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GIL VICENTE E O SIMBOLISMO DAS ARMAS DE COIMBRA [Conclusão]
A existência da representação da serpe nas armas de Coimbra pode permitir que se teçam alguns comentários sobre outras possibilidades de enredo da peça que Gil Vicente não aproveitou na sua narração. Este móvel está documentada desde a Idade Média nas representações plásticas das armas daquela cidade e é ilustrado no frontispício da obra de Inácio de Morais - Conimbricae encomiu[m].
Figura 15 – Serpe, detalhe das armas de Coimbra. Frontispício da obra de Inácio de Morais (Morais, 1554, frontispício)
... Para a ação da peça há uma personagem fulcral, o terrível Monderigón, que, de acordo com o argumento, motiva as armas, mas estranhamente, apesar da sua importância não surge representada nas mesmas. Curiosamente, trata-se de uma personagem que é descrita mais do que uma vez como um dragão. Logo no início da peça o Lavrador refere-se-lhe dizendo que "(...) Dios / (...) consentió que un dragón / me hiciese viudo della" e mais tarde Liberata evidencia-o dizendo: "Sois drago y habláis humano." Tratando-se de um dragão, bem que poderia ser representado por uma serpe alada, algo que, estranhamente, não foi aproveitado por Gil Vicente ao ficcionar estas armas e que poderia ser facilmente feito. A confusão entre estes dois animais fantásticos na Heráldica é, aliás, demonstrada na leitura simbólica das próprias armas nacionais, que a tal se prestam pelo seu timbre, descrito por uns como uma serpe e por outros como um dragão,
Figura 16 — Timbre do brasão-de-armas do rei de Portugal. Detalhe de iluminura do armorial de António Godinho Livro da nobreza e perfeição das armas dos reis christãos e nobres linhagens dos reinos e senhorios de Portugal (Godinho, 1521-1541, f. 69
CONCLUSÃO
Relativamente à matéria heráldica, considera-se que, até ao presente, nenhuma das explicações para as armas de Coimbra é devidamente fundamentada e esclarecedora.
Perante o fantasioso texto vicentino pode-se concluir que o conhecimento do simbolismo das armas adotadas por Coimbra já se havia perdido no início do século XV.
Assim, o presente texto, parte ínfima de uma muito mais vasta pesquisa, limitou-se ao levantamento e evolução das armas de Coimbra e a fazer uma crítica à interpretação vicentina das mesmas. Considera-se que a leitura simbólica da heráldica da cidade de Coimbra deverá ser buscada na iconografia medieval. Assim, a pesquisa será continuada com o levantamento das outras explicações aduzidas para as armas da cidade e levará certamente a uma proposta de releitura simbólica das mesmas. Mas por agora, para terminar, sejam usadas as palavras com que mestre Gil encerra a Comédia da Devisa da Cidade de Coimbra: "E assi fenece esta comédia, saindo-se com sua música. / Laus Deo."
Fig. 18 – Final da comedia sobre a devisa da cidade de coimbra (Vicente, 1562, f. 113v.)
Alexandre, P.M. Uma patranha heráldico-genealógica de Gil Vicente: «A comedia sobre a devisa da cidade de coimbra» e o brasão-de-armas de Coimbra. In: Alicerces. Revista de Investigação, Ciência Tecnologia e Arte. Ano VI, n.º 6. 2016, julho. Lisboa, Instituto Politécnico de Lisboa. Pg. 65-88. Acedido em https://repositorio.ipl.pt/bitstream/10400.21/8644/1/revista_alicerces6_2016_pv.pdf.
GIL VICENTE E O SIMBOLISMO DAS ARMAS DE COIMBRA [Cont.]
O leão
O ataque do Leão a Monderigón é a justificação vicentina para o aparecimento deste importante animal heráldico no brasão da cidade de Coimbra3. Há várias possibilidades de leituras simbólicas para o leão em termos heráldicos e não só, normalmente bem diversas da proposta vicentina. Este pode representar simultaneamente o mal e a sua destruição, nomeadamente em toda a tradição cristã, onde é muitas vezes associado a Cristo, pelo Leão de Judá que venceu para abrir o livro e os sete selos. O marquês de Abrantes afirma que "O leão pode ser considerado o segundo mais importante elemento do bestiário heráldico medieval, logo depois da águia, tão vulgarmente ele nos surge dominando conjuntos heráldicos dessa época." Pastoreau contrapõe e prova que este animal é o animal mais representado nos escudos de armas. Apesar de ser um móvel fundamental para a compreensão do brasão de Coimbra, o dramaturgo atribui-lhe um papel menoríssimo, uma figuração, certamente desempenhada por algum acetor que já tinha um outro papel, limitando-se este a ocorrer a Celipôncio quando este o chama para o ajudar na luta contra Monderigón, matando-o.
No fim fará parte do tableau vivant que dá a ver ao público o brasão da cidade.
Figura 9 - Leão, detalhe das armas da cidade de Coimbra que figuram na sala dos reis no palácio da Regaleira, Sintra. Fotografia de Paulo Morais-Alexandre
A serpente que é uma serpe ou a serpe que é uma serpente
Os dicionários de português não estabelecem a diferença entre "serpe" e serpente" … Bluteau descreve da seguinte forma este animal do reino dos répteis: "SERPENTE. Animal sem pés, ou com eles muyto pequenos a modo de lagarticha. He comprido, roliço, anda de rasto, & se enrosca", nada referindo das suas características enquanto animal heráldico. Gil Vicente no texto em escrutínio usa quatro vezes o termo "serpe" e apenas uma o termo "serpente", podendo-se depreender que os usa como sinónimos. Em Heráldica trata-se de figuras completamente diversas, como o estabelece A. de Mattos no "Vocabulário Heráldico", pelo que se pode afirmar que mestre Gil faz confusão entre dois animais heráldicos bem diversos, um que faz parte do reino animal, um réptil, a serpente e uma figura fantástica que é a serpe, sendo a sua representação inconfundível. Não terá sido, no entanto, este dramaturgo o único a fazer esta confusão, tal sucede na Heráldica em geral e até na representação das armas de Coimbra em particular, algo que se espelha na sua própria evolução do brasão de armas desta cidade. Na forma que depois viria a ser consagrada, desde a representação medieval no arco do Almedina, até à ilustração do foral, é maioritariamente representada a serpe, embora existam, pelo menos, duas pedras-de-armas onde surge representada uma serpente.
Figura 10 — Pedra-de-armas com a heráldica de Coimbra pertencente ao Arquivo Histórico Municipal / Torre de Almedina, Coimbra. Publicada por Mário Nunes (Nunes, 2003, p. 141)
Figura 11 — Detalhe de pedra-de-armas com a heráldica de Coimbra pertencente ao Museu Nacional Machado de Castro de Coimbra. Publicada por Málio Nunes (Nunes, 2003, p 57)
A razão das representações acima citadas pode ser justificada por ignorância do canteiro, embora haja antecedentes que o possam justificar, nomeadamente na sigilografia e na própria escultura. Duas das mais antigas representações relacionadas com as armas de Coimbra estão implantadas no arco de Almedina. Trata-se de duas pedras, a da esquerda com uma serpente ondulada em faixa voltada à sinistra, a da direita com um leão passante voltado à dextra.
Figura 12 - Pedra com escultura de Serpente implantada no Arco de Almedina, Coimbra. Publicada por Sidónio Simões (Simões, 2012, p. 34)
Figura 13 - Pedra com escultura de Leão passante implantada no Arco de Almedina, Coimbra. Publicada por Sidónio Simões (Simões, 2012, p. 34)
Não estão datadas mas serão certamente anteriores aos já referidos escudos que estão na mesma parede. visibilidade, isto é, a sua transcrição para uma forma plástica.
A serpente aparece também na sigilografia medieval de Coimbra, nomeadamente em dois selos que o marquês de Abrantes publicou no seu importante estudo Sigilografia Medieval Portuguesa. É exatamente desta matriz que será gravado um terceiro selo, datado de cerca de um século depois, que entre outros, regista a aclamação de D. João I em Coimbra no ano de 1385 e que Ribeiro Christino reproduziu.
Figura 14 - Desenho de Christino da Silva reproduzindo um selo usado pelo concelho de Coimbra, datado de 1385. Publicado por Augusto Mendes Simões de Castro (A. S. Castro, 1895, p. 598)
Alexandre, P.M. Uma patranha heráldico-genealógica de Gil Vicente: «A comedia sobre a devisa da cidade de coimbra» e o brasão-de-armas de Coimbra. In: Alicerces. Revista de Investigação, Ciência Tecnologia e Arte. Ano VI, n.º 6. 2016, julho. Lisboa, Instituto Politécnico de Lisboa. Pg. 65-88. Acedido em https://repositorio.ipl.pt/bitstream/10400.21/8644/1/revista_alicerces6_2016_pv.pdf.
GIL VICENTE E O SIMBOLISMO DAS ARMAS DE COIMBRA [Cont.]
A proposta de leitura das armas
A acção serve para Gil Vicente avançar com uma proposta de significado do brasão de Coimbra sendo a recriação deste, verdadeiro tableau vivant, encenada no final da peça e indicada em didascália, ficando expressa da seguinte forma: "Entra Colimena e suas damas com seus irmãos com grande aparato de música, e a serpe e leão acompanhando a dita princesa." Será então que o narrador, descrito como o “Peregrino do Argumento", se dirige a Colimena para lhe dar a deixa que permitirá a esta justificar o brasão de Coimbra, dizendo-lhe: "Venha a mui alta princesa serena / e diga contando sua anteguidade." Colimena dirá que é com base na sua história que tomou armas que depois foram as da cidade de Coimbra: "Eu assentei aqui esta cidade / e eu sou Coimbra e vem de Colimena. / Tomei por devisa aqueste leão/ e aquesta serpe por que fui livrada / o cales do meo é cousa errada / porque há de ser torre com ua prisão." Relativamente ao brasão são pois avançadas explicações para a mulher saínte, para o cálice/fonte/torre, bem como para o leão e para a serpente, através de três personagens e um adereço.
A princesa Colimena
A explicação vicentina para a figura central das armas de Coimbra (fig. 6) deriva da história da personagem Colimena. É princesa por ser filha do rei Ceridón de Córdova e Andaluzia que surge em cena disfarçado de Ermitão. Foi feita cativa pelo gigante Monderigon e encerrada numa torre, em conjunto com seu irmão Melidónio, quatro donzelas e seus quatro irmãos passando graves tormentos na prisão. É descrita pelo pai como "doce serena". No cativeiro é obrigada a cantar continuamente pelo gigante e infeliz chora. Celipôncio que ao caçar se acerca do castelo onde está aprisionada vê pela primeira vez Colimena: "Ella sale a una ventana / yo mírola de un penar" e de imediato se apaixona por ela, o que narra a sua irmã: "Sábete que amor me mata", ficando determinado em matar Monderigón que a tem cativa, o que é feito por intermédio de uma Serpe e de um Leão que o haviam atacado, mas que conquistou através da lisonja, de tal forma que se gaba que estes "(...) tomáronme amor tal / que no me pueden dexar." permitindo-se, pois, domar por Celipôncio. Serão estes dois animais que, convocados com o chamamento da sua buzina de caça, matarão Mondérigon salvando Colimena da tirania deste. Quer a Serpe, quer o Leão, são personagens sem fala que apenas surgem em duas cenas, sempre juntos, presumindo-se que seriam interpretados por actores/figurantes disfarçados de animais.
Figura 6 — Princesa saínte, detalhe das armas da cidade de Coimbra que figuram numa pedra-de-armas existente na fachada da Câmara Municipal de Coimbra, Coimbra. Publicada por Mário Nunes (Nunes, 2003, p. 87)
A torre que é um cálice ou uma fonte
No final da peça o autor, Gil Vicente, permite-se fazer uma alteração às armas da cidade ao substituir o Cálice que consta das mesmas por uma Torre. O texto vicentino não tem qualquer indicação se o que deverá surgir em palco será a heráldica que estavam em vigor, ou seja, as armas que constavam do foral atribuído poucos anos antes pelo rei D. Manuel I à cidade em 4 de Agosto de 1516, com uma mulher saínte de um cálice ou antes um brasão reformulado de acordo com a fala de Colimena, com esta saínte da Torre onde estivera aprisionada: "o cales do meo é cousa errada/ porque há de ser torre com ua prisão."
Figura 7 — Cálice ou fonte, detalhe da iluminura das armas de Coimbra do Foral de Coimbra (1516)
Não se encontrou qualquer fundamento para esta alteração que não a fantasiosa justificação da história criada por Gil Vicente. Através da esfragística é possível comprovar que, mesmo em período anterior à definição da composição das armas a que Gil Vicente se refere e que é muito aproximada da actual, sempre foi representado um recipiente e não uma torre. Registe-se ainda que a afirmação que a mulher saínte o deveria ser de uma torre e não de um cálice viria também a ser aventada por frei Bernardo de Brito. De igual forma não ficou, neste particular, qualquer registo relativo à encenação do texto vicentino realizada perante D. João III e à referida recriação viva das armas da cidade, não sendo dada qualquer indicação da forma como este objeto foi cenografado. Pensa-se que este móvel heráldico, a torre, na encenação fosse um mero adereço cénico, não se crendo que fosse possível ser "vestida" por um ator, concordando-se com a proposta de reconstituição de Osório Mateus que refere a entrada na sala de "(...) um artefacto móvel que representa uma torre com uma janela (uma prisão)."
Alexandre, P.M. Uma patranha heráldico-genealógica de Gil Vicente: «A comedia sobre a devisa da cidade de coimbra» e o brasão-de-armas de Coimbra. In: Alicerces. Revista de Investigação, Ciência Tecnologia e Arte. Ano VI, n.º 6. 2016, julho. Lisboa, Instituto Politécnico de Lisboa. Pg. 65-88. Acedido em https://repositorio.ipl.pt/bitstream/10400.21/8644/1/revista_alicerces6_2016_pv.pdf.
I - DAS ARMAS DA CIDADE DE COIMBRA [Cont.]
As modificações posteriores seriam meramente ao nível cromático e dos ornatos exteriores do escudo, nomeadamente no que ao coronel e mais tarde à condecoração diz respeito, sendo estas as armas iluminadas pelo Rei de Armas Índia, F. Coelho no Thesouro da Nobreza e publicadas na obra de l. de V. Barbosa - As cidades e Villas da monarquia portugueza que têm brasão de armas, e vigorariam até à fixação das armas pela Portaria n.º 6959 de 14 de Novembro de 1930. Seria este diploma legal que produziria incompreensivelmente as maiores modificações nas armas desde a sua origem, ao introduzir dois escudetes de Portugal antigo em chefe e ao alterar a relação da figura feminina com o cálice, modificando ainda os esmaltes nomeadamente ao dotar a taça de ouro de um incompreensível e inexplicável realçado de púrpura.
Figura 3 - Armas da cidade de Coimbra. Iluminura do armorial de Francisco Coelho (1675, f. 11)
Figura 4 — Armas da cidade de Coimbra. Publicadas por Inácio de Vilhena Barbosa (1860, s.p.)
Figura 5 – Armas da Cidade de Coimbra de acordo com a Portaria n.º 6959 (1930, P. 2031)
GIL VICENTE E O SIMBOLISMO DAS ARMAS DE COIMBRA
Estado da questão
F. de S. A. de Azevedo na coluna que assinava no boletim do Instituto Português de Heráldica, titulada de "Meditações Heráldicas", dedica a décima sétima dessas meditações a esta peça num pequeno artigo que designou por "Gil Vicente heraldista, breves apontamentos", estudo este que seria posteriormente citado pelo marquês de Abrantes em "O Selo Medieval de Coimbra e o seu Simbolismo Esotérico". S. A. de Azevedo limita-se a deixar registado o que é avançado por Vicente, havendo a registar algo de muito relevante no artigo em apreço, quando o investigador chama a atenção para um aspeto que os diversos textos relativos à peça normalmente parecem omitir e que se reporta à questão da própria dramaturgia e encenação, quando refere que o final da comédia passa pela recriação em palco das armas da cidade de Coimbra, um momento protagonizado por atores com recurso à cenografia e adereços relativamente raro e muito interessante em termos heráldicos.
M. Nunes fez um levantamento de imagens das armas da cidade de Coimbra limitando-se a fazer uma síntese do argumento da peça e cita a fala de Colimena onde esta descreve o brasão.
A. Clemente que explora o parentesco entre a emblemática e a "mascarada cortesã" refere, quanto à questão heráldica, que Vicente foi instaurador ao ter-se adiantado relativamente ao que era feito em outros países já que criou textos teatrais a partir de armas.
… Mateus, que estudou aprofundadamente a peça, na obra Devisa refere justamente o que a peça é: "(...) uma história cavaleiresca inventada, mas que finge existir antes," sendo dos poucos que analisa e propõe uma reconstituição da encenação vicentina em Coimbra, nomeadamente da última cena em que é recriado o brasão-de-armas da cidade.
A. P. de Castro no texto sob o título de "A "Comédia sobre a divisa da cidade de Coimbra", relativamente à matéria heráldica, limita-se a fazer uma síntese de algumas das leituras simbólicas das armas de Coimbra. [Em nota de rodapé é acrescentado que relativamente a frei Bernardo de Brito que "(.. .) aduzindo documentos naturalmente fictícios, do cartário do Mosteiro de Alcobaça, conta na Monarquia Lusitana como Ataces, rei dos Suevos, ganhara Coimbra”].
Mais recentemente Sales Machado em “A Imagem do Teatro” aborda esta peça, mas, estranhamente, jamais analisa a relação do texto com a realização plástica da heráldica conimbricense. Sales Machado por um lado cita, mas posteriormente escamoteia uma muito importante ligação entre as artes visuais e a encenação vicentina ao não dar a importância devida à representação heráldica.
Por fim, P. M. M. Faria refere que "Quem une, portanto, os textos Divisa e Nau, é o móbil da sua criação intrínseco na sua função celebrativa, numa altura privilegiada para a corte exibir e consolidar o seu status mundi, perante si mesma e perante o mundo."
Alexandre, P.M. Uma patranha heráldico-genealógica de Gil Vicente: «A comedia sobre a devisa da cidade de coimbra» e o brasão-de-armas de Coimbra. In: Alicerces. Revista de Investigação, Ciência Tecnologia e Arte. Ano VI, n.º 6. 2016, julho. Lisboa, Instituto Politécnico de Lisboa. Pg. 65-88. Acedido em https://repositorio.ipl.pt/bitstream/10400.21/8644/1/revista_alicerces6_2016_pv.pdf.
A Comedia Sobre a Devisa da Cidade de Coimbra foi escrita em 1527 por ocasião da estada em Coimbra do rei D. João III e sua corte.
Livro Segundo que he das comédias … Compilação de 1562
Livro Segundo que he das comédias … Compilação de 1562, pg. 226
Sobre o assunto da mesma é referido pelo próprio Gil Vicente que é uma comédia onde “(…) se trata o que deve significar aquela princesa, leão e serpentes e cales ou fonte que tem por devisa (…)”, ou seja, é o desiderato do autor aventar uma leitura simbólica do brasão-de-armas da citada cidade, aborda ainda “(…) o nome do rio e outras antiguidades (…)”, sobre as quais se afirma perentoriamente que “(…) nam é sabido verdadeiramente seu origem (…)”. Refere que esta “divisa” não seria de criação recente uma vez que informa claramente que esta viria “(…) já d’anteguidade.” O que não será verdade já que as armas que Gil Vicente analisa não são as primeiras usadas pela cidade, mas que apenas terão sido utilizadas a partir do século XIV.
Não é de Gil Vicente a primeira proposta de análise simbólica. A mais antiga que se conhece pode ser encontrada na obra de Rui de Pina «Chronica de El-Rey D. Affonso V», onde aquele coloca na fala do infante D. Henrique uma proposta de leitura que corresponde a uma alegoria à governação do regente infante D. Pedro, na menoridade de D. Afonso V, relativa às relações entre Castela e Portugal, que considera simbolizada no Leão das armas de Castela e na Serpe do timbre de Portugal.
… A peça raramente foi representada. Nos últimos anos, sabe-se que foi levada à cena em Coimbra, pela companhia Escola da Noite em 1993-4, tendo este espetáculo sido reposto em 2004…. A ultima vez que ocorreu ser levada ao palco foi em 2010, sob a designação de Divisa na Escola Superior de Teatro e Cinema como exercício do 2.º ano do curso de Teatro.
…
I - DAS ARMAS DA CIDADE DE COIMBRA
Uma das mais antigas representações que se conhece do escudo-de-armas da cidade de Coimbra encontra-se no arco do Almedina nesta urbe. Atendendo a que fazem parte de um bloco onde está também figurado o escudo de Portugal, as características deste último permitem datar, o primeiro.
Figura 1 — Pedra esculpida com o escudo de Portugal e de Coimbra implantada no Arco de Almedina, Coimbra. Fotografia de Nuno Oliveira
Ao contrário do que é afirmado por Mário Nunes: "(...) brasão nacional com bordadura de quatorze castelos, trabalho manuelino", este é claramente anterior o que pode ser confirmado pelo facto de os escudetes estarem ainda apontados ao centro.
A partir do reinado de D. João I o escudo nacional passou a incluir as pontas da cruz da Ordem Militar de Avis, o que só deixou de suceder no tempo de D. João II, altura em que também os escudetes laterais deixaram de estar apontados ao centro e ficaram pendentes, à semelhança dos outros. Assim, acredita-se que a cidade de Coimbra, pelo menos no final da primeira dinastia, já estivesse a usar armas com o campo muito semelhante ao atual.
Paralelamente e ainda segundo Mário Nunes, a introdução no campo do escudo das figuras do leão e do dragão ter-se-á dado no decurso do século XV e quando D. Manuel I conferiu o foral novo àquela cidade, o brasão já estaria "(...) alindado com esses ornamentos." Os escudos que encontramos no Arco de Almedina são efetivamente os mesmos que figuram, embora com alterações cromáticas e um desenho mais naturalista, na iluminura do rosto do foral.
Figura 2 — Detalhe do rosto do Foral de Coimbra, 1516.
Alexandre, P.M. Uma patranha heráldico-genealógica de Gil Vicente: «A comedia sobre a devisa da cidade de coimbra» e o brasão-de-armas de Coimbra. In: Alicerces. Revista de Investigação, Ciência Tecnologia e Arte. Ano VI, n.º 6. 2016, julho. Lisboa, Instituto Politécnico de Lisboa. Pg. 65-88. Acedido em https://repositorio.ipl.pt/bitstream/10400.21/8644/1/revista_alicerces6_2016_pv.pdf.
Tendo D. João III retirado com a corte para Coimbra em 1526 (por causa do terramoto), aqui veio Gil Vicente representar-lhe a farsa dos «Almocreves»... Lê-se na rubrica desta peça: «Esta seguinte farsa foi feita e representada ao... Rei D. João, o terceiro em Portugal deste nome, na sua cidade de Coimbra... Seu fundamento é que um fidalgo de muita pouca renda usava muito estado, tinha capelão seu e ourives seu, e outros oficiais, aos quais nunca pagava.»
«Com o terror da peste, D. João III foge de Almeirim para Coimbra, onde é recebido solenemente recitando-lhe a arenga ou oração de chegada Francisco de Sá, a quem o rei concedera a sua intimidade. Nestes festejos tomou parte Gil Vicente, representando a comédia «Sobre a divisa da cidade de Coimbra»... estando na sua muito honrada, nobre e sempre leal cidade de Coimbra. Na qual comédia se trata o que deve significar aquela Princesa, Leão, e Serpente, e Cálice, ou Fonte, que tem por divisa: e assim este nome de Coimbra donde procede, e assim o nome do rio, outras antiguidades a que não é sabida verdadeiramente sua origem. Tudo composto em louvor e honra da sobredita cidade. Feita e representada era do Senhor de MDXXVII.
... No mesmo ano de 1527 ainda Gil Vicente voltou a representar em Coimbra, mas agora a tragicomédia da «Serra da Estrela»... no parto da Sereníssima e mui alta Rainha Dona Catarina Nossa Senhora e nascimento da Ilustríssima Infanta Dona Maria, que depois foi princesa de Castela (futura mulher de Filipe II)
Loureiro, J.P. 1959. O Teatro em Coimbra. Elementos para a sua história. 1526-1910. Coimbra, Câmara Municipal. Pg. 43 a 44
... nesta cidade desde o remoto ano de 1526 (data em que Gil Vicente pela primeira vez aportou a esta cidade, para representar uma das suas farsas) até ao meado do século XIX, muitas informações se acumularam ...a Coimbra tocou a honra não só por três vezes haver acolhido dentro das suas muralhas o glorioso fundador do teatro popular português, mas de ter sido o genuíno berço do teatro clássico, personificado nos seus mais altos representantes: Jorge Ferreira de Vasconcelos, nascido nos campos do Mondego (em Montemor-o-Velho), que casou nesta cidade, nela escreveu e provavelmente viu representar a sua comédia «Eufrosina», cuja ação aqui decorre; Francisco de Sá de Miranda, natural desta cidade e nela criado, onde escreveu e possivelmente fez também representar as suas comédias «Estrangeiros» e «Vilhalpandas»: e António Ferreira, lente da faculdade de leis, que ensinou e aqui escreveu e viu representar na Universidade a sua tragédia «Castro», de tema medularmente coimbrão, como é a morte de Inês de Castro.
Focando-se a época do renascimento do teatro, no segundo quartel do século XIX, em que – como seu reformador – coube a Almeida Garrett o papel de maior relevo, pode também entrever-se que fora em Coimbra... como autor e ator curioso, preparara as suas primeiras armas para triunfar na difícil tarefa que mais tarde havia de tomar sobre os seus ombros; e foi de Coimbra que, designadamente a partir da fundação da Nova Academia Dramática (1838), o notável escritor recebera o mais apreciável impulso para com êxito acometer o ingente empreendimento da renovação do teatro português que tão felizmente logrou iniciar.
E mais se apurou que nesta cidade se apresentaram, como dramaturgos ou atores amadores, para fainas que os alçapremaram a beneméritos da arte dramática nacional: António Feliciano de Castilho... famoso autor e tradutor de obras da literatura dramática; João de Lemos... autor de um drama famoso; os jurisconsultos Paulo Midósi e António Joaquim da Silva Abranches, autores de peças que tiveram retumbantes sucessos; Francisco Palha, António da Costa, Francisco Soares Franco e Francisco Soares Franco Júnior, e tantos outros, todos filhos da Universidade de Coimbra e aqui tendo estagiado em teatrinhos particulares de amadores ou no Teatro Académico.
... É certo que já nos reinados de D. Sancho I e D. Afonso II aparecem referências a determinada forma dramática, pois que no ano de 1193 o primeiro desses monarcas fez doação de um casal aos dois bobos «Bonamis» e «Acompaniado»... os quais por sua parte se consideraram na obrigação de dar um «arremedilho» ao doador.
Loureiro, J.P. 1959. O Teatro em Coimbra. Elementos para a sua história. 1526-1910. Coimbra, Câmara Municipal. Pg. 3, 4,14
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