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Numa entrada publicada há algum tempo que teve por base uma comunicação da Senhora Dr.ª Ana Paula Machado, Conservadora no Museu Nacional de Soares dos Reis, do Porto, abordava a existência de uma série de 24 placas de esmalte pintado “subtraídas” ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra.
Prometi, então, voltar a este tema.
Cena da Verónica, integra a série de vinte e seis placas de esmalte pintado
A razão dessa promessa decorreu de, na referida publicação, essa série de placas ser classificada como datando do 1.º terço do Século XVI e como sendo uma das séries sobreviventes mais completa pelo que constitui hoje uma referência incontornável entre as suas congéneres europeias; mais à frente, a autora refere que este conjunto não encontrou na última revisão de programas e percursos do Museu Soares dos Reis, enquadramento adequado, estando presentemente em reserva.
Quer isto dizer, traduzindo para uma linguagem entendível por não especialistas, que as referidas peças estão, há largos anos, devidamente acondicionadas e guardadas, longe dos olhares do público.
Confesso que, ao aperceber-me desta situação, senti uma grande revolta, tendo mesmo escrito uma petição, dirigida ao Ministério da Cultura, que teria d ser, obviamente, apoiada pelo Bispado e pela Câmara de Coimbra, no sentido de solicitar o regresso das referidas placas, ora acondicionadas num qualquer caixote, ao local de onde haviam sido retiradas, isto é, ao Santuário do Mosteiro de Santa Cruz.
Acabei por arquivar a petição, porque já não acredito na eficácia desta forma de participação cívica.
Sinceramente, por esta e por outras razões similares, estou cansado de lutar contra os moinhos de vento da ignirância, do imediatismo da política e do desinteresse dos decisores políticos – de todos os quadrantes – pela nossa história, pelo nosso património e pela nossa cultura.
Peço desculpa pelo meu desabafo.
Em ordem a este tema pretendo hoje chamar a atenção para um estudo – a que voltarei – de Rocha Madail, e no qual colhi as seguintes informações:
«Casa das reliquias» de Santa Cruz
Os esmaltes, que o próprio Diretor interino da Academia de Belas Artes do Porto em 1864 aceitava «terem estado na banqueta do Altar do mesmo Santuário» de Santa Cruz de Coimbra, são vinte e seis preciosíssimas laminas de cobre esmaltado com viva policromia e ouro, medindo 8x10 cm cada, agrupadas em políptico sobre tabuleiro de madeira, e representando cenas da vida de Cristo.
Trabalho das célebres oficinas de Limoges da primeira metade do século XVI, o seu finíssimo desenho segue muito de perto outros tantos passos da coleção conhecida por «pequena Paixão de Cristo», de Albrechr Durer.
Joaquim de Vasconcelos ocupou-se deles no fasciculo 9 da «Arte Religiosa em Portugal», e o Sr. Dr. Armando de Matos dedicou-lhe desenvolvido estudo de identificação em 1934 na revista «Museu»; por informação que então lhe fornecemos, extraída do presente inventário, já nessa data ficou incontroversamente regista a sua proveniência, que Joaquim de Vasconcelos suspeitava ser a «casa das reliquias» de Santa Cruz.
«Casa das reliquias» de Santa Cruz, pormenor 1
«Casa das reliquias» de Santa Cruz, pormenor 2
Fico com a esperança de que este meu lamento incentive outros, mais jovens e com mais força, a lutarem pela devolução das peças ao local de onde nunca deviam ter saído.
. Madail, A. G. R. 1938. Inventário do Mosteiro de Santa Cruz à data da sua extinção em 1834.
. Machado, A.P. A propósito de três itens de inventário. In: O Património Artístico das Ordens Religiosas entre o Liberalismo e a atualidade, n.º 3. 2016. Pg. 161-172
A série de vinte e seis placas de esmalte pintado, com cenas da Paixão, diretamente inspiradas na série de gravuras da chamada Pequena Paixão de Dürer, é talvez o mais enigmático dos três itens a que aqui nos dedicamos, já que nada sabemos sequer sobre a sua entrada no Mosteiro de Santa Cruz.
Coroação de espinhos, último quartel do Século XVI, atelier do Mestre da Paixão de Cristo; esmalte pintado sobre cobre. Museu Nacional de Soares dos Reis (fot. José Pessoa IMC/ MC)
…. Outrora talvez organizadas num pequeno retábulo ou num frontal de altar as pequenas placas foram ao longo do tempo merecendo esporádica atenção por parte dos autores portugueses.
Mosteiro de Santa Cruz, altar da Casa das Relíquias, onde a série das placas de esmalte poderão ter estado aplicadas.
… Em 1914, Joaquim de Vasconcelos dedica-lhes três páginas ao longo das quais propõe a datação da primeira metade do século XVI e sugere a Casa das Relíquias do Mosteiro de Santa Cruz como local da sua instalação no Mosteiro.
A apresentação da série na Exposição de Arte Francesa em Lisboa, em 1934, dá-lhe visibilidade junto de especialistas nacionais e estrangeiros que nesse contexto a classificam como do 1.º terço do Século XVI. Dessa data em diante passará a ser referida na maioria dos estudos especializados neste tema publicados desde os anos 60 na Europa e nos Estados Unidos.
Por ser uma das séries sobreviventes mais completa e uma das raras com registo documental anterior ao Século XIX, constitui hoje uma referência incontornável entre as suas congéneres europeias, razão pela qual, em janeiro de 2008, o Museu Soares dos Reis, em colaboração com o Centre de Recherche Scientifique de la Reunions des musées de France (CRRMF) e o Musée des Arts Decoratifs de Paris (MAD), se candidatou ao programa Eu-Artech com o objectivo de a analisar e inscrever num mesmo banco de dados em que se encontravam já a série da Wallace Collection e peças do MAD. O processo permitiu a revisão da sua datação (agora atribuída aos meados do século XVI e o início do século) e autoria, um atelier ainda em estudo da esfera de Pierre Reymond.
Batismo no Rio Jordão, integra a série de vinte e seis placas de esmalte pintado referida no texto
Cena da Verónica, Batismo no Rio Jordão, integra a série de vinte e seis placas de esmalte pintado referida no texto
Calvário, integra a série de vinte e seis placas de esmalte pintado referida no texto
A série de esmaltes, como aliás parte da arte religiosa da coleção, não encontrou nessa última revisão de programas e percursos, enquadramento adequado, estando presentemente em reserva.
Machado, A.P. A propósito de três itens de inventário. In: O Património Artístico das Ordens Religiosas entre o Liberalismo e a atualidade, n.º 3. 2016. Pg. 161-172
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