Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Na preparação desta série de entradas, ao concluir a leitura do livro Do Cadeiral de Santa Cruz, 2.ª edição datada de 2007, de Monsenhor Nunes Pereira, desabafei para mim mesmo: quanto mais aprofundo o conhecimento sobre a sua obra mais admiração tenho pelo Artista!
Do Cadeiral de Santa Cruz, capa
O P.e Anselmo Ramos Dias Gaspar na Abertura desta obra conta a história do surgimento da primeira edição.
De 1977 a 1981, Mons. Nunes Pereira … deu-se ao labor de estudar cada um dos motivos esculpidos por Machim e por Lorete, desenhando à pena, minuciosamente, cada um deles … resolveu, a partir de outubro de 1978, publicar os seus desenhos, com a respetiva explicação iconográfica, no “Correio de Coimbra” … Muitos foram os leitores, alguns deles com conhecimento na matéria, sugeriram ao padre-artista que reunisse em volume, a série dos apreciados artigos … com o apoio da paróquia de Santa Cruz, a obra foi publicitada em 1984.
Um dos leitores que fez aquela sugestão foi o Professor Manuel Lopes de Almeida, como se depreende da carta publicada no prefácio da primeira edição.
Carta do Professor Doutor Manuel Lopes de Almeida, datada de 22 de dezembro de 1978.
O livro, nas suas mais de duzentas páginas é, ele próprio, uma verdadeira obra de arte, resultante de um gigantesco trabalho realizado pelo Autor.
Op. cit., pg. 37
Acresce que a obra, nesta edição, é enriquecida com um Prefácio à segunda Edição, da autoria do Doutor Marco Daniel Duarte.
Ali e num primeiro tempo que intitulou, O cadeiral de Santa Cruz, obra de arte do presente construída no passado, começa por sublinhar que o cadeiral do mosteiro de Santa Cruz, ex-libris da casa monástica que o abriga, ex-libris da cidade do Mondego e, não menos importante, ex-libris da própria história da arte portuguesa, é o mais antigo cadeiral que trespassou eras históricas e chegou, mais ou menos incólume, à pós-contemporaneidade.
Cadeiral de Santa Cruz, na atualidade. Foto Augusto Ferreira
Levantado, no segundo e terceiro decénios de mil e quinhentos, como grande móvel para enquadrar um dos esteios mais importantes dos habitantes de um complexo monacal, foi vivido pelos cónegos regrantes de Santa Cruz como um especial lugar até ao apartamento destes do mosteiro. Continuou, nas datas seguintes, a ser vivido no meio de vicissitudes várias e, porque toda a obra de arte se faz eternamente presente, ele é arte de hoje, sustentando ainda significado para os que habitam o tempo presente.
Ao longo de um pouco mais de três séculos, sucessivas gerações de religiosos ali tomaram assento para cumprirem um dos fundamentais pilares da instituição conventual que, juntamente com o altar, dá o sentido litúrgico a uma vida de canonicato regular.
Pedro de Cristo, cónego regrante de Santa Cruz, compositor português do Renascimento. Ele é um dos mais importantes polifonistas portugueses dos séculos XVI e XVII. Acedido em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_de_Cristo
Segundo o rito vivencial do catolicismo monástico, mas também, “mutatis mutandis”, catedralício, o coro é, por excelência, o lugar do mais puro louvor, onde escorrem horas em repetições de orantes melopeias, substanciadas em cantochão simples ou em “alternativo” com as polifonias que, no caso de Santa Cruz, eram, inclusivamente, ali nascidas ou com a voz do órgão que, desde muito cedo, também naquele espaço religioso havia entrado.
Pereira, A. N. Do cadeiral de Santa Criz, 2.ª edição. Introdução de Mário Nunes. Abertura de Anselmo Ramos Dias Gaspar. Prefácio à segunda Edição, de Marco Daniel Duarte. 2007. Coimbra, Câmara Municipal.
O processo de fixação e estruturação do território não foi espontâneo nem casual, uma vez que obedeceu à lógica da implantação das Ordens e Comunidades religiosas e fixação das suas agregações em porções de terreno delimitados por cercas.
A regra de localização das capelas e igrejas foi ditada ao longo da via principal, aquela pela qual “todos” passavam, podendo assim fazer cumprir as suas obrigações de assistência no apoio aos peregrinos e de quem mais precisasse. Assim, o arrabalde passou a ser definido pela colocação de igrejas ao longo do eixo viário, direcionando todo o espaço urbano. Implantaram-se quatro templos: Santa Justa, S. Tiago, S. Bartolomeu e o convento Crúzio.
Os conventos foram as grandes estruturas organizadoras do arrabalde, tendo a sua fundação gerado importantes aglomerações, dentro de novas circunscrições religiosas. O casario crescia de forma compacta em torno dessas igrejas paroquiais.
Planta de Coimbra dos finais do século XVIII. Autor não identificado.. Fonte: “a Sofia. Primeiro episódio da reinstalação moderna da Universidade portuguesa”, Walter Rossa in Monumentos. Nº25. Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Setembro 2006. p.16. Op. cit., pg. 31
Destes espaços abertos nasceu uma tipologia urbanística que vive ainda nos nossos dias: o terreiro e o adro sempre foram espaços ancestrais de encontro e troca na cidade medieval. Poder-se-á dizer que são um elemento espacial identificador da cultura citadina. Os aglomerados populacionais reuniam-se à volta de uma paróquia como suporte institucional e espiritual da vida em comunidade. Atualmente, os largos fronteiros das igrejas ainda são palco de manifestações religiosas e culturais.
Largo de Sansão, hoje Praça 8 de Maio. Inícios do séc. XX
Praça do Comércio actual, após a remodelação em 2002. Fonte: BOOKPAPER – Publicidade e Artes Gráficas, Lda. in Coimbra Através dos Tempos, 2004, p.151. Original existente na Imagoteca da Biblioteca Municipal de Coimbra.
Dentro do sistema urbano, as Ordens religiosas dividiam-se e tinham funções bem específicas. A Ordem dos Agostinhos, implantada na parte alta da cidade, dava um apoio importante do poder real no processo da Reconquista e servia como referência dessa organização espacial. Posteriormente, deu-se a explosão urbanística fora das muralhas e o auge do processo de consolidação territorial, onde as ordens mendicantes – Dominicanos e Franciscanos – reforçariam o vigor e o entusiasmo burguês no desenvolvimento comercial das cidades. As ordens revelaram-se uma instituição que regrava toda a “política comunal das cidades”.
Enquanto arrabalde, a zona da Baixinha era considerada um bairro fora de portas, pertencente ao subúrbio da povoação da cidade alta, fora dos limites administrativos, mas com forte vocação mercantil. Situado entre a calçada romana e o rio, a zona fixava todas as atividades relacionadas com o comércio. Os mercadores instalavam-se ao longo da via, fora do perímetro amuralhado, onde os produtos não estavam sujeitos a taxas e onde havia espaço mais amplo, mais barato e de maior acessibilidade. O percurso mais direto entre a ponte e a porta da cidade foi o ponto propício ao início do fluxo de atividade comercial, donde resultou a chamada Rua dos Francos. Era o local onde se cobravam os direitos de “portagem”, quando as mercadorias ficavam dentro da cidade, ou de “passagem” quando estas apenas transitavam dentro dela Daí resultar a conformação de um “Largo da Portagem” com continuação da rua a que, hoje, designamos de Ferreira Borges.
Rua Ferreira Borges. Meados do século XX.
Durante toda a época medieval houve um progressivo desenvolvimento comercial da zona ribeirinha, potenciando a sua definição e consolidação urbana.
Ferreira, C.C. Coimbra aos pedaços. Uma abordagem ao espaço urbano da cidade. Prova Final de Licenciatura em Arquitectura pelo Departamento da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, orientada pelo Professor Arquitecto Adelino Gonçalves. 2007, acedido em https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/13799.
Logo que chegou a Coimbra a notícia da aclamação de D. António em Santarém, [segundo alguns autores em 19 de junho de 1580] a cidade anotinou-se, procurando proclamar o novo rei. O movimento não foi avante, por oposição do capitão-geral nomeado pelos governadores do reino, de nome Pero Guedes.
… A noticia da adesão de Setúbal, ou a própria ordem para a cidade o aclamar, chegou a Coimbra no dia 30 de junho, pelas ave-marias. De imediato, o povo manifestou-se na rua, obrigando a câmara municipal a decidir-se. Com efeito, a novidade foi anunciada à cidade pelo festivo repicar dos sinos, seguindo-se a convocatória dos populares dentro de um simbolismo de cerimónia de aclamação régia através da materialização possível. Um meirinho do corregedor, montado a cavalo e hasteando a bandeira do ofício dos oleiros, que um vizinho lhe havia cedido, começou a percorrer a cidade, dando vivas, em altas vozes, a D, António, rei de Portugal.
Seguiram-no grande parte da gente miúda, incluíndo mulheres. O alvoroço dirigiu-se para os Paços do Bispo, onde se encontrava o capitão-geral de Coimbra e comarcas, estando ao tempo presente o corregedor, certamente a ponderarem a nova situação. Contra as portas que entretanto foram fechadas, «atirararam os rapazes e mulheres tantas pedras que depois encheram duas carradas». Os homens, por sua vez, mobilizaram-se e, em número de 500, «bem armados de escopetas, bestas e outras armas» rondaram a cidade toda a noite. No dia seguinte, não obstante as ordens dadas pelo capitão-geral ao capitão da freguesia de Santiago, espaço populoso de mesteirais, para prender, com os seus homens, o cabeça do tumulto da vespera, os soldados convocados, que também eram povo, encaminharam-se para acâmara municipal, sendo eleito novo corregedor, dado o anterior ser partidário de Castela. A escolha acabou por recair no cidadão Acúrsio de Mascarenhas, «homem idiota e não letrado», na qualificação da narrativa que estamos a seguir. Corregedor que se teria depois dirigido a casa do conservador da Universidade para o prender, não obstante a intenção inicial de ser ele o novo corregedor, acabando o povo por atacar novamente as casas do capitão-geral, atuando «de noite, repicando os sinos e apelidando povo com muitos homens armados», obrigando-o a fugir da cidade e a recolher-se à proteção dos governadores do reino, estantes em Castro Marim.
D. António, rei de Portugal. Imagem acedida em: http://velhariasdoluis.blogspot.com/2019/01/d-antonio-prior-do-crato.html
A ação popular, que havia chamado a si o poder da justiça, elegendo em nome do rei o corregedor, foi legitimada por uma reunião camarária datada de um de julho [de 1580], à qual estiveram presentes «cidadãos, mesteres e povo», seguida de uma assembleia que procedeu à aclamação formal de D. António
Reall, Real, por el Rei Nosso Señor Dom Antonio de Portugal
Decidimos acrescentar ao texto citado a transcrição – da responsablidade da Dr.ª Paula França – da parte essencial da ata da sessão de Câmara atrás referida.
Pormenor de onde consta o pregão de aclamação Reall, Real, por el Rei Nosso Señor Dom Antonio de Portugal In: AHMC/Vereações nº 23, 1579-1585, fl. 127-131
Páginas com parte das asinaturas dos participantes na aclamação. In: AHMC/Vereações nº 23, 1579-1585, fl. 127-131
[fl. 127v] Ao primeiro de Julho de oytenta anos em esta cidade de Coimbra e camara della onde estavão juntos os cidadãos e mesteres e povo juntos todos ao adiante asinados ha hi foi levado Francisco Cardoso conservador nesta Universidade ao quall por o licenciado Pero do Sovera l que servia de coregedor ser sospeito a este povo e lyberdade deste reyno de Portugal e se dizer [fl. 128] que favoresia as cousas de Castella em perjuizo de Portugal e fazer cousas com que estrovava nam querer dar ordem com que se enlegese o Señor Dom Antonio Rey de Portugal que estava aceytado e enleito em Lyxboa cabeça deste reyno e em Santarem e outras partes e este povo por desejar enleger rey e señor pera nos defender por quanto estava este Reino[fl. 128v] cerquado de inimigos, dygo de contrairos e muitos lugares e cidades deste reino ja tomadas dycerão que expedirão ao dito coregedor em nome de Sua Alteza e bem deste reino do dito carrego e asentarão que se lhes não obedeca, enlegerão logo em nome do dito señor Rey ao dyto conservador <Acursio Mascarenas> por Coregedor desta comarqua e lhe entregaram a vara do dito carrego de coregedor que lhe [fl. 129] meterão nas mãos que elle aceytou em nome de Sua Alteza e jurou aos Santos Evangelhos em que <elle > poos sua mao e disse ser obediente e de o reconhecer por Rei e Señor e por boom e leal vasalo e asi disse mais o povo que ontem a noite alevantarão e reconhecerão ao dito señor Rei alevantando ho por <Rei > o povo oje tornarão a Camara e alevantarão ao dito señor por Rei [fl. 129v] dizendo Reall, Real, por el Rei Nosso Señor Dom Antonio de Portugal, de que todo mandarão fazer este auto que asinaram e eu sprivão da camara jurei outrosi de obedecer o dito señor e de reconhecer por Rei e señor e asi o jurou o povo e jurarão de lhe ser obedientes ao dito señor Rei, co [fl. 130] mo leales vasalos que tambem o jurarão aos Santos Evangelhos, digo eu enlegerão por coregedor o doutor Acursio Masquarenhas, e risquei onde dizia conservador, e o dito licenciado Francisco Cardoso aceitou a vara da mão do povo, em nome de Sua Alteza de seu officyo de conservador, que tambem asinou e isto [fl. 130v] dise ao povo que fazia por o capitão <Pero Gedes> ser contra a liberdade do povo.
AHMC/Vereações, n.º23, 1579-1585.
Oliveira, A. Movimentos Militares em Coimbra no Tempo da Realeza de D. António. (1580-1595). In: Pedaços de História Local. Vol. I. 2010. Coimbra, Palimagem, pg. 333-348
«Las mas ciudades del Reyno obedecian à don Antonio, y à donde mas se celebrava su nombre era en Coimbra» (Cinco libros de Antonio de Herrera de la Historia de Portugal […] Madrid. En casa Pedro Madrigal, 1591, fl. 01 v.)
António, filho ilegítimo do infante D. Luís, irmão de D. João III e filho segundo de D. Manuel, foi eleito rei de Portugal em Santarém no dia 19 de Junho de 1580, em circunstâncias bem conhecidas. Era então Prior do Crato, dignidade que pouco depois perdeu em favor do primeiro vice-rei de Portugal, e por ela ficou conhecido na historiografia portuguesa por lhe sido confiscada, tanto pelos reis filipinos como pela dinastia de Bragança, a imagem da sua realeza, pela qual lutou até à morte no exílio, ocorrida em 1595, e mesmo para além da morte, através da sucessão.
Como é sabido, D. António encabeçou a resistência do país à união de Castela, colocando-se à frente da força militar que procurou opor-se à conquista de Portugal por Filipe II … [este] foi forçado a movimentar o exército e a marinha … Sem este recurso às armas, como tem sido reconhecido, Filipe II, muito provavelmente não teria unido Portugal e Castela.
… Uma das cidades onde D. António tinha adeptos fervorosos, «onde mais se celebrou o seu nome», era Coimbra. Aqui, no Mosteiro de Santa Cruz, havia obtido os graus de bacharel, mestre e licenciado em Artes e recebido as ordens de subdíacono.
… Não admira, assim, que o Prior do Crato, lugar em que sucedeu à morte de seu pai, ocorrida em 27 de novembro de 1555, tivesse criado simpatias em Coimbra ao tempo do seu levantamento como rei, as quais se não manifestaram apenas dentro do Mosteiro de Santa Cruz, o qual, por sinal, lhe havia passado, em 2 de junho de 1558, carta de irmandade. Com efeito, uma boa maioria de professores e estudantes da Universidade, para além de populares, estiveram a seu lado quando foi eleito rei. Já antes, em 1579, ao tempo dos conflitos de D. António com o cardeal e rei D. Henrique, seu tio, que em novembro deste ano o desnaturalizou e o mandou sair do reino, se havia refugiado em Coimbra, no Mosteiro de Santa Cruz.
D. António, rei de Portugal. Imagem acedida em: https://www.google.com/search?q=d.+ant%C3%B3nio+prior+do+crato
É perfeitamente credível que também por esta altura se tivessem prefigurado apoios, pelo menos à sua candidatura ao trono, havendo D. António procurado a simpatia dos estudantes.
Oliveira, A. Movimentos Militares em Coimbra no Tempo da Realeza de D. António. (1580-1595). In: Pedaços de História Local. Vol. I. 2010. Coimbra, Palimagem, pg. 333-348
No início do século XX o plano estava quase completo. O Matadouro implantou-se no limite norte da Quinta e foi inaugurado em 1897. O mercado foi ampliado e construído o Pavilhão do Peixe segundo projeto de 1901, do Arquiteto Silva Pinto. A estrada de ligação a Celas foi aberta através da rua Lourenço de Almeida Azevedo. O Jardim Público, aproveitando o antigo Jogo da Bola, foi denominado Parque de Santa Cruz e passou a ser utilizado por toda a população, que elegia aquele espaço para a realização de várias festas populares. O parque infantil foi construído na década de trinta, junto à praça D. Luís e denominado o Ninho dos Pequeninos. As águas da quinta foram canalizadas e conduzidas para o chafariz do largo da cadeia. E o planeado boulevard, ícone do urbanismo do século XIX, foi finalmente construído em 1906.
Para além dos equipamentos projetados, o novo bairro permitiu implantar a Escola Central do Ensino Primário (1905), o Teatro-Circo do Príncipe-Real (1892), a Central de Inspeção de Incêndios (1891), a Manutenção Militar e a Associação Comercial e Industrial (1909).
Concluindo
A extinção das corporações religiosas e a consequente desamortização dos seus bens permitiu ao município de Coimbra delinear uma estratégia concertada de modernização da cidade. Numa primeira fase procedeu à simples ocupação dos edifícios e terrenos desocupados, sem relevantes obras de adaptação às novas funções, mas sem descurar a organização geral da cidade. Num segundo momento, consciente das necessidades de cada função, promoveu obras de adaptação ou em casos mais radicais demoliu o existente, como no caso do edifício dos Paços do Concelho.
A maturação da experiência administrativa e a efetiva transformação da cidade contribuíram para um novo entendimento que esteve na base do primeiro levantamento topográfico da cidade, encomendado aos irmãos Goullard em 1873. Conhecendo a cidade, o município conseguiu avançar para lá dos limites cedidos e empreender a primeira operação de crescimento da cidade desde a abertura da Rua da Sofia no século XVI. Aproveitando os terrenos da antiga Quinta de recreio do Mosteiro de Santa Cruz, empenhou-se numa operação ambiciosa e marcou a entrada de Coimbra na era da modernidade, inaugurando de forma consciente o moderno planeamento urbano na cidade.
Fig. 11. Planta da autora de reconstituição da execução do Plano de Melhoramentos da Quinta de Santa Cruz a partir do levantamento da cidade de 1934
Fig. 12. Fotografia vertical do Bairro de Santa Cruz em 1934. Arquivo Histórico das Forças Armadas
Calveiro, M.R. Apropriação e conversão do Mosteiro de Santa Cruz. Ensejo e pragmatismo na construção da cidade de Coimbra. In: Cescontexto, n.º 6, Junho 2014. Coimbra, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Pg. 227-240. Acedido em
Em janeiro de 1885 a Quinta foi adquirida e convidados o engenheiro Adolfo Ferreira Loureiro e o Dr. Júlio Henriques para elaborarem um Plano de melhoramentos da Quinta de Santa Cruz, a primeira expansão da cidade, à imagem da Europa. Em junho desse mesmo ano foi apresentado o Plano dos Melhoramentos da Quinta de Santa Cruz.
Concebido com claras influências da Avenida da Liberdade de Lisboa (Silva, 1985; Macedo, 2006: 126), propunha um Boulevard com 50 m de largura que partia do Mercado D. Pedro V e que terminava numa praça quadrangular confinante com o Jardim Público que correspondia ao antigo Jogo da Bola dos frades crúzios. A partir dos cantos da praça rasgava simetricamente três avenidas, uma para Celas, outra para o caminho de Santa Anna, outra em direção ao Bairro de S. Bento e, a partir dos lados, traçava uma em direção aos arcos de S. Sebastião e outra em direção a Montes Claros.
Fig. 9. Planta da autora de reconstituição dos limites da Quinta de Santa Cruz, de acordo com a Representação ao Rei de 18 de fevereiro de 1884 “do mercado d Pedro V até montes claros a norte e quase à entrada do lugar de Cellas, subúrbios de Coimbra, vem pelo nascente e sul proximidades de Sant'Ana até à rua dentre muros onde é a sua principal entrada”
Fig. 10. Planta da autora de reconstituição do Plano de Melhoramentos da Quinta de Santa Cruz delineado por Adolfo Loureiro em 1885
Para além do traçado, Adolfo Loureiro, imbuído da lógica operativa dos engenheiros, elaborou também uma estratégia de implementação. Como primeira medida, e para facilitar a ocupação, propunha o início dos trabalhos pela ligação aos Arcos de S. Sebastião e dividia os terrenos em três classes de preço de acordo com a localização. No entanto, e ao contrário do que era habitual, não criou lotes rigidamente traçados, a dimensão dos lotes dependia da disponibilidade financeira dos compradores. Introduziu assim um novo modelo de gestão integrado na lógica liberal de flexibilidade de mercado.
As novas ruas, amplas, arborizadas e infraestruturadas foram inauguradas no final de 1889. No entanto, a Avenida Sá da Bandeira, o boulevard projetado não tinha sido construído efetivamente. A terraplanagem do vale revelou-se demasiado dispendiosa e optou-se por adiar a construção do boulevard e aproveitar os materiais das terraplanagens da abertura das ruas para sem grande esforço regularizar o vale. Em sua substituição foi aberta apenas uma rua de 15 metros de largura.
Calveiro, M.R. Apropriação e conversão do Mosteiro de Santa Cruz. Ensejo e pragmatismo na construção da cidade de Coimbra. In: Cescontexto, n.º 6, Junho 2014. Coimbra, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Pg. 227-240. Acedido em
Entretanto, em 1872, com o avultar das obras relativas à viação municipal e pretendendo encetar a reforma de toda a frente ribeirinha, o município, encabeçado, por Lourenço de Almeida Azevedo, consciente do papel dos engenheiros nas reformas urbanas abriu um concurso para contratação do primeiro engenheiro municipal. No ano seguinte foi contratado António José de Sá, responsável pelo Plano de Melhoramentos do Largo da Portagem e das margens, mas que abandonou o lugar no ano seguinte.
Dois anos depois, novamente com Lourenço de Almeida Azevedo na presidência, deliberou-se contratar um novo engenheiro municipal, Alexandre Simões da Conceição a fim de estudar o projeto para um novo edifício dos Paços do Concelho, demolindo parte do antigo Mosteiro de Santa Cruz. A obra foi muito contestada pela imprensa local que reclamava contra o seu elevado custo e contra a destruição de um edifício histórico, mas para além das polémicas teve um processo problemático, com as obras a iniciarem-se antes da aprovação do projeto e com sucessivas alterações que aumentaram em muito os custos e as dificuldades da obra. Não obstante, no dia 13 de agosto de 1879, a vereação reuniu pela primeira vez no novo edifício, mas as obras arrastam-se até 1886.
No entanto esta intervenção, quer pela contestação que enfrentou, quer pelos avultados empréstimos que requereu, preconizou uma mudança de atuação do município, consciente da necessidade de se apoiar em técnicos para conduzir corretamente o desenvolvimento da cidade.
Plano de Melhoramentos da Quinta de Santa Cruz
Na mesma época, e firmando a consciência de planear com recurso aos novos meios e conhecimentos técnicos, foi mandada elaborar a Planta Topographica da Cidade de Coimbra. Executada entre 1873 e 1874 e desenhada à escala 1:500 em 19 lâminas de grandes dimensões (0,80x 1,25), constituiu o primeiro trabalho de cartográfica científica de Coimbra (Fernandes, 2011: 7), e até à década de 30 do século XX foi a base de todo o planeamento e intervenção na cidade.
Fig. 8. Composição da autora de 8 das 19 folhas que compõem a Planta Topographica da Cidade deCoimbra, por Francisco e Cesar Goullards
Como referimos, em 1843, a abertura da rua de ligação entre a Alta e a Baixa, atravessando o Pátio de Santa Cruz e o Vale da Ribela, ultrapassou pela primeira vez os limites seculares do antigo Mosteiro Crúzio. Depois desta rua foi implantado o Cemitério na Quinta da Conchada, para lá da cinta das antigas cercas e começou timidamente a urbanização do Montearroio em direção ao cemitério, mas à parte deste reduzido crescimento a cidade mantinha-se densamente concentrada na Baixa e na Alta. A referida estrada, aberta com 24 palmos para a circulação de carruagens entre a Baixa e a Alta, mantinha-se limitada pela Quinta de Santa Cruz, adquirida por um particular e pela cerca dos Jesuítas, entregue aos Hospitais da Universidade, não deixava antever qualquer possibilidade de crescimento urbano.
Foi o Presidente Lourenço de Almeida Azevedo quem anteviu a importância estratégica que a Quinta de Santa Cruz detinha, articulando a Alta e a Baixa, com uma área superior a qualquer um dos antigos bairros, e iniciou o processo para a compra e urbanização da Quinta.
Lourenço Almeida Azevedo
Para além da ligação entre a Alta e a Baixa, o plano esboçado pelo presidente previa o alargamento do mercado D. Pedro V, a construção do novo matadouro, a construção do troço da estrada real nº 48 entre Celas e a Baixa, a criação de um Jardim público e de um jardim-de-infância, um espaço para a Feira de Santa Clara e para a feira anual de S. Bartolomeu e, finalmente, aproveitar as águas da Quinta para o abastecimento de água da cidade.
Mas o processo não foi linear. O município, perante um investimento tão avultado, solicitou a expropriação da Quinta em fevereiro, mas no mês seguinte temendo que a mesma não fosse enquadrada no decreto de lei de 11 de maio de 1872, requereu antes autorização para aumentar o valor do empréstimo a contratar e concorrer à compra da Quinta.
Calveiro, M.R. Apropriação e conversão do Mosteiro de Santa Cruz. Ensejo e pragmatismo na construção da cidade de Coimbra. In: Cescontexto, n.º 6, Junho 2014. Coimbra, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Pg. 227-240. Acedido em
A implantação dos novos equipamentos nos terrenos do extinto Mosteiro de Santa Cruz
Desde 1836 que as várias repartições públicas e a câmara municipal tinham sido instaladas no antigo mosteiro, mas faltava instalar o mercado e, em 1840, algumas vendedeiras foram transferidas para o Pateo de Santa Cruz. Esta medida foi mal aceite pelas próprias vendedeiras, que contestavam a localização fora dos circuitos habituais de circulação da cidade e marcou o início de uma acesa discussão sobre a localização dos modernos equipamentos públicos.
Efetivamente, se, por um lado, a opção de reutilizar os edifícios desocupados pelas ordens religiosas era sustentada por razões de economia e de rentabilização do Património do Estado, por outro, a reforma e o saneamento do denso tecido urbano existente só seria viável com a implantação destes novos equipamentos.
Fig. 5. Planta da autora com a indicação, a verde, da localização da Horta de Santa Cruz e a laranja a localização do Largo da Sota.
Neste sentido, o processo de construção do Mercado Municipal constitui o melhor exemplo do confronto entre a estratégica pragmática da Câmara Municipal e os desejos de progresso e modernidade idealizados pela população, que se opunha ao aproveitamento dos terrenos da Horta de Santa Cruz, cedidos ao município em favor da reforma e alteamento do Largo da Sota, no interior da baixa e junto às entradas da cidade, do cais das Ameias e do Largo da Portagem.
O primeiro estudo elaborado pelo município concluía que a hipótese de implantação no Largo da Sota, pelas vultosas expropriações e pelo alteamento de toda a área, correspondia a um aumento de cerca de 30% dos custos da construção do mercado na Horta de Santa Cruz. Pese embora este acréscimo de custos, esta seria a oportunidade de ouro para se proceder à reforma urbanística da Baixa, alteando o solo e rasgando novas ruas, saneando, assim, o antigo tecido insalubre. Tudo isto explica as hesitações do município e o tempo longo até à decisão final, contudo as debilidades financeiras do concelho acabaram por ditar a solução e as obras na Horta de Santa Cruz iniciaram-se em outubro de 1866, sendo o novo Mercado D. Pedro V inaugurado no dia 17 de novembro do ano seguinte.
Fig. 6 e 7. Planta de reconstituição da autora, com a implantação do Mercado D Pedro V. Fotografia do final do século XIX do antigo mercado. Imagoteca/Câmara Municipal de Coimbra
Para além do mercado, também a implantação do matadouro, aproveitando um antigo palheiro do Mosteiro de Santa Cruz, gerou controvérsia. Era apontada a precaridade da construção, que obrigou a várias intervenções de reparação e a reduzida distância à povoação, não cumprindo os padrões de salubridade. A partir de 1866 apontou-se mesmo a necessidade urgente de construir um novo edifício noutro local, conduzindo, na década de 1880, à compra de um terreno junto ao Rio, mas a necessidade de grandes aterros foi sucessivamente adiando a construção e mantendo o existente.
A segunda metade do século XIX correspondeu a um período de forte transformação na cidade. Primeiro chegou a Mala-posta que em 1855 ligava a cidade ao Carregado, depois instalou-se a iluminação a gás em 1856, seguiram-se os equipamentos sanitários, como o cemitério construído no Alto da Conchada inaugurado em 1860 e a transferência do Hospital da Conceição para o Colégio das Artes em 1857, a primeira operação de reforma urbanística, que decorreu entre 1858 e 1866 e correspondeu ao alargamento da antiga rua de Coruche e os aterros e regularização dos cais do Mondego que começaram a ser construídos com consistência a partir de 1872 e 1873, ao mesmo tempo que se construía a nova ponte de ferro.
Neste quadro de modernização, o município revelou a vontade de construir um novo edifício para albergar a Câmara Municipal e, em 1869, solicitou à Rainha a autorização para encarregar a Direção de Obras do Distrito dos estudos necessários, mas o pedido foi recusado, lembrando a criação no ano anterior da Repartição Distrital de Obras Públicas, dependente dos cofres do concelho e a ideia foi adiada.
Calveiro, M.R. Apropriação e conversão do Mosteiro de Santa Cruz. Ensejo e pragmatismo na construção da cidade de Coimbra. In: Cescontexto, n.º 6, Junho 2014. Coimbra, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Pg. 227-240. Acedido em
O início do século XIX foi um período de grande instabilidade a nível nacional, primeiro com as invasões francesas e depois com as lutas entre liberais e absolutistas. Só a partir da década de 30, com a pacificação assinada em Évora Monte, se começaram a difundir os novos ideais de progresso que se viviam na Europa. Ao mesmo tempo foi nestas décadas que o Estado encetou a construção de uma Nação Liberal, definindo uma nova divisão e organização territorial, reformando o sistema administrativo, a justiça e o ensino. Neste contexto, interessa-nos destacar para o caso em estudo a extinção das ordens religiosas e a nacionalização dos seus bens.
… Na cidade de Coimbra, sede da única Universidade Portuguesa, esta medida teve um duplo impacto, por um lado encerrou vinte e três Colégios e obrigou à reforma do ensino, que acabou por conduzir à perda da exclusividade do ensino superior com a introdução em Lisboa e no Porto do ensino politécnico e das Escolas Médicas. Por outro, permitiu, como veremos, a modernização e o crescimento da cidade que se encontrava enclausurada entre o rio que recorrentemente invadia as ruas e edifícios da Baixa e uma cinta de colégios e mosteiros que condicionavam o crescimento da cidade.
Fig. 3. Planta da autora de reconstituição da cidade no ano de 1834, com a indicação a vermelho dos Colégios e Conventos existentes
Foram vendidos em hasta pública ou convertidos nos novos equipamentos do Estado vinte e três colégios e sete conventos dentro do perímetro [urbano] … deste conjunto destacava-se, pela sua dimensão, o Mosteiro de Santa Cruz que ocupava uma área de 3,5 hectares e possuía mais 29 hectares correspondentes à quinta de recreio, o que perfazia uma área equivalente a 2/3 do total de área urbana edificada.
Perante um número tão elevado de edifícios e terrenos desocupados dentro do sobrelotado tecido urbano, o município começou a delinear uma estratégia de modernização da cidade a partir do aproveitamento de alguns destes edifícios. Com este intuito, no dia 10 de janeiro de 1835, apresentou ao Governo uma relação dos edifícios e das cercas, cuja cedência considerava indispensável. Solicitava parte dos edifícios do Mosteiro de Santa Cruz para implantar a Câmara e a Casa dos Jurados, o Convento dos Beneditinos no bairro alto e o Colégio da Graça no bairro baixo, para transformar em quarteis, as cercas dos Jesuítas e do Colégio de São Jerónimo para a construção de um cemitério e a cerca do Convento de São Francisco para outro cemitério na margem esquerda do rio. A Quinta de Santa Cruz para parque público, um terreno na cerca de Santa Cruz para a construção do Matadouro Municipal e, por fim, a cedência da água de duas minas do Colégio de São Bento e das águas do Colégio da Sapiência para reforçar a rede de abastecimento da cidade.
Dois meses depois, a edilidade evocava também a necessidade do pátio do Mosteiro de Santa Cruz para criar o mercado público e os restantes edifícios do mosteiro para reunir no complexo crúzio todas as repartições públicas da cidade. Requeria ainda a cedência do Colégio da Estrela para instalar a cadeia pública, o Colégio de Santo António da Pedreira na Alta para albergar um hospício e reforçava o pedido já apresentado pela Misericórdia do antigo Colégio da Sapiência. Nas imediações da cidade solicitava a Quinta de S. Jorge, propriedade do extinto Mosteiro de Santa Cruz, para criar uma escola agrícola.
Da análise deste plano, verifica-se assim que o município não se limitava ao simples aproveitamento dos vazios deixados pelas corporações religiosas, mas, ainda que por razões práticas e ainda que distante das modernas noções de zonamento, gerou conscientemente um novo polo de centralidade no antigo Mosteiro de Santa Cruz, concentrando todas as funções administrativas e aliando-lhe a função comercial e o matadouro complementar.
No ano seguinte, o governo de Passos Manuel, viabilizou parte da estratégia da câmara, ao ceder à câmara os tres Edificios dos extinctos Conventos de Santa Cruz, Graça e S. José do Marianos da dita Cidade de Coimbra, afim de serem applicados - o pr.º para a Caza das Audiencias do Jury, Cadea, camara, Adm.ao do Conc.º, e do correio; o segundo p.ª servir de Aquartelamt.tº de tropa; e o terceiro finalm.te para n'elle se estabecer o Hospital de S. Lazaro.
Fig. 4. Planta da autora com a indicação dos edifícios e terrenos solicitados pelo município em 1835.
Três anos depois, a carta de lei de 30 de julho oficializou a cedência e, ainda que de forma involuntária, marcou o futuro desenvolvimento e crescimento da cidade ao fixar a obrigatoriedade de “abertura de duas ruas de communicação com o Bairro Alto, uma que conduza ao caminho da Fonte Nova, e outra ao de Monte Arroio.” Efetivamente, estas duas ligações foram mandadas executar no ano seguinte e pela primeira vez romperam os limites impostos pelo antigo Mosteiro. A primeira partia do antigo Pátio, e aproveitando o caminho dos Cónegos Regrantes, seguia junto ao limite da antiga Horta até à Fonte Nova. A segunda ligação, entre a Horta e a rua das Figueirinhas, correspondia a um declive muito acentuado e acabou por ser construída por uma escada de três lanços. Mantinha-se, contudo, a necessidade de estabelecer uma ligação para o Bairro Alto, utilizável por carruagens e, três anos depois, projetou-se e mandou-se abrir a rua pela Ribela, ou Horta dos extintos Crúzios, até às casas do extinto Colégio de S. Bento, para communicação da cidade alta com a baixa […]com a largura de 24 palmos, livres para a estrada de quaisquer marcos cunhais, soleiras e beirais dos telhados, que porventura venham a ter lugar naquele sitio, desde que a estrada se converta em rua.
Calveiro, M.R. Apropriação e conversão do Mosteiro de Santa Cruz. Ensejo e pragmatismo na construção da cidade de Coimbra. In: Cescontexto, n.º 6, Junho 2014. Coimbra, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Pg. 227-240. Acedido em
O complexo crúzio no contexto citadino
O Decreto redigido por Joaquim António de Aguiar e publicado a 30 de maio de 1834 declarava extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios, e quaisquer outras casas das ordens religiosas regulares, sendo os seus bens secularizados e incorporados na Fazenda Nacional, com exceção dos templos e das alfaias litúrgicas.
Largo da Portagem, monumento a Joaquim António de Aguiar
Na sequência desta medida, e através de um processo nem sempre muito linear, verificaram-se alterações e modificações vultuosas em torno do património fradesco, agora na posse estatal e que, no futuro, veio a passar pela transferência para as mãos de particulares ou para a pertença de instituições públicas. No que se refere a edifícios, estas últimas utilizaram-nos a seu bel-prazer, quer para alojar os serviços que se encontravam na sua dependência, quer para fins sociais ou utilitários. Acontece ainda que a fisionomia de cercas e de património construído acaba, muitas vezes, por ser alterado através da feitura de transformações e de projetos urbanísticos, por vezes, mais do que duvidosos.
Em Coimbra, no âmbito do presente trabalho e face à desamortização referida, vamos cingir-nos ao mosteiro de Santa Cruz e à quinta anexa.
A autarquia mondeguina, na reunião de 13 de maio de 1835, determinou, em cumprimento de uma ordem emanada pelo Ministério do Reino, que fosse organizada uma listagem com o nome dos conventos desamortizados existentes na cidade, bem como a descrição dos seus bens. O rol teria de especificar quais os imóveis que a edilidade pretendia, a fim de neles acomodar misericórdias, hospitais e outros estabelecimentos de utilidade pública.
Na reunião do dia 16, um dos vereadores recordava o pedido que havia sido anteriormente endereçado pela edilidade à Câmara dos Deputados, solicitando não só a cedência do pátio do Mosteiro de Santa Cruz e das lojas que o rodeavam, para que ali passasse a funcionar o mercado público, como ainda todo o restante edifício, destinado a alojar as repartições judiciais, administrativas, da fazenda, da administração do correio e similares.
Praça 8 de Maio. Antiga fachada de Sta. Cruz
A Câmara viu a sua pretensão satisfeita e, em 15 de dezembro de 1836, tomou posse dos edifícios dos extintos mosteiro de Santa Cruz e colégio da Graça, embora no documento se encontrassem exaradas cláusulas que obrigavam a estabelecer um quartel militar neste último e a instalar as repartições públicas no primeiro.
Entretanto, os serviços já alojados nos agora edifícios camarários começavam a considerar o espaço como seu, obrigando a que fossem clarificadas com rigor “as fronteiras do que fora dado à Câmara”.
A carta de lei de 30 de julho de 1839 esclarecia que lhe tinham sido concedidos os edifícios do extinto mosteiro de Santa Cruz, com exclusão da igreja e suas dependências, o pequeno laranjal, a horta e a encosta que ficam contíguas aos mencionados edifícios e terminavam na estrada pública situada na zona da Fonte Nova.
Fig. 05 – Zona do mosteiro de Sta. Cruz. [AHMC. Armário 3. Gaveta 12. Pormenor da planta da cidade de Coimbra riscada em 1834 por Isidoro Emílio Baptista].
Anacleto, R. Coimbra: alargamento do espaço urbano no cotovelo dos séculos XIX e XX. In: Belas-Artes: Revista Boletim da Academia Nacional de Belas Artes.
Lisboa 2013-2016. 3.ª série, n.ºs 32 a 34. Pg. 127-186. Acedido em https://academiabelasartes.pt/wp-content/uploads/2020/02/Revista-Boletim-n.%C2%BA-32-a-34.pdf
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.