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Quinta entrada dedicada à divulgação do livro de historiador Milton Pedro Dias Pacheco, Do aqueduto, das Fontes e das Pontes.
Segundo o que a tradição consagrou, a Fonte da Manga deve o seu nome ao monarca D. João III, que refugiado, em 1527, na cidade do Mondego em virtude de surto pestífero desencadeado na capital, esboçou na manga do seu gibão o plano do fontanário que pretendia ver erguido no claustro nascente do complexo monástico.
Claustro da Manga, na atualidade.Acervo RA
Apesar desta origem lendária, elaborada em 1541 por Francisco de Mendanha (séc. XVI), este magnífico exemplar de arquitetura da água resultou da reorganização material operada no complexo crúzio por frei Brás de Braga em 1528, um ano após a estadia régia.
Claustro da Manga c. 1870. Acervo RA
Jardim da Manga. Autor desconhecido. Acervo RA
Reconstituição digital em 3D do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra em 1834. 2022. In: Projeto S. Cruz. Acervo RA
…. Com “duzentos palmos de cõprido & quinze de largo”, o espaço claustral, um dos três existentes no mosteiro e em torno do qual se congregavam o dormitório, a enfermaria e as oficinas tipográficas monásticas quinhentistas, foi dotado de um templete de planta centralizada, com uma fonte de “agoa mu doce”, de formato circular no interior.
Sobre as oito colunas coríntias, dispostas equilibradamente entre si, assenta a abóbada rematada por lanternim e dotada, no entablamento, por oito gárgulas, número que, entretanto, se duplica aos pares no topo de cada uma das escadas, perfazendo assim dezoito peças esculpidas segundo a temática do bestiário.
Elevada numa plataforma rodeada por tanques de água e hortos ajardinados, com limões, limas, cidras e outras frutas, por entre as quais surgem quatro panos de escadas de acesso, a estrutura principal está ligada por arcobotantes a quatro torreões circundantes, de formato cilíndrico e com estreitas frestas de iluminação de vidraças coloridas.
A descrição de 1541 revela ainda que os quatro oratórios estavam dotados de portas que “sam pontes leuadiças cõ que os religiosos se fechã quando orã”. Edificados como pequenos oratórios independentes e eremíticos, cada altar fora dotado com um baixo-relevo, em calcário de Ançã, representando quatro grandes santos eremitas da tradição cristã: São João Baptista no deserto; São Jerónimo penitente; São Paulo o eremita e Santo Antão tentado pelo demónio.
De acordo com a leitura iconológica realizada por Nelson Correia Borges (1942), o fontanário da Manga está imbuído de um forte simbolismo religioso associado com a Fonte da Vida – a fons vitae –, que jorra do centro do Universo para os quatro tanques, numa clara alusão aos quatro rios do Paraíso.
…. É, no entanto, muito curiosa a nota escrita pelo cronista quinhentista que considera a obra da “fonte artificiosa” como uma das “quatro marauilhas do mundo”, ainda que tenha sido causa de muitas enfermidades entre a comunidade monástica.
…. O projeto é atribuído ao arquiteto e escultor francês João de Ruão ativo em Coimbra desde 1518. Embora persistam algumas dúvidas quanto à autoria do projeto arquitetónico é seguro o envolvimento de Ruão e seus oficiais na execução dos quatro painéis retabulares dos oratórios, trabalho feito sob a influência das gravuras de Lucas de Leyde.
…. Recorrendo aos novos mecanismos da engenharia hidráulica moderna, a construção dos tanques e do sistema de canalização, a cargo de Pero de Évora (séc. XVI), Diogo Fernandes (séc. XVI) e Fernão Luís (séc. XVI).
…. Após a demolição do corpo norte do claustro, na posse da Câmara Municipal de Coimbra desde 1839, já no século XX, o Jardim de Manga ganhou acesso direto a partir da Rua Olímpio Nicolau Rui Fernandes, e, através de uma ampla escadaria, no extremo sul, da Rua Martins de Carvalho.
Pacheco, M. P.D. Do aqueduto, das Fontes e das Pontes: a Arquitetura da Água na Coimbra de Quinhentos. In: História Revista. Revista da Faculdade de História e do Programa de Pós-graduação em História, v. 18, n. 2, p. 217-245, jul. / dez. 2013. Goiânia (Br.). Acedido em: https://www.researchgate.net/profile/Milton-Pacheco 2/publication/314821532_DO_AQUEDUTO_DAS_FONTES_E_DAS_PONTES_A_ARQUITETURA_DA_AGUA_NA_COIMBRA_DE_QUINHENTOS/links/5dc1909a4585151435ec0330/DO-AQUEDUTO-DAS-FONTES-E-DAS-PONTES-A-ARQUITETURA-DA-AGUA-NA-COIMBRA-DE-QUINHENTOS.pdf...
O historiador Milton Pedro Dias Pacheco publicou em 2013, um interessante estudo intitulado Do aqueduto, das Fontes e das Pontes: a Arquitetura da Água na Coimbra de Quinhentos no qual aborda a temática do abastecimento de água decorrente da chegada à urbe de um significativo número de pessoas docentes, funcionários e discentes.
Desse texto respigamos os excertos que constituem a série de entradas que, a partir da referida obra, elaboramos.
A principal cidade do Mondego, a romana Aeminium convertida pelos Árabes em Qulumriyya e depois rebatizada pelos Cristãos de Coimbra), veio a sofrer grandes transformações materiais e culturais ao longo de toda a centúria de Quinhentos.
Profundamente marcada pelas instituições reais, episcopais e monásticas nos finais da Idade Média, a cidade de Coimbra, nos alvores da Idade Moderna, foi palco de uma séria reforma promovida pela Coroa e efetivada in situ pela casa monástica de Santa Cruz de Coimbra. Se a partir de 1527 D. João III perspetivou a reinstalação do Studium Generale em Coimbra, onde já estanciara por duas vezes no século XIV, foi frei Brás de Braga, o monge hieronimita, tornado prior-mor de Santa Cruz, quem a concretizou a partir da década de 1530.
Fig. 1. Vista da cidade de Coimbra em 1572. In: Civitates Orbis Terrarum, vol. V, 1598. Op. cit., pg. 219
… Junto do Mosteiro de Santa Cruz, casa reformada nos princípios do século XVI, viria assim a constituir-se o primeiro núcleo da rede de colégios … Foi, pois, em torno da Rua de Santa Sofia – a artéria urbana consagrada à Sagrada Sabedoria –, que as diversas Ordens Religiosas nacionais ergueram e sustentaram alguns dos mais importantes colégios, instituições responsáveis pelo contínuo afluxo de estudantes naquela instituição universitária através da administração de um ensino que hoje chamaríamos de preparatório. Junto a este novo eixo urbano, paradigma nacional no planeamento urbano e arquitetónico Quinhentista, também a Coroa decidiu pela construção de uma unidade colegial laica, ainda que a funcionar por um breve período: o Real Colégio das Artes.
…. Mas dentro em breve uma segunda fase construtiva irrompia no casco antigo da cidade em torno do Paço Real da Alcáçova, a mais antiga residência régia portuguesa que se tornaria na principal morada da Sabedoria, pois aqui se instalou a Universidade a partir de 1537. Uma vez mais, os novos modelos arquitetónicos adotados viriam renovar a estética urbana conimbricense, sobretudo, com a presença esmagadora do grande complexo colegial promovido pela Companhia de Jesus.
No final do trabalho ora visitado são apresentadas as Considerações Finais de que destacamos, o que segue.
Poderíamos ter mencionado também muitas outras obras arquitetónicas relacionadas com a distribuição e fornecimento de água à cidade e que seguramente sofreram algumas diversas transformações técnicas, assim como aperfeiçoamentos materiais ao longo de todo o século XVI, mas fomos, em certa medida, obrigados a tratar somente o conjunto mais emblemático.
Sabemos, por exemplo, através das vereações de 21 de Agosto e de 24 de Setembro de 1567, que a edilidade havia planeado uma intervenção de limpeza e reparação da Fonte dos Judeus, noticiada já em 1137;
Fonte Nova ou dos Judeus. In: Planta de Coimbra de Isidoro Emílio Baptista. 1845.
ou que, em 1592, o chafariz de Sansão, junto do Mosteiro de Santa Cruz – conhecido pelas suas águas boas “para amassar o pão e para lavar o rosto porque o faz mais alvo” –, recebera, sobre um pedestal quadrangular, a estátua da personagem bíblica homónima, com cerca de dois metros de altura, da autoria do escultor Manuel Fernandes (séc. XVI).
Outras deixam-nos algumas dúvidas quanto à data da sua execução, como a Fonte da Bica, construída junto do antigo Colégio de São Miguel, no início da Rua da Sofia e onde hoje se ergue o edifício da Caixa Geral de Depósitos.
Mosteiro de Santa Cruz, celeiro e outros. Acervo RA
Ou, noutro caso, a Fonte da Torre de Santa Cruz, erguida no local onde mais tarde se instalou a cadeia comarcã (ficando conhecida desde então como Fonte da Cadeia), cuja água, proveniente das nascentes do Jardim da Sereia, jorravam, pelo menos desde o ano de 1541, da tromba de um elefante.
De igual modo, surgem inúmeras dúvidas quanto à data de construção do mais antigo chafariz da praça de S. Bartolomeu abastecido pelo reservatório da fonte da Sé Velha e identificado no desenho levantado em 1572, mas publicado na obra Civitates Orbis Terrarum em 1598.
Merece ainda especial menção o fontanário central do claustro do Mosteiro de Santa Maria de Celas, fundado por D. Sancha (c.1180-1229), filha de D. Sancho I, para a comunidade da Ordem de Cister, cuja estrutura se assemelha às piscinas batismais utilizadas nos primórdios do Cristianismo.
Claustro de Celas
Através da documentação relativa a esta casa religiosa, sabemos que o claustro recebeu novas obras de revalorização durante o abadessado de D. Maria de Távora (séc. XVI), entre 1541 e 1572. De facto, D. João III oferecera à comunidade, no ano de 1553, um conjunto de capitéis historiados proveniente do edifício dos antigos Estudos Gerais
Pacheco, M. P.D. Do aqueduto, das Fontes e das Pontes: a Arquitetura da Água na Coimbra de Quinhentos. In: História Revista. Revista da Faculdade de História e do Programa de Pós-graduação em História, v. 18, n. 2, p. 217-245, jul. / dez. 2013. Goiânia (Br.). Acedido em: https://www.academia.edu/37539380/DO_AQUEDUTO_DAS_FONTES_E_DAS_PONTES_A_ARQUITETURA_DA_%C3%81GUA_NA_COIMBRA_DE_QUINHENTOS.
Voltamos a um texto do académico brasileiro Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira sobre o Mosteiro de Santa Cruz, este dedicado ao estudo de um dos documentos fundamentais para conhecer a história daquele cenóbio.
Das mãos de um cronista agostiniano, orientado pelos interesses institucionais do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, a segunda metade do século XII, início do XIII, testemunhou, por meio de textos como a Chronica Gottorvm, a estruturação do discurso institucional de exaltação da imagem de Afonso Henriques, rei de Portugal.
Materializando o imaginário na literatura, o autor da cronica associou ao infante atributos tanto militares quanto espirituais, configurando assim uma masculinidade régia idealizada.
Afonso Henriques como rei, Imagem acedida em: https://www.portugalvisitor.com/famous-portuguese/afonso-henriques
A mais antiga representação conhecida de Afonso Henriques, no Museu do Carmo. Imagem acedida em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_Henriques#/media/Ficheiro:Lisbonne_Mus%C3%A9e_du_Carmo_Buste_de_Afonso_Henriques.jpg
Diversos sinais de Afonso Henriques. Imagem acedida em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_Henriques#/media/Ficheiro:AfonsoHenriquesSelo.jpg
Seguindo uma ordem cronológica, a obra narra como teria se dado o processo de expansão territorial portucalense promovido por Afonso Henriques.
Dividido em duas partes, o texto apresenta, na primeira seção, uma estrutura linhagista composta por autoridades locais que teriam precedido o “domínio” afonsino na região do Condado. Na segunda parte, o enfoque está nos feitos militares do infante, apresentando-o como um instrumento de Deus no plano terreno.
Representação da Batalha de Ourique na Genealogia dos Reis de Portugal. Imagem acedida em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_Henriques#/media/Ficheiro:Battle-of-Ourique.png
"Tomada de Santarém", por Roque Gameiro (Quadros da História de Portugal, 1917). Imagem acedida em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_Henriques#/media/Ficheiro:Tomada_de_Santar%C3%A9m_(Roque_Gameiro,_Quadros_da_Hist%C3%B3ria_de_Portugal,_1917).png
Segundo a historiografia, a construção imagética que se estabelece sobre o infante tem pelo menos dois objetivos: assentar uma memória de ações notáveis sobre a heroica figura fundacional do reino e estimular militarmente os portucalenses, sob a liderança de Sancho I (1154-1211), filho e sucessor de Afonso Henriques, a combater o avanço muçulmano.
Mosteiro de Santa Cruz. Túmulo de D. Sancho I
…. Durante o exercício dos dois primeiros priorados, com D. Teotónio (1132-1152/62) e D. João Teotónio (1162-1181), a Canónica agostiniana institucionalizou-se, postulando normas de conduta aos cónegos regulares e associados, evidentes nas disposições capitulares de 1162 e reproduzidas na Vita Theotonii, e organizando o patrimônio crúzio e os direitos adquiridos, expressos tanto na Vita Tellonis quanto em partes específicas do Livro Santo e do Livro de D. João Teotónio.
…. O vínculo com a autoridade real, pois o mosteiro funcionava como chancelaria e abrigo do tesouro régio, e a consequente preponderância gozada no seio social, teriam levado a Casa regrante a um aumento de influência no Condado. A figura régia foi pedra angular no processo, uma vez que garantia múltiplos privilégios sobre os domínios da comunidade.
….Na segunda metade do século XII, a Casa crúzia se viu afetada por, pelo menos, dois fenómenos principais. Por um lado, pelo enfraquecimento militar sofrido pela autoridade régia após os eventos de Badajoz, em 1169. O acidente de Badajoz teria a um só tempo dificultado o ímpeto real como meio de ampliação da influência Regular no reino, e enfraquecera a linha de defesa portucalense frente às ofensivas muçulmanas, colocando em risco os espólios agostinianos na fronteira. Por outro, pela desarticulação política do círculo afonsino que orientava as ações reais no Condado, uma vez que alguns dos principais agentes teriam morrido no período, tirando do cenário político, sem que houvesse substituição à altura, articuladores dos interesses portucalenses no Ocidente Ibérico. Neste sentido, destacam-se as mortes de D. Teotónio, Superior de Santa Cruz de Coimbra e conselheiro do infante, em 1162; D. Gonçalo Mendes de Sousa, seu mordomo-mor, em 1167; chanceler Alberto, por volta de 1169, e D. João Peculiar, arcebispo de Braga e uma das figuras centrais da corte, em 1175.
Apesar de Sancho I, filho e sucessor de Afonso I, ter buscado reorganizar o reino e seu exército, juntamente com os que ainda se encontravam a assistir à corte, é razoável que a desagregação do círculo afonsino que herdara tenha gerado um forte impacto na coesão política do Condado.
…. Nesse panorama, já de relevante insegurança lançada sobre o seu patrimônio, os crúzios perceberam que, para defendê-lo, era necessário fortalecer novamente o círculo régio. Assim, estando integrado a um corpo real forte e consolidado, o património da comunidade estaria menos sujeito a alienações por parte de terceiros. A literatura foi um dos caminhos escolhido.
O discurso cronístico crúzio, consumado na Chronica Gottorvm, para além dos interesses já evidenciados pela historiografia, teria por fim enfraquecer os protestos levados ao Papado por outras instâncias eclesiásticas e mitigar as disputas de poder com autoridades locais. Ao construir uma imagem heroica de Afonso I, evidenciando seus feitos militares e a devida anuência divina às suas ações, o Mosteiro evocava a corte, governada agora por Sancho I, a reestabelecer a integração entre seus membros, promover a reorganização de seu exército e restaurar o exercício de poder no Condado.
Oliveira, J.R.S. O discurso cronístico do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra no século XII: uma análise da Chronica Gottorvm. 2019. In: Revista do CFCH – Universidade Federal do Rio de Janeiro.Pg. 1 a 5. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A bela Capela de São Miguel – planeada e dirigida pelo arquiteto-pedreiro Marco Pires entre 1517 e 1522, e ainda com o belíssimo portal de estilo manuelino – oferece ao olhar do visitante, além do órgão barroco com «chinoiserie» (1737) e outras preciosidades de arte móvel, um dos melhores retábulos portugueses da «Contra-Maniera».
Universidade. Capela de S. Miguel, retábulo. Imagem acervo RA.
Universidade. Capela de S. Miguel, portal estilo manuelino. Imagem acervo RA.
Universidade. Capela de S. Miguel, órgão. Imagem acervo RA.
A documentação remonta a 4 de Agosto de 1612, quando a Reitoria encomenda a Simão Rodrigues e Domingos Vieira Serrão a pintura do «Retabollo novo que ora a Univ.de mãda fazer na sua capella». Uma das recomendações especificadas respeita ao retábulo do Mosteiro de Santa Cruz, ao pedir-se que «as quaes pinturas elles farão com toda a perfeição e industria posivel de muito bons óleos & tintas tudo muito fino & de muito espírito de tal maneira que eiscedam as pinturas do retabollo de stª Cruz que ora fizerão».
…. Existe no Museu de Arte Sacra da Universidade de Coimbra, procedente do Colégio da Companhia de Jesus, onde deu entrada por oferta sua, um ciclo de oito tábuas da transição do século XVI para o XVII com a História de Tobias, de alto interesse iconográfico: a viagem de Tobias à Terra dos Medos (no ano 705 a C. segundo a tradição) constitui tema fascinante do maravilhoso bíblico.
Vida de Tobias 1. Op. cit., pg. 37
Vida de Tobias 2. Op. cit., pg. 38
Vida de Tobias 3. Op. cit., pg. 39
…. Neste ciclo da Vida de Tobias, pintado acaso por Mateus Coronato, o seu criado pintor. As razões que levaram a escolher tema tão complexo, afastado dos ditames tridentinos de decoro e clareza, revelam-se no seu simbolismo, que se prestava a cor relações na retoma do maravilhoso pré-cristão e a fórmulas gratulatórias ligadas a ex-votos propiciatórios de boas viagens.
…. A obra que encomenda em fim do século XVI com passos do Livro de Tobias seguiu um esquema de narração contínua, ciclo narrativo didascálico em sucessivos desdobramentos, apto a contar uma história de imagens em sequência, com acúmulo de detalhes que se distribuem em subtemas necessários à compreensão.
Serrão. V. A Universidade de Coimbra e as Artes. Uma dimensão do sublime. Acedido em:
Com esta entrada terminamos a divulgação do trabalho do Doutor Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira, sobre o período fundacional do Mosteiro de Santa Cruz. Texto que, em no nosso entender, interessa não só pelo seu conteúdo, bem como pela curiosidade do seu autor ser um académico brasileiro.
Famílias nobiliárquicas coimbrãs também contribuíram para o crescimento patrimonial experimentado por Santa Cruz de Coimbra até 1162, por meio de doações, vendas ou testamentos feitos à Comunidade agostiniana. Dois fatores se destacam para refletir sobre tal fenômeno: um relacionado a um possível caráter simbólico que o mosteiro pudesse ter no período; e outro, aos efeitos práticos que as transferências traziam ao patrimônio particular.
S. Teotónio. Viseu. Imagem acedida em https://diocesedeviseu.pt/padroeiro/
Na presença de D. Afonso Henriques, São Teotónio lança os hábitos a novos cónegos regrantes de Santa Cruz de Coimbra. Viseu. Imagem acedida em https://diocesedeviseu.pt/padroeiro/
Na primeira questão, a possível representação que a própria casa monacal pudesse ter para a nobreza coimbrã estaria associada a uma supremacia espiritual simbólica que, em meio ao grupo social, ela deteria face à organização paroquial. Enquanto esta estaria voltada ao serviço terreno dos cristãos, isto é, “ao Povo de Deus que caminha penosamente nesta terra”, a outra, estava relacionada ao anúncio profético do paraíso; distanciava-se da pugna vinculada ao plano terreno. Por conseguinte, dado a significação que uma apresentava frente à outra, a supremacia espiritual do mosteiro frente aos demais e sua transcendência teriam atraído a atenção nobiliárquica de Coimbra. Conforme salienta Mattoso, [...] o mosteiro, com a sua comunidade permanente, que desafia os séculos e as vicissitudes deste mundo, representa também a própria eternidade e é, portanto, uma garantia da permanência da família. Ligada a um mosteiro, ela não só será fecunda, não só se reproduzirá [...], nível da honra alcançada e os poderes que a assemelham ao próprio Deus ou aos seus Santos.
Nesse sentido, identificando no monaquismo um caminho de acesso ao sagrado, cuja proximidade ao plano divino encontrava seu sentido na vida austera, as famílias coimbrãs provavelmente viram no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra uma via de promoção de sua própria condição espiritual.
A segunda questão, diz respeito aos efeitos práticos que a transferência trazia aos bens associados. Se na primeira linha interpretativa, a partir da reflexão conduzida por Mattoso, a importância da doação se estabelece em virtude de um interesse que
transcendia a questão material, se apoiando exclusivamente nos resultados mais abstratos do termo, isto é, no âmbito espiritual, aqui, a importância se faz mais imediata, concreta, ou seja, se alicerça no plano terreno.
O prestígio e poder que, gradativamente, o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra teria conseguido ao longo do tempo, fruto, como vimos, do vínculo que mantinha com Afonso Henriques e seus associados, além do próprio apoio papal, teria aumentado sua capacidade de proteção em relação ao patrimônio que detinha.
Este dado teria, consequentemente, garantido a força combativa do exército portucalense quando sob ameaça, formando, assim, um conjunto institucional pouco suscetível às instabilidades oriundas de um período marcado pelos constantes conflitos. Nesse panorama, famílias dotadas de patrimónios significativos, cuja efetiva ação para defendê-los se encontrava enfraquecida ou inexistente, veriam na associação ao Mosteiro, seja em momentos conflituosos ou não, uma forma de verem garantidas a proteção e manutenção dos bens dos quais dispunham.
Das anotações relativas a Testamentos, Cartas de doações e de vendas à Santa Cruz de Coimbra constantes no Livro de D. João Teotónio, por exemplo, é indiscutível que as décadas de 60 e 70 do século XII são as que em maior volume dão mostra das aquisições por parte do Mosteiro. Portanto, período de priorado de D. João Teotónio (1162-1181).
Não seria diferente, dado a possibilidade de ter por incentivo o avanço almóada que se fazia presente no último quartel do século XII em território portucalense. Com isso, cabe salientar também, em paralelo, o próprio incentivo promovido pelo segundo prior, atraindo para os crúzios considerável número de doações e testamentos, aumentando assim o patrimônio material do Mosteiro.
De facto, foi com ele [D. João Teotonio] que, desde 1152, se fomentou a partir das doações feitas um patrimônio que organizado viria a dispor de rendas próprias que permitiram ampliar instalações e adequá-las à medida da procura crescente.
O crescimento e expansão experimentados pela Comunidade agostiniana entre 1132 e 1162 caracterizaram essa primeira etapa de vida do Mosteiro.
Oliveira, J.R.S.C. A Cidade de Coimbra e o Mosteiro de Santa Cruz no Século XII. Reflexões sobre o Priorado de S. Teotónio. 2017. In: Acedido em:
No texto que ora transcrevemos sobre a investigação de Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira, continua a debruçar-se sobre as circunstâncias do período inicial do Mosteiro de Santa Cruz.
Durante o priorado de D. Teotónio, concessões de naturezas variadas teriam sido feitas por parte do Infante ao Mosteiro, aumentando-lhe assim tanto o património particular do qual dispôs nesta primeira etapa, quanto às zonas de influência sobre o Condado Portucalense: “[...] o rei lhe concedeu muitos dos bens que aí tinha, tanto móveis como imóveis, enriqueceu o local, confirmou todos os bens do mosteiro, tanto de dentro como de fora, e ao confirmá-los coutou-os”.
S.Teotónio, monumento em Valença. Imagem acedida em https://www.bing.com/images/search?view=detailV2&ccid=73TXSsPF&id=...
S. Teotónio, monumento em Viseu. Imagem acedida em https://www.bing.com/images/search?view=detailV2&ccid=73TXSsPF&id=...
…. Dentre as concessões feitas por Afonso Henriques ao Mosteiro regrante, destacamos os coutos que, nos primeiros anos da canónica, teriam composto um conjunto patrimonial significativo. Nesse sentido, tornamos evidente, por exemplo, o couto de São Romão de Seia, de dezembro de 1138; o couto feito a um barco de pesca, de março de 1139; o couto da vila de Gouveia, de novembro de 1140; o couto de parte das vilas de Quiaios e Emide, além de toda a de Lavos, de junho de 1143; o couto de todos os homens e herdades de Santa Cruz, de julho de 1146.
…. O mosteiro de Santa Cruz, ao demonstrar, em certa medida, alinhamento aos interesses defendidos pela Sé romana, obtendo dela o devido reconhecimento e se colocando em direta subordinação, teria exercido no Ocidente peninsular um papel concentrador e difusor das orientações provenientes de Roma. Como agente disseminador dos interesses românicos, trazia para a lógica de organização social o próprio discurso cristão, e para o corpo eclesial, o enquadramento esperado e o referencial de conduta moral estabelecido na base apostólica. Com isso, teria garantido para si o beneplácito da Sé de Pedro para o desenvolvimento de suas atividades, tendo assegurado tanto privilégios quanto a expressiva proteção papal.
O facto de uma rede crescente de paróquias serem fundadas ou ficarem sob a orientação direta do mosteiro de Santa Cruz, que se afirmava isento do poder episcopal, protegido e imediatamente dependente da Sé Apostólica iria contribuir para consolidar o seu próprio processo de isenção [...]. Era igualmente um poderoso meio de a instituição regrante mais se afirmar junto da autoridade episcopal, através do exercício da sua própria jurisdição, e na sociedade em que se situava.
A título de exemplo dos privilégios recebidos, destacamos: a bula «Ad hoc universalis», de abril de 1144, na qual Lúcio II teria confirmado os bens e direitos recebidos pelo Mosteiro, dentre eles os sobre as igrejas de São Romão de Seia, São João de Santa Cruz, Quiaios, Mira, Travanca, etc., isentando-os de dízimo, sem com isso alienar os direitos da diocese.
Papa, Lucio II. Imagem acedida em: https://www.google.pt/search?q=lucio+ii+papa...
Todos repetidos e confirmados por Eugénio III por meio da bula «Apostolica Sedis», de setembro de 1148. O cardeal Jacinto, com a bula «Oficii nostri», de novembro de 1154, além de confirmar as concessões anteriores, teria acrescentado outras novas qual seja, a livre eleição do superior da comunidade regrante e o direito de sepultura. Já Adriano IV, por meio da bula Ad hoc universalis, de agosto de 1157, para além de manter as confirmações já feitas, também a exerce às igrejas do castelo de Leiria e de Taveiro, entre outros.
Um dos pontos que nos chama a atenção nos privilégios eclesiásticos é o da necessidade de uma confirmação contínua das concessões reais ao Mosteiro. Ou seja, mesmo já tendo obtido o devido reconhecimento por parte da Igreja romana, esta consideração parece não garantir um inquestionado direito aos Regrantes sem que passasse por nova confirmação. Era também uma forma de manter, por parte do papado, um controle dos bens adquiridos pelo Mosteiro em um determinado espaço de tempo.
Oliveira, J.R.S.C. A Cidade de Coimbra e o Mosteiro de Santa Cruz no Século XII. Reflexões sobre o Priorado de S. Teotónio. 2017. In: Acedido em:
Terceira de cinco entradas sobre o trabalho do Doutor Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira que vimos divulgando.
É interessante perceber o silêncio que a Vita Sancti Theotonii faz desse período de tensões. De acordo com a obra, omitindo qualquer conflito, menciona que o corpo fundacional do Mosteiro estaria firmado na autoridade de Afonso Henriques e do «uenerabilis» bispo de Coimbra Bernardo. Partindo desta divergência entre os escritos, é razoável trabalhar com a hipótese de a Vita teotoniana, produzida em data posterior à Vita Tellonis, em 1162-63, intentar esvaziar do discurso narrativo possíveis tensões existentes na fase inicial da canónica crúzia, dado a proximidade existente entre ambas no momento de produção da obra. Em data anterior, 1154-55, em virtude do recente período de atrito verificado, e/ou por possíveis interesses que fogem ao nosso entendimento agora, Pedro Alfarde teria achado por bem mencioná-los em sua obra.
Igreja de Santa Cruz, interior na segunda metade do séc. XIX, Acervo RA
A ida de D. Telo e seus associados imediatos ao papado para solicitar a isenção teria, no raciocínio de Erdmann, também trazido frutos ao bispado coimbrão, tendo o Pontífice concedido a proteção da Santa Sé à comunidade, face os interesses compostelanos. Em troca, segundo o autor, o Vigário teria pedido ao Infante uma proteção especial em favor de Santa Cruz de Coimbra.
…. Nos primeiros anos da Canónica agostiniana, a busca por material escrito que servisse às necessidades religiosas do Mosteiro também teria sido uma das iniciativas tomadas pelo corpo fundador. “Telo e os seus companheiros, ao reunirem-se em comunidade, tinham necessariamente de prover à constituição de uma biblioteca que permitisse responder às obrigações da vida regrante [...]”. O mosteiro franco de São Rufo de Avinhão, neste particular, teria sido um dos contribuintes iniciais para a constituição do património escrito da canónica agostiniana. Dele teria vindo, para além da própria inspiração da vida regular, o «Ordinário» (Liber Ordinis, de Letberto), o «Capitulário», «Antifonário», comentários bíblicos de Agostinho de Hipona (sobre o Génesis, João, Mateus e Lucas) e Ambrósio (o Exameron e o De Penitentia), a «Regula Pastoralis de Gregório Magno e um comentário de Beda, o Venerável, sobre Lucas.
Igreja de São Rufo de Avinhão. Na atualidade. Imagem acedida em: https://pt.wikipedia.org/w/index.phpsearch=igreja+de+S%C3%A3o+Rufo+de+Avinh%C3%A3o&title=Especial:Pesquisar&ns0=1&quickView=Arquidiocese+de+Avinh%C3%A3o
Desta forma, ao longo de três etapas de contactos com o mosteiro que lhes servia de modelo, em 1135, 1136-1137 e 1139-1140, Santa Cruz adquiria os textos das regras, constituições, diretórios litúrgicos e doutrinas patrísticas que lhe permitiam completar, internamente, a sua estruturação e conduzir a sua orientação doutrinal. À fundação do «armarium», acrescentava-se este importante núcleo do que mais tarde haveria de ser a sua livraria.
Com isso, ao que tudo indica, a primeira década de vida do Mosteiro seria marcada pela aquisição de um patrimônio teológico-literário que, mesmo ainda incipiente, foi suficiente para o desenvolvimento das atividades iniciais da Casa regrante. Este, progressivamente, teria aumentado durante o priorado de D. Teotónio (1132-1162), fruto também da própria hipertrofia sofrida pela comunidade crúzia no período, que teria expandido sua órbita de influência e, consequentemente, a capacidade de aquisição e a necessidade de produção de novas obras.
Para esse crescimento exponencial, teria concorrido uma série de fatores, dentre os quais damos mais destaque aos possíveis interesses nutridos e consequente intervenção da monarquia Portucalense na dinâmica dos Regrantes agostinianos, das famílias nobiliárquicas de Coimbra e da própria Sé Apostólica.
No que diz respeito a Afonso Henriques, a transferência feita em 1131 da sede administrativa da cidade de Guimarães para Coimbra, efetuada no mesmo ano de fundação do mosteiro de Santa Cruz, dão indícios de uma iniciativa não desinteressada.
Afonso Henriques. Imagem acedida em https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_Henriques
…. Afonso Henriques teria encontrado na cidade de Coimbra o ambiente favorável para poder exercer suas ações com mais liberdade face à condição sob a qual se encontrava em Guimarães. A possibilidade de desempenhar maior capacidade de decisão política, entre outros, surgia como atrativo, frente ao que, sob as limitações da própria lógica de organização local, encontrara no entre Minho e Douro. No Mondego, também, se colocaria em posição geográfica mais estratégica para melhor empreender seus avanços militares e veria reconhecido, pela aristocracia regional, seu papel de proeminência.
…. Em linhas gerais, a Casa crúzia viria em auxílio, como agente legitimador, através do discurso cristão, às investidas militares do monarca portucalense contra os “inimigos” da Sé Apostólica. Assim, ao passo que o exército afonsino avançava sobre seus “oponentes”, o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra garantia - discursivamente - o apoio divino nas batalhas.
…. É este o intento que a literatura coimbrã da segunda metade do século XII parece querer transmitir. De acordo com a «Chronica Gottorvm», por exemplo, escrita no final do século XII,
Oliveira, J.R.S.C. A Cidade de Coimbra e o Mosteiro de Santa Cruz no Século XII. Reflexões sobre o Priorado de S. Teotónio. 2017. In: Acedido em:
Prosseguimos na divulgação do estudo do académico brasileiro Doutor Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira, sobre a problemática da construção do Mosteiro de Santa Cruz e do papel fundamental de S. Teotónio no seu desenvolvimento inicial.
A partir do que a documentação nos permite perceber e do que a historiografia frequentemente destaca, a primeira década de vida da canónica crúzia foi marcada pelas transformações que teriam estabelecido os alicerces da experiência regrante no Condado.
Pensamos ter sido, esta, tanto uma fase em que o Mosteiro buscaria dissociar-se em relação ao bispado local, quanto de estruturação da base sobre a qual a conduta moral dos cónegos se assentaria, sendo para ela buscados os mais diversos referenciais.
Em relação ao bispado coimbrão, salienta Morujão que «Almost immediately a tense relationship developed between the monastery and the see, since the monastery had been founded by clerymen who had abandoned the cathedral chapter to join the new institution and consequently the Crucians tried to evade the episcopal authority».
A necessidade de desvinculação em relação ao bispado teria como raiz, segundo a «Vita Tellonis», a oposição levantada pela diocese, que exigia a confeção em seu favor de um testamento tanto do local quanto do Mosteiro, isto é, que o lançasse como património diocesano. Com isso, vendo a possibilidade de ter sua liberdade cerceada, mantendo-se sob a tutela do bispo local, D. Telo e seus companheiros teriam recorrido à Santa Sé.
Nessa iniciativa, teriam eles buscado o reconhecimento fundacional da Comunidade, bem como a devida proteção face o episcopado coimbrão, gerando assim, de Inocêncio II, em 1135, três bulas: a Desiderium quod, que garantia o amparo da Sé Apostólica ao Mosteiro; a Quod personam e a In Beati Petri cathedra, as quais recomendavam tanto a Afonso Henriques quanto ao bispo de Coimbra os cónegos crúzios. Segundo a Vita Tellonis faz notar, seria a partir de tais disposições que o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra teria conquistado a isenção em relação ao bispo da cidade, estando, assim, diretamente subordinado à Sé romana.
Inocêncio II, papa. Detalhe de um mosaico na basílica de Santa Maria em Trastevere de Roma (c. séc. XII). Imagem acedida em https://es.wikipedia.org/wiki/Inocencio_II
A controvérsia entre D. Bernardo, bispo de Coimbra, e a Comunidade de cónegos regrantes de Santo Agostinho, para além das questões antes citadas, teria se estendido também sobre outros assuntos. De acordo com o que narra Pedro Alfarde sobre o supracitado bispo, ele vendia bens eclesiásticos às escondidas, motivo pelo qual os Regrantes teriam se recusado a serem ordenados por ele. Tal desconfiança, prossegue o autor, teria levado os cónegos a solicitarem a presença do arcebispo de Braga, D. João Peculiar (1138 – 1175), para promover a ordenação. Como resultado, D. Bernardo, [...] tomado de fúria insana, contra as determinações em contrário, procurava impedir os fiéis [sic] que podia de nos entregarem [ao mosteiro de Santa Cruz de Coimbra] benefícios, quer nas coisas eclesiásticas que acaso possuíssem quer no direito civil. Por isso, até algumas das nossas igrejas reteve para si durante bastante tempo [...].
Livro Santo começado no ano de 1155 que contem entre outras a transcrição da Vita Tellonis. Acedido em https://digitarq.arquivos.pt/details?id=4614123
…. Em linhas gerais, a contenda mais incisiva envolvendo a diocese coimbrã e o mosteiro de Santa Cruz teria durado, pelo menos, até que dois bispos, questionados pelas suas condutas, deixassem de ocupar seus cargos: o já citado D. Bernardo, que morrera em 1146, e seu sucessor, D. João Anaia (1147-1155), cuja demissão fora forçada em 1155.
Mosteiro de S. Cruz, claustro do Silêncio, tumulo de D. Miguel Pais Salomão. Imagem acedida em: https://en.wikipedia.org/wiki/Miguel_Pais_Salom%C3%A3o#/media/File:Tomb_-_Cloisters_-_Mosteiro_de_Santa_Cruz_-_Coimbra,_Portugal_-_DSC09710.jpg
Após este período, o bispado teria ficado vacante por sete anos até que um regrante crúzio, D. Miguel Pais Salomão (1162-1176), o ocupasse.
Oliveira, J.R.S.C. A Cidade de Coimbra e o Mosteiro de Santa Cruz no Século XII. Reflexões sobre o Priorado de S. Teotónio. 2017. In: Acedido em: https://www.academia.edu/38218646/A_CIDADE_DE_COIMBRA_E_O_MOSTEIRO_DE_SANTA ...
Esta e as subsequentes entradas, têm a curiosidade de serem extraídas de um estudo do historiador brasileiro, Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira, Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, no qual se debruça sobre a problemática da construção do Mosteiro de Santa Cruz e do papel fundamental de S. Teotónio na concretização desse projeto de tanta relevância não só para a Cidade, mas também para a consolidação do País que somos.
De acordo com a Vita [Vita Tellonis, de Pedro Alfardo] no ano de 1131 da Incarnação do Senhor [...], o arcediago Telo, agregando a si uma falange de homens de primeiro plano em número igual ao dos doze Apóstolos, começou a lançar os fundamentos do mosteiro de Santa Cruz nos arrabaldes de Coimbra.
A comunidade foi estabelecida extramuros da cidade, no lugar conhecido como “Banhos Régios”, próxima ao que fora a judiaria.
Mosteiro de Santa Cruz,. Hoefnagel. 1598. Pormenor
Conforme a narrativa, D. Telo, após alguma procura, teria conseguido o local de fundação a partir de uma troca feita por Afonso Henriques, em troca de uma sela de propriedade do clérigo.
Chegou, pois, o tempo de Deus decidir dar cumprimento ao voto formulado pelo presbítero. Comprara ele [D. Telo], casualmente, mas não sem intervenção de Deus, em Montpellier, uma sela, tal é o termo em língua vulgar, que era muito bem trabalhada e era mais que excelente para montar a cavalo. Certo dia, em que o arcediago seguia montado numa mula pela porta de Coimbra e caminhava como habitualmente pela rua Régia aperceberam-se dela os cortesãos que notaram o seu bom recorte. Alguém de entre os conselheiros deteve a atenção na sua elegância e propôs ao Infante que pedisse ao arcediago para lhe dar. Sem demora, satisfaz ele o pedido, sugerindo em troca a oferta dos Banhos Régios ao fundo da Judiaria.
…. [Na] Carta de couto a Paio Guterres (cabalo, praetio e vaso de planta), no fragmento em que faz a doação dos Banhos Régios, menção alguma é feita à sela.
…. a carência documental da qual dispomos e/ou de estudos que nos permita desenvolver melhor essa possibilidade, encerram em seu posicionamento a nossa opinião.
…. Tendo sido preterido na sucessão episcopal, D. Telo, algum tempo depois, teria encontrado ambiente favorável às suas pretensões após receber a já referida doação, por parte de Afonso Henriques, da área denominada de “Banhos Régios”. Ele também, segundo a obra, comprou do bispado um horto nas proximidades, local este que dispunha de uma fonte.
Vale salientar que o intento fundador de D. Telo não se fizera sem que houvesse para tal opositores. A iniciativa de fundar uma comunidade regrante, tendo como referencial a vida apostólica, teria, no período, alimentado uma crescente rivalidade com os membros do cabido de Coimbra.
…. Assim, a 28 de junho de 1131, após ter conquistado um espaço propício e ter reunido determinado número de adeptos à proposta, nos arredores da cidade de Coimbra, teria sido fundado o mosteiro de Santa Cruz. A arquitetura, baseada nos moldes românicos, teria ficado a cargo de mestre Roberto, um franco de Auvergne, que trouxe inovações estruturais, inaugurando aquilo que os historiadores chamam de “segundo período do românico coimbrão do século XII”.
Torre de S. Cruz. Acervo RA
Igreja de S. Cruz, interior. Imagem João Santos, acedid em www.facebook.com/jpphoto
Iniciava-se, com isso, no ocidente ibérico, mais propriamente no Condado Portucalense, a experiência religiosa comunitária cujo referencial se baseava na Regra agostiniana. Tendo sido promovida a construção do Mosteiro em 1131, como antes vimos, suas atividades, de acordo com a narrativa, só teriam se iniciado em 1132, sendo eleito como seu primeiro Prior-mor, D. Teotónio, um dos fundadores.
Oliveira, J.R.S.C. A Cidade de Coimbra e o Mosteiro de Santa Cruz no Século XII. Reflexões sobre o Priorado de S. Teotónio. 2017. In: Acedido em:
Foi S. Teotónio canonizado em 1163, e Frei Timóteo dos Mártires afirma que, logo após a canonização, foi mandada fazer uma imagem. (Crónica de Santa Cruz. T. 1. Coimbra, Ed. da Biblioteca Municipal, 1955, pág. 46). Mas esta não chegou até nós.
S. Teotónio, Monumento na sua terra natal, Fanfei, Valença, autor não identificado. Imagem acedida em:https://www.mundoportugues.pt/2020/02/18/hoje-e-dia-de-s-teotonio-o-primeiro-santo-portugues/
A mais antiga representação de S. Teotónio, afora uma que vimos num códice da Biblioteca Pública Municipal do Porto, mas do que não temos reprodução nem data da sua feitura, é a que vem no princípio do ofício do Santo no «Breviarium Santae Crucls», de 1531. Apresenta-o de mitra e báculo e tendo na mão esquerda uma igreja. Acontece, porém, que no mesmo Breviário a mesma gravura serve para Santo Agostinho. como aliás acontece noutras obras com o mesmo ou com outros santos. Assim, por exemplo, no «Flos Sanctorum», de Frei Diogo do Rosário, ed. de 1612, a vida de S. Teotónio é ilustrada com uma bela xilogravura na qual o Santo tem o báculo e o livro, mas ao lado vê-se uma corça. Estranhando a presença deste animal que ali parece não ter cabimento, folheámos todo o volume, verificámos que a mesma gravura serviu para Santo Arsénio, S. Gil Abade, (mas neste justifica-se a presença da corça, que lhe dava leite) e S. Leonardo.Timotheo dos Martyres, na sua «Vida do Bemaventurado Padre Santo S. Theotonio», Coimbra, 1650, apresenta uma gravura aberta a buril por João Gomes. O Santo, numa oval, em melo corpo. com trajos monacais, empunha o báculo e segura na mão esquerda o globo estrelado. Sobre uma mesa está pousada a mitra. Em baixo tem a legenda: SANCTVS PATER THEOTONIVS, e a assinatura do artista: Jº. Gom.
No tomo III do «Proprlum Sanctorum Totius Anni», conjunto de 12 grandes volumes de pergaminho que pertenceu ao Mosteiro de Santa Cruz e se guarda no Museu Nacional Machado de Castro, vem uma iluminura a toda a página, reproduzindo obviamente a imagem que se encontra na capela de S. Teotónio, em Santa Cruz, imagem que é de madeira e que foi encomendada a artista de Lisboa quando das obras de adaptação e beneficiação operadas na referida capela de 1627 a 1630. O autor da iluminura é D. Cipriano de Santa Maria, Cónego Regrante de Santa Cruz, que tudo escreveu, elaborou e completou no ano de 1760, como se lê no frontispício latino daquele volume. Nesta iluminura o globo estrelado está no cimo do quadro.
Também é do séc. XVII a imagem de S. Teotónio da igreja de Fajão, uma das melhores que se conhecem. O Santo veste de crúzio, com báculo e livro e a mitra aos pés. Não tem o globo.
Outra terra de cónegos agostinhos era Folques. Aí se encontra, na igreja paroquial, que foi do antigo Mosteiro de S. Pedro, uma grande e boa imagem de S. Teotónio. Tem a mitra aos pés e na cabeça um barrete eclesiástico. Na mão direita tem o globo estrelado e na esquerda o báculo. As vestes são de crúzio. É do séc. XVIII.
S.Teotónio, da igreja paroquial de Folques. Acervo RA
Na mesma freguesia, na capela de S. Teotónio, no Alqueve, há uma pequena imagem do mesmo, em madeira, do séc. XVII, na atitude de pregar, e outra de barro, bastante maior e melhor, com o Santo em êxtase, mão direita no peito e a esquerda segurando o livro, vestes de crúzio com murça abotoada e sem mais atributos.
Sendo titular da freguesia de Brenha, lá tem também a sua imagem. É uma escultura de barro, do século XVII, na mesma atitude da anterior, mas doutras mãos.
Em Maiorca encontrámos duas: uma, do séc. XVII, com livro e báculo (que falta) e mitra aos pés; outra, bastante maior, em que S. Teotónio está vestido de peregrino, com o chapéu pendurado nas costas, a mão direita na atitude de empunhar o bordão, na mão esquerda o livro e sobre uma dobra do manto apanhado pousa o globo estrelado. Não se estranhará esta forma iconográfica se nos lembrarmos de que ele foi por duas vezes em peregrinação à Terra Santa.
Em Santa Cruz, além da imagem referida, há mais duas, de pequeno tamanho, do séc. XVIII, uma das quais também ostenta o globo estrelado.
É bem notável pela sua matéria, que é prata, e pela sua unção religiosa, o busto que encerra o crânio de S. Teotónio e que se venera em Santa Cruz, datado de 1624.
Mosteiro de Santa Cruz, Capela de S. Teotónio. Acervo RA
Também no Museu Nacional Machado de Castro há uma boa imagem de madeira. do séc. XVII, com o globo estrelado na mão esquerda e o báculo na direita e mitra aos pés.
Finalmente, completamos esta resenha com a imagem que se encontra na igreja paroquial de Antuzede, que é sem dúvida uma das melhores.
S. Teotónio, da igreja paroquial de Antuzede (séc. XVIII)
Obra do séc. XVIII, não nos admiraríamos se aparecesse um documento que lhe desse Laprade por autor. Para já, nota-se-lhe uma grande semelhança. na roupagem e nas mãos, com um S. Paio da igreja de Verride. Que se atribui aquele autor francês.
Pereira, A.N. Sobre a Iconografia de S. Teotónio. In Munda. Revista do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro. N.º 3 Maio de 1982. Pg. 17 a 21.
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