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Por outro lado, a Serenata, que, como ritual, era prática frequente desde a época medieval, veio a dominar o imaginário lúdico-musical da cidade oitocentista, assistindo-se, a partir de finais dessa centúria, a várias serenatas levadas a efeito pelos cultores populares, por lugares e ruas do velho burgo, sendo de destacar as «serenatas fluviais» ao longo do rio Mondego, em ocasiões especiais de eventos a comemorar, nomeadamente em tempo de festas da Rainha Santa, em que tocadores, cantadeiras e cantores se faziam transportar em «barcas serranas».
Neste «imaginário» popular importa referir o período, a partir do último quartel do século XIX, em que, num bairro da velha «Alta», habitaram alguns dos mais ilustres cultores populares da cidade – os «Salatinas». Gente alegre e com grande propensão para a música, verdadeira depositária da autêntica memória musical coimbrã, eram eles quem melhor assimilavam e transmitiam às gerações vindouras as “malhas” de composição da Música Tradicional de Coimbra. Assim, até meados do século XX, homens como Alexandre da Silva Louro (1899-1985), alfaiate, serenateiro e cantador de operetas, Fernando Rodrigues da Silva (1915-1964), barbeiro, executante de violão e guitarra, Augusto da Silva Louro (1902-1927), funcionário dos Correios e executante de violão, José Maria dos Santos (1906-1976), funcionário da Biblioteca Geral da Universidade, jornalista e executante de violão, José Lopes da Fonseca (Zé Trego) (1883-1976), barbeiro, funcionário do Magistério Primário, serenateiro e executante de violão, Carlos da Silva Moeira (1904-1976), funcionário da Câmara Municipal, cantor e serenateiro, conhecido por o “rouxinol de Coimbra”, Raul de Carvalho Freitas (1931-?), bancário e cantor, Abílio Gaspar Madeira (1901-?), funcionário da Imprensa da Universidade e executante de violão, Carlos Alberto Louro da Fonseca (1930-1995), executante de violão, e Flávio Rodrigues da Silva (1902-1950), barbeiro e executante de guitarra, entre outros, fazem parte de uma plêiade de cultores «salatinas» a quem a Música Tradicional de Coimbra muito deve. Todavia, a partir de 1942, com a criminosa demolição da parte da «Alta» e o consequente desmoronar de todo o «imaginário» popular tradicional, assim como o posterior falecimento daqueles músicos populares, esta música foi perdendo as referências humanas que sempre a haviam mantido como uma tradição cultural vida de cidade. Porém, é bom não esquecer que existe toda uma riqueza etno-musical popular a redescobrir para que se não pense que Coimbra é, única e exclusivamente, uma terra de estudantes.
Cravo, J. 2012. Os Salatinas e a Música Tradicional de Coimbra. In: Músicos Salatinas. 1880-1947. Exposição Fotográfica e Documental. Coimbra, Câmara Municipal de Coimbra, pg. 17-18
No âmbito da sua música regional e local, Coimbra sempre foi um «caldeirão de culturas», fruto do cruzamento de diversas práticas musicais oriundas de diferentes regiões do País e do Estrangeiro que, uma vez na cidade, conviviam com duas culturas musicais autóctones mas reciprocamente influenciáveis: a «popular», não só proveniente do mundo rural que de Coimbra estava próximo, mas, igualmente, do próprio povo da cidade; e a «erudita», proveniente de outros grupos sociais que habitavam o velho casco urbano, tais como a «burguesia» e alguma «nobreza».
Estas danças e cantares estão na génese de uma música, assimilada e recriada pelo povo de Coimbra que, no fundo, transmitia algo de si e assim a divulgava, qual marca própria, local, daqueles que a cultivavam – a «Música Tradicional de Coimbra» – constituída por um repertório de «canções de trabalho, cânticos de embalar, cantigas de amor, baladas, trovas, noturnos, descantes, romances», canções relacionadas com o «Sagrado», o «Religioso» e o «Natal», etc., divulgadas pela cidade em festas e romarias e nas «fogueiras do S. João» – uma manifestação etno-musical que em Coimbra remonta, pelo menos, ao século XV – onde as «tricanas» (mulheres do povo de Coimbra e dos arredores) e os «futricas» (habitantes da cidade não-académicos) cantavam e dançavam e onde os estudantes (os “sacos de carvão” na gíria popular) marcavam presença, nem sempre muito pacífica nas suas relações com os populares.
As danças das fogueiras chamavam-se «modas», dançadas em roda – as «danças de roda» – com mandador e com uma coreografia muito simples à volta de um mastro central onde se situavam os tocadores, os cantadores e as cantadeiras. A partir da década de 70 do século XIX, surgiram fogueiras com um estrado – «pavilhão» – onde, numa salutar rivalidade musical, atuavam ranchos de diversos bairros da cidade que previamente ensaiavam e bailavam um repertório criado para esse tempo de folguedos com base em «cantigas, marchas, barcarolas» e “alguns fados para as fogueiras” – os «fados coreográficos» – que, como estrutura e modelo de dança, mais não eram do que músicas populares locais cantadas e dançadas de roda, em ambiente de grande ruralidade – que Coimbra sempre foi – e ligadas a primitivas formas de cança que estão na base do «Folclores de Coimbra».
A Música Tradicional de Coimbra tinha como instrumentos tradicionais do seu toque, o «machinho» (espécie de cavaquinho), o «bandolim», a «guitarra», o «violão» (que na gíria popular da cidade dava pelo nome de “bacalhau”), o «cavaquinho», o «violino», a «rabeca», a «flauta» e a «viola toeira» (principal instrumento popular de Coimbra no século XIX), entre outros.
A partir dos anos 20/30 de Oitocentos, Coimbra, cidade de fortes tradições musicais, viu, incluído no seu repertório, vários géneros musicais oriundos da Europa e da América do Sul, como sejam a «valsa», a «sonata», o «tango», a «polca», a «mazurca», o «lundum», o «lied», etc., dos quais absorveu o suficiente para a criação de novas sonoridades, mas sempre matricialmente identificáveis com a toada regional e local da cidade.
Cravo, J. 2012. Os Salatinas e a Música Tradicional de Coimbra. In: Músicos Salatinas. 1880-1947. Exposição Fotográfica e Documental. Coimbra, Câmara Municipal de Coimbra, pg. 17
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