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Entre os séculos XV e XVIII Portugal foi-se cobrindo de um manto intenso de luz no interior das suas igrejas.
Convento Santa Clara-a-Nova. Interior da igreja
Ao longo desses séculos, os emotivos retábulos aquecidos a ouro foram ganhando as preferências nacionais, deixando-se para trás as mais frias (de pudor tratadístico) estruturas italianizantes trabalhadas em pedra.
Fig. 3 - Interior da igreja do mosteiro de Santa Clara-a-Nova em Coimbra. 2014. (Fotografia cedida por Anabela Carvalho)
… No caso privilegiado de Santa Clara, a reformulação de um novo mosteiro ocasionou a execução de retabulária totalmente nova e especialmente encomendada para esse efeito, seguindo, em conformidade, o sentido estabelecido …
Convento Santa Clara-a-Nova. Retábulos
Os 14 retábulos seguem todos a mesma composição dada por Mateus do Couto … Os retábulos que compõem a nave distribuem-se ao longo da mesma: 9 laterais, encaixando-se entre as pilastras da igreja; 2 colaterais; 2 sem altar (paralelamente aos colaterais); e 1 painel da mesma composição sobre a porta de entrada. Os baixos-relevos apresentam um grande sentido de movimento, através de corpos ondulantes, diagonais e panejamentos flutuantes e são pintados sobre folha de ouro, em cores suaves. Os seus imaginários e entalhadores, António Gomes e Domingos Nunes, assinaram contrato em 28 de Outubro de 1692 … É provável que, posteriormente, tenham sido encomendados os 3 painéis que faltam e que não estão no contrato, visto que os processos de decoração da igreja se prolongaram até ao século XIX.
Fig. 4 - Painel do retábulo da estigmatização de S. Francisco, 1692, António Gomes e Domingos Nunes. 2014 (Fotografia cedida por Anabela Carvalho)
Fig. 5 - Gravura da folha de rosto da obra Missae propriae festorum ordinis fratrum minorum ...1675. Officina Roderica de Carvalho Coutinho.
O primeiro retábulo lateral do lado da epístola corresponde à estigmatização do santo fundador, como estipulado em contracto, localizado hierarquicamente no conjunto dos retábulos laterais do lado da epístola e iniciando a leitura global da retabulária. O painel é composto pela figura do santo, de frei Leão e de um serafim. Frei Leão encontra-se sentado no canto inferior esquerdo absorvido pela leitura de um livro e ignorando a acção que se desenrola à sua volta. S. Francisco, posicionado no lado direito, estica-se em direcção à aparição do serafim envolto em nuvens, que se encontra no canto superior esquerdo, conferindo marcante diagonal na composição. A cena é rodeada de rochas e árvores e, como fundo, apresenta uma paisagem com a representação de casario. Ambas as figuras vestem hábito franciscano e o serafim é representado cruxificado.
A cena do relevo congela a passagem da vida de S. Francisco em que este recebe os estigmas. Segundo S. Boaventura, a quando do seu retiro de Quaresma em honra de São Miguel para o monte Alverne, o santo contempla a aparição de um “(…) serafim de seis asas flamejantes (…)” crucificado em que “(…) Duas asas elevavam-se por cima de sua cabeça, duas outras estavam abertas para o vôo, e as duas últimas cobriam-lhe o corpo (…)”. Durante esse êxtase, S. Francisco sente “(…) uma alegria transbordante ao contemplar a Cristo que se lhe manifestava de uma maneira tão milagrosa e familiar, mas ao mesmo tempo uma dor imensa, pois a visão da cruz traspassava sua alma com uma espada de dor e de compaixão (…)”. Após a aparição, surgem-lhe marcas nas mãos e nos pés e na lateral direita do tronco, correspondendo à localização das 5 chagas de Cristo. S. Francisco assemelhava-se assim a Cristo, não apenas pela sua forma de estar na vida, mas também de forma tão visível como os estigmas, executando, a partir dai, diversos milagres.
… No caso do relevo dos estigmas em Santa Clara-a-Nova, S. Francisco de Assis apresenta-se numa posição de movimento ascensional, acompanhado de frei Leão e envolto em natureza.
Os entalhadores do painel da estigmatização de S. Francisco na nova igreja de Santa Clara de Coimbra revelam influências de gravuras que circulavam na época … o «Missae propriae festorum ordinis fratrum minorum ...», de 1675, que apresenta S. Francisco de mãos cruzadas.
Contudo, é essa que mais se assemelha ao relevo do retábulo da estigmatização da igreja do mosteiro de Santa Clara-a-Nova, pela sua organização compositiva, a mesma diagonal, a presença de frei Leão no canto inferior esquerdo, o mesmo desenho de árvore e a envolvência pela natureza.
.... No retábulo dos estigmas a importância da liberdade do artista na execução da obra, sem se cingir a uma gravura única, permitiu a oportunidade de mostrar a desenvoltura expressa na qualidade técnica.
… A maior liberdade na execução duma temática recorrente resultou numa abordagem única conferida pela forte aposta em diagonais marcadas e de maior movimento, demonstrando a qualidade técnica dos seus autores. A obrigatoriedade do tema do fundador, a par com o resto do conjunto, foi desenvolvida na simbiose entre o gosto régio e a técnica da talha portuense, resultando num singular dispositivo de retabulária nunca antes executada em Portugal.
Carvalho, A. R. O Retábulo da Estigmatização de S. Francisco na igreja de Santa Clara-a-Nova em Coimbra. In: O Retábulo no Espaço Ibero-Americano. Forma, função e iconografia. Coordenação de Ana Celeste Glória. Volume 2. 2016. Lisboa, Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas / NOVA. Pg. 27-29
Santa Clara-a-Nova como estratégia régia
O mosteiro de Santa Clara de Coimbra foi construído na margem esquerda da cidade por iniciativa de Dona Mor Dias no século XIII. Com a participação directa da Rainha D. Isabel de Aragão na construção, o mosteiro ganhou uma projecção que seria também alimentada pela salvaguarda do sepulcro régio. A ligação do mosteiro com a cidade e a concentração franciscana naquela área geraram uma relevância tal que até o próprio rio quis abraçar o solo consagrado.
Este território ocupado por duas grandes construções dedicadas à Ordem de S. Francisco e ligadas à cidade através da ponte, estabelece, assim, o protagonismo franciscano. O flagelo das cheias do Mondego obrigou as freiras a uma atenção constante ao seu património e a alterações sistemáticas nos circuitos de circulação interna.
Não obstante as condições agrestes ao longo de séculos, as clarissas insistiram na ocupação do espaço, resistindo mesmo à possibilidade de mudança oferecida pelo rei D. Manuel I. Em carta enviada a D. João IV, a abadessa mor da instituição pedia-lhe que fizesse mudar a localização do mosteiro, longe do risco de inundação. Este pedido interessou particularmente o monarca, que via nele uma oportunidade de glorificação do reinado, face ao anterior, de Filipe III. O monarca espanhol teria sido o responsável pelo processo de canonização da Rainha D. Isabel, que se prolongou entre 1611 a 1625, nomeando-a protectora do reino. Por conseguinte, D. João IV vê no pedido de construção do novo mosteiro uma motivação para extinguir as réstias lembranças filipinas, legitimando a nova dinastia e albergando sob sua protecção a nova santa e padroeira do Reino de Portugal, monumentalizando a grandeza e consagração do seu reinado pelo reforço da linhagem real e nacional da santa rainha.
Convento Santa Clara-a-Nova. Entrada
O monarca manda erguer o novo mosteiro numa cota mais elevada em confronto directo com a Universidade, lugar esse onde o poder régio é reforçado pela presença sistemática do brasão real, tal como acontece em Santa Clara-a-Nova, demarcando o patrocínio do rei na edificação. O impacto e a monumentalidade do mosteiro na malha urbana de Santa Clara confere à paisagem um equilíbrio de complementaridade com a Alta de Coimbra, sendo, desde logo, um elemento
iconográfico categórico na representação da cidade e actuando como uma espécie de polo de ligação entre as duas colinas, separadas pelo rio mas unidas pela mesma tutela.
O projecto resultou magnânimo e ambicioso, indo contra os anseios do rei em economizar na obra. A grandiosa panorâmica do mosteiro acarreta um grande impacto cénico através, principalmente, da colossal estrutura correspondente ao dormitório que impõe sobre a cidade a imagem poderosa do Rei através do carácter real que os dois torreões conferem. Era a dinastia portuguesa que agora velava pelo corpo sagrado de linhagem régia nacional e que imite essa afirmação através de uma estrutura de arquitectura civil, apelando à tipologia de um palácio régio.
Fig. 1 - Margem esquerda da cidade vista da Universidade de Coimbra. 2014. (Fotografia da autora)
O portal da igreja, a uma escala visível da cidade, difundia da mesma forma a independência da nova dinastia. O discurso político afixado no portal actual como estrutura comemorativa da Restauração de 1640 tal como já acontecia na tipologia do portal da igreja de S. João Baptista de Angra (datado de 1642) e como vai acontecer no portal da igreja da Piedade de Santarém (1664-1677). O monarca assinalava no novo panteão criado a legitimação definitiva e exclusivamente portuguesa da guarda e posse do túmulo da Rainha Santa Isabel, servindo igualmente para a afirmação da nova dinastia em contraposição à antiga.
O portal da igreja (1649-1696) é composto, num primeiro registo, por um vão rectangular, enquadrado por pilastras dóricas com entablamento de tríglifos e, num registo superior de maior movimento, dado por elementos decorativos como as volutas, apresentando um grande espaço quadrangular central preenchido pelo brasão real e dois anjos custódios (que apoiam as armas régias, glorificando o poder do rei credibilizado pela protecção divina que legitimiza a afirmação política no mosteiro de Santa Clara-a-Nova), emoldurado por pilastras jónicas e entablamento estriado, rematado por frontão interrompido por duas volutas e cruz ao centro.
Fig. 2 - Fachada da igreja do mosteiro de Santa Clara-a-Nova em Coimbra. 2015. (Fotografia da autora)
Como lhe chamou António Filipe Pimentel, o novo mosteiro de Santa Clara é igualmente um mosteiro-panteão e um mosteiro-palácio, erguido para afirmação da restaurada dinastia na cidade que acolheu o corpo do primeiro Rei da nação portuguesa.
Carvalho, A. R. O Retábulo da Estigmatização de S. Francisco na igreja de Santa Clara-a-Nova em Coimbra. In: O Retábulo no Espaço Ibero-Americano. Forma, função e iconografia. Coordenação de Ana Celeste Glória. Volume 2. 2016. Lisboa, Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas / NOVA. Pg. 27-29
Joaquim Martins Teixeira de Carvalho
Contavam os velhos que a voz dos sinos tinha força de convencer os homens.
Da campainha de S. Francisco Xavier se conta na India que levava atrás dele os mais infiéis.
Goa. Igreja do convento de S. Francisco Xavier
Não havia cão de herege, que, ao ouvir a campainha, não ficasse inquieto, agitado, movendo-se sem saber porquê, e não acabasse por dobrar a cabeça e pôr-se a andar atrás dela até a igreja.
Os sinos passavam por falar a verdade; nas igrejas estavam em altas torres para serem vistos de longe e atirarem para vales distantes a sua voz a anunciar a hora da oração, ou da vida ou da morte.
Há quem diga até que os sinos eram indiscretos e que, muitas vezes, em lugar de palavras de oração, contavam sem querer o que ia nos conventos, e por eles se vinha a saber o que por lá se passava.
Em Coimbra, contavam-me antigamente que os sinos até conversavam, e se respondiam uns aos outros.
Convento do Buçaco antes da construção do Hotel
No Bussaco, a cada hora de oração tocavam os sinos das ermidas todas dispersas pela mata e, contam crónicas, que o diabo tentara por vezes impedir que alguns frades juntassem a voz do pequeno sino das suas ermidas desertas à dos outros que em cada hora chamavam num coro baixo, com medo do vento e da chuva, à oração.
Buçaco. Capela do Sepulcro
Em Coimbra os sinos eram de menos devoção, e deviam fazer rir muito o próprio diabo.
Quando eu cheguei a Coimbra, explicou-me um dia um velho a voz dos sinos desta terra.
Era ao pôr-do-sol. Vínhamos descendo do Penedo da Saudade para o jardim.
Mosteiro de Santa Teresa. Porta da igreja
Pela porta da igreja de Santa Teresa sumiam-se caladas mulheres de idade, com o ar remediado, que dá a limpeza devota.
Alguns estudantes passeavam no adro.
De dentro vinha o canto rezado das freiras, áspero e delgado.
O sino pôs-se a dobrar, cortando as sílabas.
- Pe … ni … tência…, pe …ni… tência! …
Assim o ouvi, mal mo disse o velho com quem ia, e que andando e sorrindo repetia imitando a voz do sino pe … ni … tência…, pe …ni… tência! …
Quando chegamos ao fundo da ladeira, fez-me o meu companheiro notar a voz doutro sino, que vinha de longe, do convento de Santa Clara, que brilhava alegre na atmosfera dourada do poente.
Vista de Santa Clara. c. 1860. (Passado ao espelho, p. 50)
Pus-me a ouvir o sino, e ele a ensinar-mo a entender.
O som era mais grave, mas duma gravidade de ironia e dizia muito claramente.
- Tan … ta não! Tan.. ta não!
Eu ria-me. Quando ele me chamou a atenção para o sino de Sant’Ana, que se ouvia então e me disse:
- Veja o que diz esse agora!
- Eu sei lá!
- E bem simples: nem tanta, nem tão pouca!
Colégios de Tomar e de Sant’Ana. No primeiro plano a residência do prior-mor de Santa Cruz e, por cima, os Arcos do Jardim. Junto destes o pequeno Bairro de S. Sebastião. (Fototeca BMC. Cota: BMC_A033)
E era verdade. O sino de Sant’Ana, dizia num som delgado, com voz de nariz:
- Nem … tan … ta … nem … tão … pouca! Nem … tan … ta … nem … tão … pouca!
Assim fiquei eu sabendo que quando, às horas de oração o sino de Santa Tereza dizia:
- Penitência, penitência!...
O de Santa Clara lhe respondia:
- Tanta não! Tanta não.
E o de Sant’Ana fechava conceituosamente o coro, repetindo:
- Nem tanta! Nem tão pouca.
E assim fazia eu ideia, do que devia ser a vida destes conventos.
…
Pátio da Universidade e torre. 1869. (Passado ao espelho, p. 55)
Dos da Universidade, tão austeros canta João de Deus:
Toca o capelo, vou vê-lo
E vejo de vária cor
Não doutores de capelo
Mas capelos de doutor.
Esses também a mim me enganaram.
T.C.
Carvalho, J.M.T. Bric-à-Brac. In. Resistência, de 1903.01.29
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