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O SEGUNDO PERÍODO DE PERMANÊNCIA EM COIMBRA (Continuação)
Mais explícita e pormenorizada é a descrição de Adelino das Neves e Melo, o íntimo do romancista:
«Na primeira casa em que habitou aos Arcos de S. Bento, éramos vizinhos e quase diariamente o visitava: umas vezes encontrava-o rebuçado no seu capote alvadio junto ao fogão, mesmo quando a temperatura dispensava tal calorífero; era porém, muito friorento, e nunca achava de mais as peliças e os abafos». Mas o escritor não podia deixar de produzir, e Neves e Melo disso nos dá conta: «Noutras vezes, e eram as mais frequentes, via-o à mesa do trabalho, tendo um maço de tiras de papel de cada lado, onde escrevia dois assuntos diversos ao mesmo tempo, descansando de um para continuar no outro. Parece-me que estou a ver o seu gabinete de estudo, cercado de elevadas estantes com a sua preciosa livraria, a vasta mesa com o enorme tinteiro já meu conhecido, rimas de papel e de brochuras, e a inseparável caixa de charutos; várias fotografias e alguns quadros a óleo cobriam as paredes, que não eram ocupadas pelos livros».
Publicado em Coimbra. Número único que contou com a colaboração de Camilo. Op. cit., pg. 64
… Para minorar os seus padecimentos, contou o romancista com a assistência médica de Lourenço de Almeida Azevedo e de João Jacinto da Silva Correia, o conhecido Dr. João Jacinto, como nos informa Maximiano Lemos. Para este último, existe mesmo uma carta de Camilo, datada de 30 de Janeiro de 1876:
«Il.mo Ex.mo Sr.
Uma das profundas reformas que vou fazer aos meus maus costumes é abster-me completamente de leituras que tenham cheiro patológico. Ajude-me V. Ex.a como amigo – já que me quer dar a honra de não ser exclusivamente médico, – a depurar as minhas pobres estantes de algum livro infamado de cúmplice em todas as minhas enfermidades de terminação grega.
Levantei-me hoje; mas as pernas arrastam-me para a cama: isto é que me parece não poder atribuí-lo aos livros.
De V. Ex.ª
Amigo agradecido e v.o
Castelo Branco
de V. Ex.ª
30 de Janeiro de 1876
Camilo Castelo Branco. Pintura de João Carlos, existente na Biblioteca Municipal de Coimbra. Op. cit., pg. 5.
Quando a saúde o permitia, Camilo, acompanhado do seu terra-nova, percorria as ruas de Coimbra. António Cabral descreve-o assim:
«Recordo-me com extrema nitidez da sua figura singular e original. Neste momento, em que evoco o seu grande espírito, estou vendo, como nos meus tempos de rapaz, o vulto inconfundível do escritor genial. Estatura passante de meã, rosto lavrado pela varíola assoladora, bigode crespo e farto, corpo ossudo e já mirrado pela doença implacável, cabeleira romântica a fugir sob as abas direitas do chapéu alto, capa espanhola a pender-lhe dos ombros magros e secos. Atrás dele, o fiel terra-nova, de pelo ondeado e sedoso, a seguir-lhe os passos vigorosos. Assim o vi. Assim ficou para sempre gravada na minha memória a imagem de Camilo Castelo Branco.»
Refere ainda António Cabral, que algumas vezes o viu «descer vagarosamente a ladeira do Castelo, pensativo, meditabundo, com a cabeça inclinada para a terra, como quem vai em doce e íntima conversa com a imaginação fervente, sempre em contínuo batalhar».
Também Teixeira de Carvalho, o Quim Martins, como ficou conhecido em Coimbra aquele médico e historiador coimbrão, nos dá o seu testemunho:
«Vésperas de feriado! Corpo deitado a correr, íamos todos, rua dos Grilos abaixo, com a alegria dos rapazes ao sair das aulas, quando o da frente estacou de repente, ao virar da esquina, e nos disse rápido:
- O Camilo!
Olhei.
Na rua, não havia mais que um homem parado, de costas, capa à espanhola traçada, chapéu alto de abas direitas, olhando pelas escadas que vão para os Palácios Confusos, como se esperasse alguém.
Palácios Confusos
De repente, voltou-se e pôs-se a andar distraidamente para nós, que ocupávamos a rua toda, estendidos em linha de batalha.
Ao cimo das escadas, apareceu então um terra-nova, de pelo preto e anelado.»
Andrade, C.S. 1990. Coimbra na vida e na obra de Camilo. Coimbra, Coimbra Editora.
O alteamento das margens do Mondego … por razões de salubridade e saúde pública, apontado como uma das maiores necessidades da cidade desde o início do século [XIX]. Apesar das várias obras empreendidas, todas se revelavam incapazes de conter as águas do Mondego que continuava a invadir as ruas da Baixa.
Em 1872, Lourenço de Almeida Azevedo, pouco tempo depois de tomar posse, solicitou ao Governo a reconstrução da Ponte, no cumprimento da carta de lei de 10 de Setembro de 1861 e suspendeu as obras no cais, quer das Ameias quer do Cerieiro, até que se elaborasse um plano em harmonia com a Direção de Obras de Melhoramento do Mondego e Barra da Figueira que estava a desenvolver um projeto de defesa da cidade contras as inundações.
Adolpho Loureiro “Projecto da rectificação da margem direita do Mondego…” 1872
Direcção de Obras do Mondego e Barra da Figueira “Projecto do encanamento do Rio Mondego …”1869
O projeto de retificação da margem direita do Mondego entre Coimbra e o porto de Pedra e defesa da mesma cidade contras as inundações, mandado executar pela portaria … de 3 de Outubro desse mesmo ano, +revia a construção de “2 diques insubmersíveis” mas, embora as obras fossem da responsabilidade da direção de obras do Mondego, o município tinha de comparticipar parte das obras e proceder a um conjunto de obras, como o alteamento da Rua Direita.
Ainda nesse ano o engenheiro Mathias Cypriano Heitor Macedo … apresentou o projeto definitivo da nova ponte e no ano seguinte iniciaram-se os trabalhos de demolição do tabuleiro manuelino.
Adolpho Loureiro, “Projecto da rectificação da margem direita do Mondego entre Coimbra … . Perfis transversais”. 1872.
… Com efeito, este grande aterro permitiu transformar a marginal entre as Ameias e a Ponte, num verdadeiro Passeio Público devidamente ajardinado, para além de permitir criar o Parque Público, entre a Estrada da Beira e o rio.
s/n, “Projecto do alargamento do Caes de Coimbra, Hipotese 2”
… implicou o aterro de um pilar da ponte, aproximadamente 35 metros.
Acresce que como forma de compensação pela implantação dos carris ao longo do cais, o governo comparticipou o projeto delineado pelo município de prolongamento do parque público até ao Porto dos Bentos, contribuindo para a expropriação e para o aterro da Ínsua entre o referido porto e o [do] Cerieiro. Em resposta e como forma de agradecimento pela colaboração do Ministro das Obras Públicas Comércio e Indústria responsável por estas obras, o município denominou o primeiro troço da Estrada da Beira, convertido numa ampla avenida arborizada, Avenida Emídio Navarro.
Calmeiro, M.I.B.R. 2014. Urbanismo antes dos Planos: Coimbra 1834-1924. Vol. I. Tese de doutoramento em Arquitetura, apresentada à Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, pg. 238-247
Quando em 1835 foi solicitada a cedência do antigo mosteiro de Santa Cruz para albergar as várias repartições públicas pretendia-se, com pragmatismo resolver os problemas práticos da necessidade de instalação das várias repartições publicas, não só da Administração do Concelho e da Câmara Municipal, mas também das repartições judiciais e distritais.
… Segundo a portaria da Comissão Interina do Crédito Público de 30 de Novembro de 1835, o velho mosteiro foi posto à disposição do Administrador-geral do Distrito para Casa da Audiência do Júri, Cadeia, Câmara e Administração do Correio e, no dia 17 de Dezembro seguinte foi entregue ao município. No mesmo dia a vereação fez a vistoria e a divisão do conjunto edificado pelas várias repartições, reservando o restante para arrendar e assim custear as obras de conservação.
Esta distribuição previa a simples apropriação dos espaços, supondo apenas intervenções pontuais, como a abertura de portas ou a construção de escadas de madeira, o que parece ter conduzido a que algumas repartições acabassem por se implantar noutros locais. Por outro lado, foram-se instalando outros serviços como a Roda dos Expostos no antigo Dormitório do Pilar, a Mala-Posta e a Escola Mutua, junto à horta de Santa Cruz e a cadeia junto ao antigo pátio.
Em 1856, o presidente … propôs uma nova divisão entre a Câmara Municipal e as várias Repartições Distritais.
Planta com esquema das ocupações do antigo Mosteiro (c.1856)
A primeira referência à necessidade de «reconstruir a casa das Sessões da Câmara e suas dependências… segundo as regras da Arte», data de 1845… mas provavelmente por falta de verbas o assunto foi esquecido.
… Vinte anos depois [18 Janeiro de 1869], [a Câmara] solicitou a colaboração da Rainha alegando que: «esta vereação não tem pessoal technico de que possa dispor para os estudos que demanda aquella obra.»
Em resposta … o Governo clarificou que … devia ser encarregado o engenheiro … da Repartição Distrital as Obras Públicas.
… em Março de 1875 a Câmara voltou a alegar que: «Para que estas obras se emprehendam com um bom resultado são necessários estudos importantes, feitos por pessoa de competência e que conheça as necessidades de cada uma das repartições».
… Novamente este pedido não foi atendido e a vereação que se seguiu, presidida por Lourenço de Almeida Azevedo, determinada neste empreendimento, contratou o engenheiro da Academia Politécnica do Porto, Alexandre Simões da Conceição, encarregando-o dos referidos estudos.
Cópia do desenho da fachada dos Paços do Concelho de Coimbra, adaptação do Mosteiro de Santa Cruz. Século XIX
As obras iniciaram-se ainda neste ano, mas não sem antes se ter enfrentado uma acesa polémica levantada pelo jornal “O Conimbricense”.
Alçado do velho mosteiro. 1.ª metade séc XIX
… Em causa estaria a alegada destruição do antigo mosteiro e a perda do seu valor artístico e monumental, mas o município [argumenta] que «É metade d’um dormitório que nada recomenda… É uma mole de alvenarias sem gosto, sem comodidade, sem arte, sem elegância, enfim sem titulo algum que justifique a sua conservação».
Paços do Concelho na atualidade
… No dia 13 de Agosto de 1879, a vereação reuniu pela primeira vez no novo edifício e em Abril de 1881 foi inaugurado o tribunal instalado no piso inferior, todavia as obras arrastaram-se até 1886.
Calmeiro, M.I.B.R. 2014. Urbanismo antes dos Planos: Coimbra 1834-1924. Vol. I. Tese de doutoramento em Arquitetura, apresentada à Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, pg. 212-218
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