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A' Cerca de Coimbra


Quinta-feira, 03.03.22

Coimbra: Baixa na época medieval 8

Em dias comuns, o movimento na Praça não seria muito diferente do resto dos arruamentos. Transeuntes, tendas, algumas vendedeiras, carros de bois, crianças correndo ou pombas ciscando – alimentando-se, talvez, do que havia sido deixado da última feira semanal – seriam visões comuns. Esta relativa tranquilidade, porém, não devia equiparar-se ao bulício que a Praça experienciava em tempos de feira franca.

Durante os reinados de D. Fernando e D. João I, esta ocorria de 15 de Setembro a 15 de Outubro. Coincidia com o S. Miguel de Setembro, época de colheitas e de pagamento de rendas, e a ela acorria gente de todo o termo, para comprar e para vender, constituindo-se no verdadeiro encontro entre o campo e a cidade.

Tais características faziam da feira, portanto, um vivo e colorido retrato da sociedade medieval. Era ali que o abastado burguês citadino exibia suas roupas adornadas e sua bolsa cheia de moedas, procurando pelo melhor sapato, o melhor tecido ou, talvez, alguma joia. Impressionava, com toda a certeza, o lavrador que, vindo de uma localidade recôndita nos confins do termo coimbrão, aproveitara as isenções fiscais próprias do evento para montar uma banca e vender o produto de suas colheitas a fim de obter algum lucro, que talvez fosse gasto por ali mesmo, em um novo utensílio doméstico ou peça de roupa para sua família. À sua banca, acorria, entre muitos outros, o mesteiral local, com o intuito de abastecer-se do que era necessário para as suas atividades e, no processo, surpreender-se ao passar por estrangeiros a balbuciarem uma língua estranha, vendendo panos exóticos ou outros produtos vindos de fora do reino. Tudo isto, claro, vigiado pelos oficiais do concelho, dispostos a manter a ordem e que tinham no pelourinho, situado bem ao centro da praça, tanto um instrumento de punição como um elemento representativo do poder municipal.

Reconstituição do pelourinho.jpg

Reconstituição do pelourinho, na sua presumível localização quando instalado na Praça

Por fim, em frente a porta da igreja Santiago, alguns cónegos reúnem-se no alto de sua escadaria, juntamente com um casal. A meio deles, sentava-se um tabelião, rabiscando um grande livro. Era algum emprazamento a tomar forma. Foi este o caso, por exemplo, de Diogo Lourenço e Catarina Anes que, em 5 de Outubro de 1437, em plena feira, receberam de emprazamento, do Mosteiro de São Jorge, um casal e herdade em Santa Luzia, termo de Coimbra, tendo o contrato sido celebrado “ante a porta prinçipal da egreja de San Tiago”.

Dissertação, fig. 8 e 9 v2.jpg

Dissertação. Imagem nº 8 e 9: A igreja de Santiago após a reconstrução, retratada atualmente / A capela Norte, construída no séc. XV em estilo gótico, pg. 41.

A ocasião, porém, não seria só para negócios. Era, também, a oportunidade de rever os amigos, quem sabe fazer outros novos, atualizar-se acerca das novidades e comentar os assuntos do reino, da cidade, da família, e, até mesmo, da vida alheia. Do que falavam exatamente? Não sabemos, mas podemos supor. Muito provavelmente, um assunto corrente na feira de 1395 seria, por exemplo, o do divórcio entre Afonso Fernandes e Catarina Martins. Ele, dito da Cordeirã, fora escrivão do almoxarifado, e ela, filha de Martim Lourenço, conhecido por Malha e que sabemos ter sido almoxarife de Coimbra entre 1361 e 1367. Foram casados por dez anos e eram, certamente, conhecidos dos moradores da zona da Praça, pois tinham uma casa na Rua dos Peliteiros e um cortinhal em Poço Redondo, localidade próxima.

Não sabemos o que terá causado o divórcio e, muito menos, de quem teria partido a iniciativa, se de um dos cônjuges ou se, em uma hipótese menos provável, da Igreja. Teria o ex-escrivão abandonado a esposa? Era um dos motivos que levariam a tal fim. Se assim o fosse, dar-nos-ia razões para interpretar as quinhentas libras que uma tal Catarina Beata “avia de dar ao dicto Affonso Fernandez do corregimento de pallavras que dissera do dicto Affonso Fernandez” – referidas no instrumento de partilha de bens do casal – como o possível resultado de uma pouco respeitosa observação em relação ao caso. De qualquer modo, a situação era rara e, tratando-se de personagens de alguma visibilidade, certamente terá gerado comentários.

Nesta mesma época, outro tópico que deveria estar entre os discutidos pelos habitantes da cidade seria o da insegurança durante a noite. O povo, este, já apontava culpados: os homens responsáveis pela guarda noturna. Aparentemente, o alcaide-mor, ao invés de utilizar, para este fim, funcionários conhecidos, “escriptos nos livros”, valia-se do serviço de “homees vaadios e nom conheçudos”, não sendo incomum o aparecimento, ao raiar do sol, de pessoas maltratadas e até mesmo mortas, dentre outros malefícios. Por vezes, após a descoberta destes crimes, os ditos homens abandonavam a cidade misteriosamente, sendo “de presumir que som culpados nos dictos mallafiçios ou em parte deles”. Foi este o conteúdo de uma reclamação ao rei, por ocasião das cortes de Santarém, em 1396, tendo o monarca mandado que fossem cumpridos os costumes da cidade de utilizar, para este fim, pessoas conhecidas da população.

Imediatamente acima da Praça, ao cimo das escadas que, já no séc. XIV estariam situadas imediatamente em frente ao arco da Barbacã, estava o eixo formado pela Calçada – antes Rua dos Francos – e a Rua de Coruche, um dos mais importantes da cidade. Tais artérias serviram, durante o período medieval, como reduto de mercadores, fama confirmada por fontes contemporâneas, como é o caso de um decreto fernandino, datado de 1367, que garantia privilégios, especificamente, aos “mercadores moradores na Rua de Coruche e na Rua de Francos”.

Fotografia da hoje designada rua Visconde da Luz.j

Fotografia antiga da hoje designada rua Visconde da Luz 1

Encontramo-los nas fontes desde as primeiras menções a ambas as ruas, em inícios do século XIII, tendo sido muitos deles, ao longo da Idade Média, sepultados no cercano templo de Santiago, como nos provam as diversas citações a mercadores presentes no Livro de Aniversários desta colegiada.

Augusto, O.C.G.S. A Baixa de Coimbra em finais da Idade Média: Sociedade e cotidiano nas freguesias de S. Bartolomeu e Santiago. In: Revista de História da Sociedade e da Cultura, 13 (2013). Acedido em https://www.studocu.com/pt/document/universidade-de-coimbra/historia-da-cidade-de-coimbra/apontamentos/a-baixa-de-coimbra-em-finais-da-idade-me-dia/8576144/view

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por Rodrigues Costa às 16:41

Quarta-feira, 23.09.15

Coimbra, deixa de ser a capital do reino 3

No interior da velha cerca islâmica, três séculos volvidos sobre a sua edificação, surgia pois, do «palatium» primigénio sesnandino, um organismo novo, materializando a função, nova também, que ao antigo recinto se outorgara: um «Paço Real da Alcáçova». E se era, inquestionavelmente, a cabeça da urbe, pousado na colina, pretendia-se também que dela fosse o coração. De facto, afastado, pouco a pouco, o perigo muçulmano, que ainda em tempos de D. Teresa e do próprio D. Sancho I ameaçara os muros da cidade; estabilizada com Leão e Castela, a linha da fronteira; esbatida a importância militar do recinto fortificado, a moradia régia inaugurava uma relação crescente aberta com a cidade envolvente e as suas necessidades vitais. É desse modo que, em 1273, D. Afonso III estabelece que a feira semanal, cuja tradição remontaria a seu avô D. Sancho, se fizesse “nas minhas casas n’Almedina”, por reputá-lo de interesse comum seu e de todos. Apesar disso, quatro anos mais tarde o mercado mudaria de local e é D. Fernando I que, em 1377, volta ao tema, instituindo uma feira franca, todos os anos, de 15 de Setembro a 15 de Outubro … “Com entendimento que a dicta feira se faça dentro da cerca da dicta cidade no curral dos nossos paaços e arredor deles se dentro nom couberem”
… De facto, a estabilização paulatina da Corte no eixo Lisboa-Santarém, remontando, justamente, a D. Afonso III, tivera como corolário a lenta decadência da Almedina, que a valorização do «curral do paço» como espaço vital da antiga urbe, cada vez mais centrada no arrabalde, parecia pretender contrariar. Antes disso, porém, a perda do valor militar da estrutura castrense da Alcáçova refletira-se na ereção de casas junto ou adjacentes aos muros ou porta da própria cidadela, parte dos quais propriedade régia, albergando repartições ou servidores e que agora ruíam, também elas, dia a dia, ante a escassez de moradores.


Pimentel, A.F. 2005. A Morada da Sabedoria. I. O Paço real de Coimbra. Das Origens ao Estabelecimento da Universidade. Coimbra, Almedina, pg. 283 e 284

 

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por Rodrigues Costa às 10:10


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