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Desci ao vale por um caminho que representa um outro já multissecular. Fui ter ao sítio da Fonte Nova, Fonte dos Judeus no séc. XII e ainda assim chamada, já partidos, no ano de 1548. A fonte demorava outrora no prédio novo do começo da avenida, acima do mercado.
A Fonte Nova, na localização descrita.
Recordamo-nos todos como, durante as obras em que o veio da água foi cortado, caía do alto um jorro, cristalino e abundante, numa época final de quatro anos de sequeira, tal qual a alma perene do povo de Israel.
Segui pela rua, ladeando à minha esquerda o terreno inicial do almocavar
Segui pela rua, ladeando à minha esquerda o terreno inicial do almocavar ou cemitério dos judeus que irregularmente ia pela encosta até à ladeira do Castelo, de limites indefiníveis hoje.
Entrei de vez na rua, repetindo, como tantas vezes o tenho feito: –que restará nestas paredes das velhas construções que Israel aqui levantou? Nada que apareça nos exteriores. As casas da época manuelina já são posteriores a sua saída. Os cristãos renovaram tudo e muitos já aí habitavam a esse tempo.
É a sina de Israel: passou por toda a terra, regou-a com o seu sangue e com lágrimas das maiores agonias e, logo que desaparece, os seus vestígios eliminados também.
Aqui estiveram séculos, contribuíram para a riqueza nacional; tinham o comércio e a indústria, num tempo em que os aborígenes só podiam e sabiam cavar a terra para o senhor dela e este, acabado o período da conquista, vivia na ociosidade e na intriga.
Vítimas de ódios mais económicos do que raciais ou religiosos que, nascidos no resto da Europa, abateram com uma ferocidade na Península, quebrando aquele viver harmonioso até ao século XIV, que foi aqui o de cristãos, judeus e muçulmanos sujeitos, desapareceram com a mesma brutalidade que os próximos anos passados viram desencadear-se.
Israel é o novilho gordo que todos os povos imolam. Na sua vida milenária só teve o descanso rápido dos reinados de David e de Salomão.
Imagem acedida em: https://www.coisasjudaicas.net/2011/04/o-significado-das-roupas.html
… Foi neste momento que rápido como relâmpago e esvanecente como alucinação, passou diante de mim a nobre figura do grande arrabi de Coimbra, a labita flutuante, os tefilins ligados e as correias soltando-se, como quem vem da sinagoga no dia ritual.
Depois de pousar em mim um olhar profundo, levantou as mãos descarnadas e translúcidas e eu ouvi:
«Profetisa sobre a terra de Ysrael e dize aos montes, outeiros, rios, e vales: assi diz o Senhor D.: Em meu zelo e meu fervor falei quando padecestes a injúria recebida das gentes, pela qual levantei minha mão para que padeçam também as gentes que cerca de vós outros estão a vossa mesma injúria; e vós, montes de Ysrael, produzireis vossas árvores e ao meu israelítico povo dareis a comer vosso fruto. Isto certo está já para vir, porque eu a vós tenho, ó montes de Ysrael, e por vós olharei; sereis lavrados e semeados e eu multiplicarei em vós homens, os da casa de Ysrael».
Recordei-me, eram as palavras de Samuel Usque, nascidas no coração, na esperança dum português de Israel. Na terra dos avós combatem hoje, com a fé multissecular e, mesmo que vencidos agora, Israel virá a possuir de novo a terra que foi sua; virão de todos os pontos da terra, do setentrião ao meio-dia, do levante ao ocaso, combatentes, e o lar restaurado de Israel renovará as maravilhas da raça.
Esta é também a voz antiga judiaria de Coimbra.
Diário de Coimbra, 1947.10.27.
Gonçalves, A. N. 2019. António Nogueira Gonçalves. Colaboração em Publicações Periódicas. Coordenação de Regina Anacleto e Nelson Correia Borges. Prefácio de José de Encarnação. Coimbra, Câmara Municipal. Volume II, pg. 483-485.
Neste último Sabat do mês de Hexevan da era da criação do mundo de cinco mil setecentos e oito [1947] – bendito e Eterno Deus de Israel – os meus olhos de mortal viram a sombra do grande arrabi da judiaria de Coimbra.
Bem pouco preparado estava para tal encontro.
Dia de maravilha esse: luminoso, tépido, a atmosfera pura como frequentemente acontece no outono, as distâncias nítidas e o ambiente vizinho dum encanto subtil. A luz trespassa-nos e convida-nos a gozar estas horas únicas que a Natureza dá antes de nos mergulhar nos sombrios nevoeiros e no horror do frio.
Eis-me por aí à toa, entregue ao prazer do momento.
Errando por Montarroio encontrei-me numa varanda natural, voltado para cidade velha, mais aliciante nesta luz dourada. Parei a olhar para a antiga judiaria, a rua do Corpo de Deus.
Posição sugestiva, hoje que se vê poeticamente o passado, posição de deserdado seria outrora.
Passava a muralha pela parte de trás, servindo de base agora ao Colégio Novo
Passava a muralha pela parte de trás, servindo de base agora ao Colégio Novo. Deste ponto o terreno inclina-se violentamente, em escarpas sucessivas, até atingir as linhas demarcadas pela Visconde da Luz e pelo terreno onde assenta o café de Santa Cruz, a sacristia, etc. alongando-se pela antiga Ribela acima.
Rua de Corpo de Deus, nos anos 50 do século passado
Havia um socalco levemente mais largo e nele se alcandoraram as casarias do gheto coimbrão, tendo dois acessos, um para o lado da Calçada e outro para a Fonte Nova; barricados estes, transformavam-se quase em fortaleza, bem precária contudo.
Desci ao vale por um caminho que representa um outro já multissecular. Fui ter ao sítio da Fonte Nova.
Vale da Ribela e Rua de Entremuros. Imagem da coleção particular do Dr. Branquinho de Carvalho
Pode ver-se de longe esta modelação forte e nobre, sempre repelida de cristãos, nervo do comércio e progresso deles, lançada aqui, como quase em toda a parte, fora das muralhas, como primeira vítima oferecida aos invasores.
Pode ver-se longe esta modelação natural do terreno, por intermédio de certas linhas que servem como que de curvas de nível e que são: a do Colégio Novo, no alto, a da rua do Corpo de Deus, a da parte traseira das casas desta, os diversos socalcos dos quintais até ao ângulo inferior, que serve de esporão terminal aquele dorso da colina, formado pelo ângulo da Visconde da Luz e da linha da rua das Figueirinhas. Representa esta (modificada pelos crúzios) uma estreita vereda que levava à Porta Nova e que nos serve hoje para avaliar rapidamente o declive do terreno.
Pode-se ver de longe esta modelação forte e nobre, sempre repelida de cristãos, nervo do comércio e progresso deles, lançada aqui, como em quase toda a parte, fora das muralhas, como primeira vítima oferecida aos invasores.
Gonçalves, A. N. 2019. António Nogueira Gonçalves. Colaboração em Publicações Periódicas. Coordenação de Regina Anacleto e Nelson Correia Borges. Prefácio de José de Encarnação. Coimbra, Câmara Municipal. Volume II, pg. 483-485.
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