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Na estação de Coimbra, e diante desta, estavam milhares de pessoas. As deputações eram muito numerosas e com os mais variados trajes. Perante as fisionomias, sentíamo-nos numa cidade inteligente.
Lentes da Universidade de Coimbra. c. 1898
Os professores da Universidade usam túnicas negras e mantilhas cujas cores variam conforme a faculdade. A cabeça está coberta com um barrete de professor de forma especial e da mesma cor da mantilha.
Far-vos-ei a descrição destes trajes universitários numa outra carta, quando vos falar da própria cidade de Coimbra e de uma solenidade singular da qual não há nenhuma ideia no resto da Europa, quero dizer, da cerimónia de um doutoramento. São solenidades legadas à Universidade pela Idade Média e extremamente curiosas. Tive verdadeiramente sorte de chegar a Coimbra no dia em que a faculdade se enriqueceu com mais um doutor.
Voltemos à viagem real,
As carruagens do Rei, enviadas de Lisboa, esperavam em Coimbra. O vasto pátio da estação estava cheio. Era um oceano de cabeças.
À entrada do comboio na estação, as mesmas cerimónias que em Santarém.
[Uma receção solene estava preparada … Uma deputação liderada pelo governador civil (o governador civil é o perfeito) e os membros da Câmara esperava … Em Portugal, nas receções, o antigo costume do beija-mão foi conservado. Toda a gente, os mais altos funcionários do Estado, os generais, oficiais, magistrados, beijou a mão do Rei, da Rainha e dos Príncipes.
Dr. António Luiz de Souza Henriques Seco, presidente da vereação em 1863, vestindo o traje e exibindo as insígnias próprias do cargo (AHMC)
Os membros da Câmara Municipal usavam trajes, que são o meio-termo entre a batina do padre e a toga do advogado francês.
Estandarte e varas da Câmara de Coimbra (AHMC)
Têm na mão, como atributo da sua dignidade, um bastão comprido, chamado em português de «vara», no cimo do qual se encontram pintadas as armas de Portugal ou da cidade.
Todas estas deputações eram apresentadas a suas majestades pelo governador civil. O Rei e a Rainha [D. Luís e D. Maria Pia] conservavam-se na plataforma do salão real.]
… Faltei à receção da Família Real em Coimbra, ouvindo apenas os vagos ecos dos vivas, os gritos lançados em honra do Rei, da Rainha, dos Príncipes e da Casa de Bragança.
Pude ver nas varandas, ornamentadas à moda italiana com tapeçarias e cortinados de todas as cores, muito lindas senhoras.
…. A carruagem real era literalmente bombardeada com flores, lançadas das varandas.
O Rei, a Rainha e os príncipes tinham os seus aposentos preparados nos paços da Universidade, no lugar mais alto da cidade, tal como em Lisboa, em anfiteatro.
Estudante. Sec. XIX. Década de 70. Com o chapéu referido no texto
Os estudantes de Coimbra usam compridas túnicas pretas semelhantes às dos padres. Andam de cabeça descoberta, não querendo usar o chapéu regulamentar, que é deselegante. Fica surpreendido, que vem pela primeira vez a Coimbra, por encontrar a cada passo ou no passeio público um tão grande número de jovens descobertos.
Na Universidade, a Família Real dirigiu-se à capela onde se cantou um «Te Deum». Depois o Rei e a Rainha foram conduzidos debaixo de um pálio aos aposentos que estavam destinados a suas majestades.
Os convidados do comboio real e os membros de todas as faculdades, com reitor e decanos à frente, dirigiram-se a um salão do primeiro andar onde se realizou a receção. A cerimónia do beija-mão, incontornável em Portugal, recomeçou.
Cada um de nós deveria instalar-se na cidade, em hotéis, com a recomendação de estar no dia seguinte, às 6h30 da manhã, na estação.
Wolowski, B. A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem. Edição, introdução e notas de Hugo Silveira Pereira. Prefácio de Eduardo Beira. Vila Nova de Gaia, Inovatec.
A real jornada iniciou-se na manhã do dia 2.8.1882 em Santa Apolónia, estação central de Lisboa … tendo chegado a Coimbra, onde a comitiva deveria pernoitar, por volta das 5 horas da tarde.
… Coimbra deixou uma excelente impressão ao autor, sobretudo todo o cerimonial de um doutoramento … à noite, depois de um «Te Deum» e de uma cerimónia de beija-mão … o Rei foi acolhido nos Paços da Universidade enquanto o resto dos convidados se hospedou em hotéis.
Estação da Figueira da Foz. O Occidente, 142, Lisboa, 1882.12.01, p. 265
…. No dia seguinte, far-se-ia a inauguração da linha propriamente dita… às 10 horas … na Figueira da Foz … o bispo de Coimbra daria início à cerimónia da inauguração, benzendo as sete máquinas que deveriam servir nesta via-férrea.
…. À 1 hora da tarde o comboio arrancou da Figueira da Foz … a jornada tinha o atrativo humano, da turba que acorria à linha e às estações festejando com entusiasmo, bandeiras, vivas, foguetes e filarmónicas tanto a passagem dos monarcas com a inauguração da nova estrada de ferro. Uma descrição [o texto de Wolowski] que contrasta claramente com a fornecida pelos jornais da oposição ao governo para quem «o cortejo parecia um enterro»
Como seria de esperar, a inauguração foi aproveitada politicamente pelas duas maiores fações políticas da altura: o Partido Regenerador, que governava o País, e o Partido Progressista, que militava na oposição.
Completam o texto do referido livro várias ilustrações extraídas da revista satírica António Maria onde Rafael Bordalo Pinheiro, com a sua crítica mordaz e através do seu traço próprio, retrata magistralmente tal aproveitamento político.
Dessas ilustrações escolhemos as seguintes:
Viagem régia. Pormenor. Caricatura de Bordalo Pinheiro (António Maria, n.º 167, pg. 255)
Guardas da comitiva real segundo a imprensa do governo. Caricatura de Bordalo Pinheiro (António Maria, n.º 167, pg. 253)
Guardas da comitiva real segundo a imprensa da oposição. Caricatura de Bordalo Pinheiro (António Maria, n.º 167, pg. 260)
A viagem do Rei segundo a visão do governo e da oposição. Caricatura de Bordalo Pinheiro (António Maria, n.º 168, pg. 261)
Seja-me permitido inserir uma nota pessoal.
Embora tivesse tido um percurso político e continue a manter as minhas convicções de sempre, neste momento encontro-me totalmente desligado da política ativa. Não posso mesmo deixar de manifestar a minha tristeza pelo contexto atual, apesar de pouco saber, pois recuso-me a ver telejornais e a ouvir “comentários” políticos. Mas, ao preparar esta entrada não consegui deixar de refletir sobre a similitude das sátiras de Rafael Bordalo Pinheiro, publicadas há 136 anos, e a realidade política dos nossos dias. De facto, é triste constatar que em quase século e meio nada aprendemos (nem evoluímos) no campo da política.
Wolowski, B. A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem. Edição, introdução e notas de Hugo Silveira Pereira. Prefácio de Eduardo Beira. Vila Nova de Gaia, Inovatec.
A IniciativaTua – cuja obra meritória em prol da memória das linhas do Douro é de assinalar – promoveu a edição, em livro, do minucioso texto redigido pelo noticiarista de origem polaca Bronislas Wolowski que se identificou como sendo o único jornalista estrangeiro que assistiu, em 1882, à inauguração da linha da Beira Alta. O livro ora colocado nas bancas apresenta-se enriquecido pela introdução de Hugo Silveira Pereira e pelo prefácio de Eduardo Beira que nos permitem conhecer o percurso que levou à construção daquela linha ferroviária.
Quando Portugal pensou em construir caminhos-de-ferro, o principal objetivo passava por ligar Lisboa e o seu porto à Europa de forma mais rápida e direta possível.
…. Quanto ao modo como essa ligação se faria, as dúvidas eram imensas, em virtude da falta de conhecimento estatístico e orográfico do País por parte dos governantes nacionais (o primeiro mapa moderno de Portugal elaborado com bases científicas data de meados da década de 1860) ... Se era óbvio que a via férrea se deveria dirigir à fronteira leste da Beira ou do Alto Alentejo, já a determinação do ponto preciso da raia a atravessar e a diretriz em Portugal eram questões mais complexas.
Como no livro se encontram minuciosamente referidas as possíveis opções que foram sendo avaliadas ao longo do processo, limitar-nos-emos aqui a assinalar as que apresentam Coimbra como ponto de partida ou como local de passagem.
Equacionou-se a possibilidade de se construir uma linha pela Beira interior, tendo-se ordenado estudos entre 1858 e 1861.
…. O terceiro projeto … era mais consistente e anunciava a linha da Beira como a base de todos os caminhos-de-ferro nacionais (seguia pela linha do Norte até Miranda do Corvo, divergindo depois por Lousã, Arganil, Seia, Celorico, Almeida e Valladolid …) a alternativa pela margem direita do Mondego, por Pampilhosa, Santa Comba Dão, Mangualde e Celorico da Beira era descartada por ser demasiado difícil.
…. Em 28.3.1864, Rocca e Piombino & Companhia propõem-se estudar um caminho-de-ferro entre Lisboa e Almeida passando por Sintra, Mafra, Leiria e Coimbra … No Parlamento, rapidamente se estabeleceram movimentações para colocar a linha da Beira na lista de prioridades governamentais… O governo parecia acompanhar os desejos dos deputados ao incumbir Sousa Brandão de concluir os estudos sobre a ferrovia de Coimbra a Almeida.
…. Em 1865, todavia, um rude golpe seria vibrado por Espanha e pelo Conselho Geral de Obras Pública … não considerava a linha da Beira Alta de primeira importância.
Proposta de vias-férreas na Beira Interior
…. Na década de 1870, voltaram a reunir-se condições políticas e económicas para a retoma da construção … No entanto a companhia [Companhia Real dos Caminhos de Feros Portugueses] só se interessou pela linha da Beira Alta, incumbindo o engenheiro Félix Combelles do seu estudo (em 30.6.1873) … pelo seu lado Sousa Brandão voltara-se para um traçado iniciado na Pampilhosa. Assim, às soluções Coimbra (de Chelmichi) e Mealhada (de Couceiro), juntava-se agora as alternativas Pampilhosa e Mogofores.
….Apesar da qualidade do projeto de Combelles, a Junta Consultiva de Obras Públicas chamava a atenção para a necessidade de mais exames, mas o governo optaria por aprovar os estudos de Combelles (portaria de 23.9.1873) e no ano seguinte propunha (a 21.2.1874) a construção do caminho-de-ferro da Beira Alta.
…. É nesse sentido que Boaventura José Vieira e Sousa Brandão são incumbidos da elaboração de anteprojetos. Do primeiro (datado de Novembro de 1874) resultou o regresso da estação inicial a Coimbra. A linha contornava depois a Cidade por Coselhas, Santo António dos Olivais e Chão do Bispo antes de chegar às Torres do Mondego, onde entrava na margem direita do rio, indo até à foz do Dão.
…. O início da linha da Beira Alta em Coimbra era elogiado, mas a opção Pampilhosa seria aceitável se melhorada, pois traduzir-se-ia numa construção menos dispendiosa.
Estação da Pampilhosa
O Occidente, 140, Lisboa, 1882.11.11, p. 252
… Face à impossibilidade de contratar uma companhia, o governo propõe a construção da linha por administração direta do Estado … desde a Pampilhosa.
Proposta final de rede da AECP [1877)
Pela lei e pelo contrato, a linha da Beira Alta começava na Pampilhosa, pelo que depressa se começou a pensar em lhe conceder uma saída marítima, prolongando-a até à Figueira da Foz.
Wolowski, B. A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem. Edição, introdução e notas de Hugo Silveira Pereira. Prefácio de Eduardo Beira. Vila Nova de Gaia, Inovatec.
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