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A' Cerca de Coimbra


Quinta-feira, 26.01.23

Coimbra: Cadeiral de Santa Cruz 5

Do Cadeiral SC, pg. 199a.jpg

 Op. cit., pg. 199

A figura aqui apresentada é uma daquelas que revelam um escultor de garra e bem experimentado na arte de entalhar a madeira. Faltando-lhe embora a mão esquerda e quase todo o antebraço, assim como quase todo o braço direito, mesmo assim o todo da estatueta é notável pela atitude e expressão, pelo lançamento do manto, pelo doseamento das pregas a distribuir luz e sombra num equilíbrio admirável.

Deve tratar-se de um fidalgo, a julgar pelo trajo e pela cadeia que lhe adorna o peito. A mão esquerda devia segurar qualquer objeto que se vinha apoiar na coxa do mesmo lado, onde restam vestígios. O braço encosta ao tronco, e o que resta do antebraço indica a posição de quem sustém algum bastão, espada, etc. Um prego espetado no coto mutilado é o que testemunha uma tentativa falhada de restauro infeliz. Do braço direito apenas ficou uma pequena parte a seguir ao ombro, e a mão. Sabe-se, porém, pela posição da mão com a palma voltada para fora, qual ela a posição do braço.

Do Cadeiral SC, pg. 205a.jpgOp. cit., pg. 205

A figura aqui representada é um baixo-relevo que se encontra na face interna de um painel que delimita uma série de cadeiras. Com a mão direita soergue a capa e com a esquerda segura um bastão terminado por quatro bolinhas.

Pelo seu tamanho, este bastão não é um bordão ou cajado, antes parece um cetro. Mas não é cetro, pois a figura não tem coroa nem aspeto de rei.

Consultando bibliografia, achei que, entre os cantores que nos cabidos das catedrais, mosteiros e colegiadas, entoavam os ofícios divinos, havia um que tinha por missão ensinar a cantar bem e dirigir o coro: era o chantre ou mestre de coro. Só aos chantres era reservado o uso de capas de seda e cetro (Solange Corbin, «Essai sur la Musique Religieuse au Moyen Age», Paris, 1952, pg. 202). A mesma autora, depois de dizer que esse uso está documentado em textos e iluminuras, tais como o Missal de Braga (de 1558) e o Saltério 114, da Biblioteca Pública Municipal do Porto, diz que uma iluminura deste último, que era certamente o de Santa Cruz, apresenta o chantre com o bastão de quatro bolas em cruz, que seria a insígnia da sua dignidade.

Não tive oportunidade de ver as iluminuras citadas, mas basta o testemunho e a opinião da ilustre e conscienciosa investigadora para poder interpretar a figura em causa como sendo o chantre do coro de Santa Cruz.

 Pereira, A. N. Do Cadeiral de Santa Cruz. 2.ª edição. Introdução de Nunes Pereira, Abertura de Anselmo Ramos Dias Gaspar e Prefácio à segunda edição de Marco Daniel Duarte. 2007. Coimbra, Câmara Municipal. Pg. 199-200 e 205-206.

 

 

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por Rodrigues Costa às 10:47

Terça-feira, 24.01.23

Coimbra: Cadeiral de Santa Cruz 4

Do Cadeiral SC, pg. 163a.jpg

Op. cit., pg. 163

 A escravatura pode definir-se como a dependência absoluta e incondicional do ser humano com respeito à vontade de outrem.

A sua origem tem várias causas, entre as quais estas: a carência de mão-de-obra, e o direito de guerra (cf. Domingos Maurício, no artigo «Escravatura» na «Enciclopédia» VERBO).

A venda de José, filho de Jacob, a uns negociantes amalecitas que por sua vez o venderam no Egipto a Putifar, é uma das referências bíblicas à escravatura («Génesis», XXXVII). Escravos foram depois os israelitas no Egito, obrigados a trabalhar em condições desumanas m construção de cidades. Dessa escravidão os libertou Moisés.

No tempo em que foi feito o Cadeiral anda a escravatura era largamente praticada na Europa e na África. Não Admira, pois, que a figura do escravo apareça na ate daquele tempo. Por outro lado, as guerras com os mouros e outras faziam numerosos prisioneiros, que depois, em muitos casos, eram convertidos em escravos.

Para a abolição da escravatura contribuiu em grande parte o cristianismo com a doutrina da fraternidade humana.

A figura aqui representada parece mais um prisioneiro do que um escravo. Com efeito, as suas vestes são amplas e dornadas de uma espécie de franja em bicos, que nos parece indicar pessoa de certa posição social que por qualquer motivo foi metida em ferros. Preso à parede pela cintura, tem os pés amarrados. Dois anéis abraçam-lhe as pernas acima dos tornozelos, e um engenhoso sistema de argolas une e fecha os dois anéis. Faltam-lhe as mãos, a direita mutilada antes da atual douradura, e também o nariz está mutilado. Apesar disso, é uma bela estátua esta.

 

Do Cadeiral SC, pg. 195a.jpg

Op. cit., pg. 195

Esta figura é das mais notáveis do Cadeiral, pela nobreza do seu porte, pelo bem concebido da sua composição, pela justeza da sua atitude e pela admirável execução.

De farta cabeleira que cai sobre os ombros, cofia com a mão direita as longas barbas onduladas, enquanto na mão esquerda empunha um alfange, cuja bainha é sustida por uma cadeia de elos retangulares, dos quais, na frente, faltam alguns já anteriormente ao último douramento. Da cintura pende uma bolsa, com uma só borla das duas ou três que teria. Esta bolsa é semelhante a outra a que já me referi em artigo anterior, e indica pessoa de distinção.

Quanto ao alfange, não é muito vulgar a sua forma tão aparatosa. A bainha, em forma de como, vai alargando para o fundo, e é reforçada por três estrias salientes, que no original seriam metálicas. Num relevo da igreja de S. Sebaldo, em Nuremberg, de 1499, representando a prisão de Jesus, um soldado tem suspenso um alfange também curvo, mas a bainha não alarga para o fundo (reproduzido in Gerhard Ulrich, «SChatze deutscher Kunst», München, 1972, pág. 58). Nos primitivos portugueses, designadamente nas representações dos Mártires de Marrocos (de Francisco Henriques e do Mestre do Retábulo de Setúbal), aparecem alfanges brandidos por soldados mouros, o que leva a supor que também esta figura do Cadeiral representará um mouro.

Pereira, A. N. Do Cadeiral de Santa Cruz. 2.ª edição. Introdução de Nunes Pereira, Abertura de Anselmo Ramos Dias Gaspar e Prefácio à segunda edição de Marco Daniel Duarte. 2007. Coimbra, Câmara Municipal. Pg. 163-164 e 193-194.

 

 

 

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por Rodrigues Costa às 20:03

Quinta-feira, 19.01.23

Coimbra: Cadeiral de Santa Cruz 3

A complementar a divulgação desta obra, dos textos de Monsenhor Nunes Pereira, escolhemos alguns daqueles que, em nossa modesta opinião, mais nos impressionaram.

Do Cadeiral SC  pg 31a.jpg

Op. cit., pg. 31

Da vida monástica de Santa Cruz de Coimbra resta o seu famoso cadeiral, uma das mais belas e curiosas peças da escultura em madeira do século XVl em Portugal.

O cadeiral esteve primeiro na capela-mor, antes de construído o coro alto. Feito este, para lá foi mudado o cadeiral, em 1531, sendo encangado da obra Francisco Lorete, escultor francês, que também foi incumbido de acrescentar mais catorze cadeiras, «oito grandes e seis pequenas, da obra e maneira das que são feitas», segundo reza o contrato publicado pelo cónego Prudêncio Garcia.

As anteriores, acabadas em 1513, são obra de Machim, cujo estilo é ainda gótico. As outras denunciam um artista da renascença, muito embora Francisco Lorete, em obediência ao contrato, se esforçasse por imitar a obra de Machim.

O «Inventário Artístico» assinala a parte de cada um dos autores. A começar do lado da frontaria da igreja, até ao tambor que marca o arranque das nervuras da abóbada, é de Machim; daí para diante é de Lorete.

Além da diferença de estilo, há na obra de Machim uma nota curiosa: a aplicação de motivos animais tirados do Fabulário. Assim, por exemplo, «A Raposa e as Uvas», «A Raposa e a Cegonha», das Fábulas de Fedro. Esses motivos encontram-se na face inferior dos assentos, só visíveis quando estes estão levantados.

Do Cadeiral SC, pg. 61a.jpg

Op. cit., pg. 61

O desenho aqui apresentado representa uma figura de homem sentado à porta de uma pequena casa de estilo nórdico e ornamenta o painel da cadeira que está fronteira àquela que tem o tocador da cítara.

A figura tem os braços levantados, um mais do que o outro como o tocador de cítara, e como este também não tem mãos. 0 rosto está bastante carcomido, mal se distinguindo o nariz e os olhos. À frente nota-se que havia qualquer elemento, que não se sabe o que fosse, por ter sido quase totalmente desfeito pelo caruncho. Mas, dada a posição dos braços, pode admitir-se que se tratasse de um instrumento, por ventura um tambor. É uma hipótese, apenas.

Outras hipóteses podemos ainda considerar.

A primeira é que se tratará de Santo António, com a cabana que para ele mandou fazer o conde Tiso, em Camposampiero, a duas milhas ao norte de Pádua. O conde tinha na sua propriedade um espesso bosque, e no centro deste uma grande nogueira. Entre os seis braços abertos da majestosa árvore, foi feita uma cabana para Santo António escrever os seus sermões e meditar; dos lados, dois cubículos, um para Fr. Lucas Belludi e outro para Fr. Rogério (cf. P.e Rolim 0. F. M., «Santo António de Lisboa», Lisboa, 1931, pág. 162, e a bibliografia aí citada), (Iconographie de L´ Árt Chétien, P. U. F., Paris,1958, Tomo III, pág.118).

A mais antiga representação desta cena, que para o caso não importa que seja verdadeira ou lendária, é de 1490, um quadro de Lazzaro Sebastiani na Academia de Veneza (Louis Réau, op. cit., loc. cit.).

O facto de Santo António estar intimamente ligado ao mosteiro de Santa Cruz, onde estudou, toma muito plausível esta interpretação. Embora Louis Réau afirme que até ao século XV o culto de Santo António esteve localizado em Pádua, e que só a partir do século seguinte ele se tomou o santo nacional dos Portugueses, não repugna admitir que em Santa Cruz ele tivesse culto antes dessa data. Uma coisa é certa: Em 1531 já o «Breviarium» de Santa Cruz, a 13 de Junho, insere o oficio de Santo António, cujas nove lições resumem a sua vida.

Mas aventamos ainda outra hipótese, neste difícil desbravar de terreno. É esta:

Entre as parábolas evangélicas há uma que se refere ao servo vigilante, que espera a vinda do seu senhor, para prontamente lhe abrir a porta (Mat., 24, 42-51; Luc., 12, 35-47).

E basta de conjeturas. Apenas acrescentaremos que se devia estudar a maneira de obstar ao desfazer da graciosa escultura, como de todo o conjunto.

 

Pereira, A. N. Do Cadeiral de Santa Cruz. 2.ª edição. Introdução de Nunes Pereira, Abertura de Anselmo Ramos Dias Gaspar e Prefácio à segunda edição de Marco Daniel Duarte. 2007. Coimbra, Câmara Municipal. Pg, 31-32 e 61-62.

 

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por Rodrigues Costa às 10:52

Quinta-feira, 12.01.23

Coimbra: Do Cadeiral de Santa Cruz 2

Na parte final do seu texto o Doutor Marco Daniel Duarte, aborda o tema O que contém e o que falta ao cadeiral de Nunes Pereira. Um Génesis sem Apocalipse, salientando este conceituado investigador que Augusto Nunes Pereira não quis traçar com exaustividade todas as análises que a historiografia permite a propósito do cadeiral de Santa Cruz. Isto mesmo se depreende das suas próprias palavras que com este sentido semeia ao longo das entradas.

A honestidade do autor não deixa que queiramos ver no seu livro mais do que uma reunião de textos redigidos para um fim específico e por isso denunciadores dessa primeira finalidade.

Publicados em forma de colunas no periódico diocesano, os textos têm obrigatoriamente de ser curtos, porque submetidos às regras que o público jornalístico exige, mas que também hoje serão, no entanto, um valor maior no que concerne à divulgação dos méritos da arte de eras passadas, pelo que o leitor pode aceder, sem desânimo, as breves descrições dos pormenores de uma obra de arte muito complexa.

Mais adiante acrescenta que Ninguém como Augusto Nunes Pereira terá olhado de tão perto para o cadeiral de Santa Cruz, pelo menos com o intuito de registar esse olharNão afirmamos pelo facto de qualquer observador ter, obviamente, uma visão diferente da obra que observa, mas porque efetivamente o cadeiral crúzio foi exarado por Nunes Pereira como quem revela uma fotografia, com arguta minudência de cristalizar os sentidos que parte da artística paisagem encerra.

NP, o Artista incansável.jpgNunes Pereira, o Artista incansável

Importa recordar que Marco Daniel refere, na página 23, a existência de um terceiro escultor do cadeiral, João Alemão, ao afirmar que é De lamentar é o facto de Augusto Nunes Pereira não ter desenhado, com o risco e com as palavras, tantas outras figurações, nomeadamente as do coroamento e assim analisar as representações contidas na totalidade do lenho de carvalho artisticamente trabalhado por Machim, João Alemão e Francisco Lorete.

Já perto do final do seu texto arco Daniel sublinha que o cadeiral de Santa Cruz não é apenas uma das mais importantes obras de arte de um país. Ele foi palco de uma história cultural, institucional, política, religiosa e, antes destas, litúrgico-musical. Nunes Pereira olhou-a, viu-a, interpretou-a e, não raras vezes, reinterpretou-a.

Do Cadeiral SC, pg. 189.jpg

Op. cit., pg. 189

 Estamos convencidos de que, depois dos seus artistas e artificies, ninguém como Nunes Pereira – também ele um artífice e também ele artista – dedicou tantas horas ao cadeiral de Santa Cruz:  horas de minuciosa observação para lhe desvendar os traços; horas de pensamento para lhe desvendar os entranhados sentidos que as formas encerram.

Acrescenta ainda o investigador. Embora não se tenha dedicado em exclusivo, ao estudo histórico de obras de arte, Augusto Nunes Pereira ficou associado a descobertas historiográficas muito importantes e, diríamos mesmo, emblemáticas … merece sempre registo o facto de que data do celebrado púlpito da igreja de Santa Cruz

1521, data descoberta pelo Pe. Nunes Pereira.jpg

Datação do púlpito da igreja de Santa Cruz, Desenho de Nunes Pereira

 … importantes passos na inventariação dos bens artísticos da Diocese de Coimbra para acrescentar que se dedicava … a desenhar, de forma quase compulsiva, numa espécie de ‘viciosa virtude’, tudo o que povoava o seu viver.

 Por último, importa ainda recordar que a localização primitiva do cadeiral foi a capela-mor, na parte reservadas aos cónegos, separada por um gradeamento da parte aberta aos fiéis. A sua forma era em U, aberto para o altar.

Igreja de Santa Cruz, ainda com o gradeamento..jpg

Igreja de Santa Cruz, capela-mor ainda com o gradeamento.

Quando o rei D. Manuel I determinou a demolição da igreja românica e a construção da igreja manuelina, bem como dos túmulos dos primeiros reis, o cadeiral foi mudado, em 1531, para o coro alto da igreja, onde hoje o podemos admirar.

 Pereira, A. N. Do Cadeiral de Santa Cruz. 2.ª edição. Introdução de Nunes Pereira, Abertura de Anselmo Ramos Dias Gaspar e Prefácio à segunda edição de Marco Daniel Duarte. 2007. Coimbra, Câmara Municipal.

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por Rodrigues Costa às 09:52


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