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O tema da “Mantilha Coimbrã”, já foi tratado no blogue “A’Cerca de Coimbra” em 21 e 23 de junho de 2022. Na altura, respigamos um artigo publicado no número 7 da Munda, revista do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro [GAAC], assinado pelo Professor Doutor Nelson Correia Borges.
Posteriormente, aquele conceituado Investigador, publicou no Boletim Informativo da Associação de Folclore e Etnografia da Região do Mondego um texto mais pormenorizado que intitulou “A Mantilha Portuguesa. Glória e declínio de uma peça do trajar das nossas Avós”. Dele extraímos as informações que ora se divulgam.
Como é sabido, não existe em Portugal um trajo nacional, antes, pelo contrário, uma grande variedade devido à diversificação e características próprias das múltiplas regiões e sub-regiões etnográficas. No entanto, ao longo dos tempos, houve algumas formas de trajar e certas peças de vestuário que tiveram implantação praticamente em todo o país. Estão neste caso os resguardos exteriores do corpo, em que podemos incluir o gabão e a mantilha.
A mantilha é, sem dúvida a peça mais interessante e também a mais bem documentada, apresentando-se com inúmeras variantes no que toca à parte que envolvia a cabeça. Referimo-nos obviamente, à que as nossas avós usaram desde tempos ancestrais até meados do século XIX e não à mantilha de rendas de uso mais recente.
…A mantilha de rendas, geralmente de cor preta, de origem espanhola, foi introduzida em Portugal depois de 1900. divulgada de terra em terra por mão dos vendedores ambulantes galegos. Utilizou-se para cobrir a cabeça da mulher quando ia à igreja, até aos tempos do Concílio Vaticano 11 (1962-1965). Finda a sua utilidade, caiu em desuso. As mulheres das classes populares, porém, sempre preferiram usar para o efeito o lenço de seda ou o cachené.
… À velha mantilha feminina surgem as primeiras referências em finais do século XIV e um século depois já ela podia ser incluída entre as muitas “coisas de folgar e gentilezas”, reunidas por Garcia de Resende no seu «Cancioneiro Geral».
… No século XVI o uso da mantilha era, sem dúvida, generalizado e, como peça estimada, deixada em testamento. Encontrámos-lhe o rasto, ocasionalmente, em dois documentos tabeliónicos de 1577, da região de Coimbra, que a referem a par com outros elementos de vestuário. Os séculos XVIl e XVIIl fizeram da mantilha uma peça imprescindível à indumentária barroca, introduzindo-lhe variantes no formato da parte que resguarda a cabeça. adaptada aos elaborados toucados então em moda.
A mantilha era uma espécie de manto ou capa, com alguma roda, que descia até abaixo do joelho, ou mesmo até ao tornozelo. Em cima, abrigando a cabeça, ficava a coca, espécie de arco, amado em papelão e barbas de baleia, terminando ou não em bico. Na sua confeção utilizavam-se tecidos de diversas texturas e materiais: a baeta, o durante, o camelão, o lapim, o "pano fino", ou mesmo tafetá de seda. A cor preferida era o preto, solene, mas havia-as também roxas e cor de pinhão, como a mencionada no «Cancioneiro Geral». Normalmente era debruada com uma tarja de veludo, liso ou lavrado, da mesma cor do tecido, e não tinha colchetes nem botões: fechavam-na à frente com a mão.
Embuçada na mantilha, que lhe podia esconder todo o corpo e mesmo grande parte da face, a mulher tinha a possibilidade de sair tranquilamente à rua sem receio de ser reconhecida. As portuguesas amantilhadas constituíam, por certo, uma nota de pitoresco nas ruas das cidades, captando a admiração dos estrangeiros que passavam pelo nosso país. É o caso de dois embaixadores venezianos, vindos a Lisboa em 1580, que salientam no trajar feminino " o manto grande de lã ou de seda, segundo a qualidade da pessoa. Com ele cobrem o rosto e o corpo inteiro, e vão aonde querem, tão disfarçadas que nem os próprios maridos as conhecem: vantagem esta que lhes dá maior liberdade do que convém a mulheres bem-nascidas e bem morigeradas".
Esta circunstância não podia deixar de ser refreada, tanto mais que os abusos acabariam sempre por surgir. Assim, e em 1644 foi decretado que nenhuma mulher andasse embuçada nas ruas de Lisboa, com graves penas, mas esta resolução não chegou a ser extensiva ao resto do reino onde amantilha continuou q ser usada com honra de proveito da mulher portuguesa.
… “Este adorno está hoje completamente fora de moda, e apenas fazem dele uso algumas mulheres antigas e nobres, ou as beatas de algumas terras da província”. “Eduardo Faria, porém em 1857, afirma que a mantilha era particularmente usada em Coimbra” e não restam dúvidas de que assim acontecia.
Cidade de cunho predominantemente eclesiástico, na sua instituição universitária, onde os colégios monásticos e os conventos se topavam a cada esquina, não admira que a mantilha fosse um correspondente modo de trajar feminino algo freirático. A mulher de Coimbra introduziu-lhe uma coca em bico que faz lembrar certas toucas da Renascença, ampliadas.
Conhecemo-la de gravuras e da descrição de alguns detratores. A representação mais antiga é uma belíssima gravura a "pointillé", incluída na obra de Henry L'Evêque. (The Costume of Portugal, Londres, 1812.), com a legenda que está na imagem,
Op. cit., pg 12
Nela se recorta uma esbelta figura feminina sobre paisagem da cidade, onde se reconhece a Sé Nova e o Mondego. Envolve-se na mantilha com graciosidade, deixando a descoberto parte da "camisa" e da saia preta. Calça sapato de cetim, meias finas e usa um colar de duas voltas. Em segundo plano segue, ao lado do homem, outra mulher também de mantilha. Parece-nos, todavia, que esta gravura não representa com fidelidade a parte envolvente da cabeça – a coca -, a qual. segundo outros testemunhos era de maior dimensão, e a forma, ainda que não se afastando das suas linhas gerais, aparece aqui mais comedida.
Assim a viu, por volta de1834, o oficial do exército britânico Carlos Van Zeller com a sua coca muito saliente, terminando num bico que, pelo que afirma, encurvava quase até ao nível do queixo. Não se poupa ao comentário depreciativo comum a quantos, nesta época,se referem a esta peça de vestuário.
… Van Zeller acompanhou as notas manuscritas de alguns esboços que se revelam preciosos para melhor conhecer esta parte da mantilha coimbrã.
Com efeito o que verdadeiramente aparta e define a mantilha de Coimbra é a coca, só encontrando rivais nas do Porto, Viseu e Braga, que não lhe ficam atrás na singularidade.
Op. cit., pg. 15
Outra representação da mantilha coimbrã é-nos dada pela muito divulgada água-tinta de George Vivian da obra Scenery of Porfugal & Spain, editada em Londres, em 1839.
Op. cit., pg. 11
Esta bela paisagem é um manancial de informações sobre o trajo popular em Coimbra, na época, já que junto à fonte de Santana se agrupam diversas figuras citadinas que vão desde os estudantes, à esquerda; às senhoras de mantilha, à direita. Ali as vemos conversando, uma de frente, outra de costas.
O desenho é em tudo coincidente com a descrição de Borges de Figueiredo. …. Creio que ainda nalgumas partes do nosso Portugal se veem as clássicas mantilhas.
Op. cit., pg. 26.
Mas a mantilha de Coimbra era muito diferente das outras, pelo menos não me consta que em outras partes se usassem do feito daquelas, Compunha-se de uma tira e papelão grossa arqueada e convenientemente coberta de fazenda preta; colocada sobre a cabeça e segura sob o queixo por fitas, caía o pano preto exterior pelas costas e peito a modo de mantéu: até aqui nada de extraordinário; mas dos diversos pontos do papelão que cobria a cabeça partiam algumas barbas de baleia que a distância de dois palmos da testa se uniam formando vértice, tudo isto coberto de fazenda igual à restante.
…. Existe ainda um outro desenho, certamente de autor nacional, desconhecido, e que deverá datar do segundo quartel do século passado.
Op. cit., pg. 14
O traço é desagradável, mas elucidativo, confirmando os testemunhos na anteriores. Nele se vê uma cena matutina. O garotito e a manteigueira descalços, contrastam com a senhora de mantilha que se dirige, possivelmente para a igreja.
A mantilha de Coimbra, reconstituição. Imagem acedida en https://www.facebook.com/grupofolcloricodecoimbra/photos/pb.100047535110552.-2207520000./1279911812121393/?type=3
Acrescentamos uma imagem da reconstituição deste trajo, feita segundo a orientação do Professor Doutor Nelson Correia, que é utlizada nas apresentações do Grupo Folclórico de Coimbra.
Borges, N.C. A Mantilha Portuguesa. Glória e declínio de uma peça do trajar das nossas Avós. Separata do Boletim Informativo da Associação de Folclore e Etnografia da Região do Mondego. Páginas 7 a 26. Sem data. Coimbra, AFERM.
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