu Soares dos Reis acede ao pedido evidencia que a peça não estava já incluída no programa de exposição. No Museu Militar a espada ocupa hoje lugar de destaque em exposição permanente. Todos os anos é solenemente transportada a Coimbra, até junto do túmulo de D. Afonso Henriques, no contexto das comemorações do dia do Exército.
Machado, A.P. A propósito de três itens de inventário. In: O Património Artístico das Ordens Religiosas entre o Liberalismo e a atualidade, n.º 3. 2016. Pg. 161-172
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