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Iniciamos com esta entrada, uma série de treze, onde transcrevemos o artigo da Doutora Regina Anacleto publicado no volume História, Empresas, Arqueologia Industrial e Museologia, editado pela Universidade de Coimbra em 2021, e destinado a homenagear o Professor Doutor Amado Mendes, após a sua jubilação.
Op. cit., capa
Trata-se de um artigo de síntese que dá a conhecer a pesquisa efetuada por Regina Anacleto relacionada com Escola Livre das Artes e do Desenho e, neste caso concreto, com a plêiade de artistas que então batiam o ferro e ali foram formados – os ourives do ferro – artistas que colocaram Coimbra no topo da serralharia artística do País.
O artigo constitui um todo, embora seja possível dividi-lo tematicamente, como aqui o tentamos. Dada a sua extensão, poderão vir a ocorrer hiatos na sua sequência.
Coimbra, nos finais do século XIX e inícios do XX apenas saía da pacatez que a envolvia quando festejava qualquer santo da sua devoção, quando se realizavam as tradicionais feiras, romarias e festas populares ou quando aqui se deslocavam personalidades, quase sempre, do foro político ou cultural. Nessa ocasião, o quotidiano das gentes do burgo sofria alterações.
Comboio na Portagem
Na urbe, grosso modo, intelectuais e artífices movimentavam-se em quadrantes espaciais diferentes e, enquanto os primeiros, gravitavam em torno da velha alcáçova, os segundos haviam-se instalado preferencialmente na zona baixa, já fora de portas, em ruas estreitas, que se desenrolavam circularmente em torno dos já inexistentes muros, apenas a adivinharem-se no perímetro urbano da cidade. É verdade que na zona da Alta também se encontravam instalados artesãos, mas relacionados, quase sempre, com aspetos culturais; refiram-se, como exemplo, os operários que exerciam a sua atividade nas diversas tipografias ali sediadas.
No entanto, em Coimbra, o desenvolvimento industrial era lento e penoso, até porque se tratava de uma terra quase provinciana, de parcos recursos económicos, onde muito pouco havia para investir.
Avenida Navarro, 1.ª metade do sec. XX. Acervo RA
Mesmo assim, nos finais de Oitocentos, existiam na cidade, embora com relevância diversificada, várias fábricas; algumas delas, apesar de apelidadas como tal, não ultrapassavam a dimensão de meras oficinas ou de pequenas unidades fabris.
Recorde-se a sociedade “Aníbal, Lima & Irmãos”, de fiação e tecelagem, fundada em 1887 e que, quando em 1894 instalou no Rego de Benfins, próximo de Coselhas, a Fábrica conimbricense de artefactos de malha introduziu em Coimbra a indústria algodoeira; o grupo altera o pacto social no ano de 1913 e, provavelmente, na sequência, constrói uma nova fábrica na Rua do Gasómetro (atual João Machado), passando a designar-se “Aníbal de Lima & Irmão, L.da”. Encerrou em 1978.
Do outro lado do rio, em Santa Clara, mais concretamente na Rua da Feitoria dos Linhos, localizava-se a Fábrica de sabão, fundada em 1871 por Augusto Luiz Martha, ainda a laborar no ano de 1983 sob a designação de “Augusto Luiz Martha, Sucessores, L.da”.
Fábrica de sabão “A Lusitana” conhecida por Marthas. Imagem acedida em https://www.google.pt/search?q=augusto+luiz+martha+sucessores+lda&source
... A Fábrica de lanifícios de Santa Clara, instalada no antigo convento de S. Francisco, também na margem esquerda, girando sob o nome de “Peig, Planas & C.ª”, iniciou a sua atividade em 1888; no ano de 1983 ainda se mantinha aberta com o nome de “Clarcoop. Tecidos e confecções”, mas encerrou definitivamente as portas em 1994.
Fábrica de Lanifícios de Santa Clara, vista aérea das instalações
A Cerâmica de Coimbra, L.da, trabalhava o barro, pelo menos desde 1867, num local que se situa entre a Rua Direita, o Quintal do Prior e o Terreiro da Erva.
O Conimbricense, em 1891, referia ainda a existência, em Coimbra, de fábricas de massas, de moagem e de padarias. Seis anos depois, o mesmo periódico informa, especificando-as, que se podem encontrar em Coimbra trinta e uma fábricas.
A fundição e a serralharia apresentavam então um certo desenvolvimento, não só porque existiam estabelecimentos em número considerável, como porque eram credenciados, dado que recebiam “numerosas encomendas para esta cidade, e para fora d’ellla”.
Acerca do assunto, O Conimbricense, em 1891, escrevia: “Da fundição ha em Coimbra os estabelecimentos dos srs: Manoel José da Costa Soares, rua da Sophia. José Alves Coimbra, rua das Solas. E de serralheria temos conhecimento das seguintes officinas: Eduardo & Almeida, rua da Magdalena. Joaquim Diniz de Carvalho, largo da Fornalhinha. Antonio Diniz de Carvalho, rua da Gala. Augusto Diniz de Carvalho, rua das Padeiras. Francisco Marques da Costa, Paço do Conde. José Pedro de Jesus, rua das Solas. José Simões Paes, Ameias. José dos Santos Donato, rua da Moeda. João Lopes Junior, rua da Sophia. José Miguel Cabral, rua Direita. Francisco Nogueira Secco, terreiro da Erva. João Pedro de Jesus, Ameias. Manuel Pedro de Jesus, rua da Magdalena. António Gomes, rua da Moeda. Antonio da Silva Espingarda, rua das Solas. Justiniano Gomes Ferreira, rua de Borges Carneiro. Bento Ferreira, claustro de S. Salvador. José Dias Ferreira, rua dos militares. Também junto á serralheria dos srs. Eduardo & Almeida está a officina de carruagens dos srs. Bento Rocha & C.ª. E o sr. Manoel José da Costa Soares, além da fundição, tem oficinas de carruagens e serralheria, e fabrica de moagens”.
Contudo, penso poder dizer que estas oficinas gravitavam em torno de trabalhos quase sempre relacionados com as necessidades do quotidiano, ou seja, com a lavoura e com os transportes.
Anacleto, R. A arte do ferro forjado na cidade do Mondego, primeira metade do século XX. In: História, Empresas, Arqueologia Industrial e Museologia. 2021. Edição Imprensa da Universidade de Coimbra, pg. 259-292.
No passado dia 2, publiquei uma entrada com o título “Coimbra: Fábrica de Lanifícios de Santa Clara 2” e, relacionada com ela, um leitor questionou-me no sentido de saber que estrutura é aquela que se vê à frente do convento … seria alguma capela de alminhas/via sacra como existe na ladeira que desce de Sta. Clara-a-Nova?
Referia-se ao edifício quadrangular que se visualiza na fotografia então publicada.
Complexo industrial da Fábrica de Lanifícios em Santa Clara. Finais da década de 70 do século. Fotografia do arquivo particular de Pedro Planas Meunier, acedida, em https://www.publico.pt/2019/07/08/local/noticia/ascensao-queda-fabrica-coimbra-1878945
Dessa estrutura, a partir de uma outra fotografia, obtivemos o seguinte pormenor que a mostra numa posição frontal.
Presumível capela no antigo Rossio de Santa Clara, hoje Praça das Cortes (pormenor)
Col. Carlos Ferrão
Respondi que, embora ainda me lembrasse do edifício, nada sabia sobre o mesmo, razão pela qual iria tentar obter algumas informações.
A primeira ajuda veio-me de Carlos Ferrão que disponibilizou boa parte das fotografias utilizadas para ilustrar esta entrada e suscitou várias hipóteses referidas mais à frente.
Uma vez na posse das fotografias pedimos uma opinião a Nelson Correia Borges que nos adiantou o seguinte parecer: Relaciono essa construção com os torreões que existem no terreiro da nossa antiga escola [a Brotero, atual Jaime Cortesão], com um que ainda está a meio da Av. Sá da Bandeira e mesmo com os da entrada no jardim de Santa Cruz.
Antigo torreão da cerca do Mosteiro de Santa Cruz, localizado na Av. Sá da Bandeira
Imagem do Google Maps
Numa das fotos vê-se bem o cuidado tratamento que foi dado ao lintel da porta e ao óculo superior, pelo que não tenho dúvida que a construção será bem anterior à Fábrica. Estes elementos parecem poder ser datados da segunda metade do século XVIII. Para o que serviria? Inclino-me para uma finalidade de tipo religioso e poderia ter albergado o cruzeiro viário referido pelo Prof. Nogueira Gonçalves. É evidente que teve intervenção posterior, como se vê pelas janelas laterais que se detetam em fotografias. Trata-se, no entanto, de mera hipótese de trabalho.
Perante esta pista, guiados pela mão de Regina Anacleto, chegamos ao Inventário Artístico de Portugal. Cidade de Coimbra e a um texto de Nogueira Gonçalves.
O primeiro, o Inventário, descreve o local, dizendo que dava acesso à Igreja do Convento de S. Francisco uma escadaria dupla, paralela ao adro, existindo uma grande cruz no muro em posição medial.
Na estrada, havia um cruzeiro do século XVII, que pela modificação viária, ficou metido na entrada da fábrica. (In: Correia, V., Gonçalves, A. N. Inventário Artístico de Portugal – Cidade de Coimbra. Lisboa, 1947, pg. 91).
Edifício inserido na entrada da fábrica
DGARQ - Centro Português de Fotografia (Estúdios Tavares da Fonseca), pormenor
O segundo, de Nogueira Gonçalves, diz-nos que A região coimbrã teve predileção por certa variante de cruzei¬ros, aquela em que a cruz se abriga num templete, formado de quatro colunas e suportam cobertura hemisférica ou piramidal.
Na própria cidade levantaram se alguns.
A piedade que os ergueu foi os melhorando pelo tempo fora ordinariamente seguindo as seguintes fases.
Primeiramente deu se lhes uma lanterna ou lâmpada e uma caixa de esmolas. Fecharam se lhes depois três lados, por meio de paredes, e no quarto colocou se uma porta com gradeamento de ferro; valorizaram se as paredes internas com diversos reves¬timentos; dotaram se, nalguns casos, de altar. O santuariozinho completou se frequentemente com um corpo de capela, ou mes-mo, amparado de maior favor, foi substituído por uma autênti¬ca capela ampla. (In: A. Nogueira Gonçalves. Colaboração em publicações periódicas. Coordenação de Regina Anacleto e Nelson Correia Borges. 2019. Coimbra, Câmara Municipal, I vol., pg.231)
Foram estes textos que nos levaram a eleger o título da entrada; contudo, eles não nos dão a certeza de que, inicialmente, teria sido essa a finalidade do edifício em apreço.
Como referimos, também batemos à porta de Carlos Ferrão que analisou as possíveis e diversificadas utilizações da estrutura depois da extinção das ordens religiosas e, consequentemente do convento, concluindo:
Independente do que teria sido antes, nos anos 20 do século passado, a estrutura, é apontada como sendo um Posto de Transformação (PT) de eletricidade da rede publica ligado à Fábrica de Santa Clara. Posto que era bidirecional, recebendo e injetando energia elétrica na rede pública.
Outra imagem do edifício
Col. Carlos Ferrão
Importa recordar que em Coimbra, existiram 21 centrais elétricas, todas termoelétricas. Uma de serviço público, as outras de serviço particular como a de Santa Clara, da empresa Planas & Cª que funcionou entre 1942 e 1947, com uma potência de 144 kW.
A fábrica por ser também produtora, era vendedora e compradora de energia à Câmara Municipal.
Depois de exploradas estas pistas concluímos que algo se adiantou, embora as dúvidas continuem a persistir.
Decorre daí o facto de serem bem-vindas outras informações passíveis de continuar a aclarar o assunto.
Rodrigues Costa
Os esparsos registos contabilísticos que chegaram até nós reportam-se, sobretudo, aos anos de 1960 - em particular a 1961 e a 1969 -, permitindo-nos, deste modo, certificar a situação financeira da firma e, ao mesmo tempo, compreender as decisões tomadas no início da década seguinte. O valor total da rubrica Balanço de 1961 - calculado a 31 de dezembro do referido ano - fixou-se em 20.590.641$73, onde se inclui o lucro geral do exercício assente em 26461$46.
Logotipo de Planas & C.ª. 1967. (APPM), pg. 54
… Na comparação possível com os valores registados em 1969, é notória a diminuição significativa do valor da unidade industrial, uma vez que o Balanço se fixou em 1 780 450$98, com a conta Ganhos e Perdas a registar um prejuízo de 55 793$75 … A solvabilidade da Fábrica de Lanifícios de Santa Clara encontrava-se comprometida e urgia uma tomada de posição por parte da gerência.
A crise não se cingiu somente à unidade conimbricense e deverá ser englobada num todo nacional e internacional do referido sector, uma vez que a massificação do pronto-a-vestir e a emergência das fábricas de confeção tornaram, de certo modo, obsoletos os métodos de negócio baseados, sobretudo, na venda de fazendas a grandes armazéns.
A alteração estrutural do mercado dos lanifícios já se notara nos finais dos anos de 1950 e tornou-se irreversivelmente mais forte na década seguinte.
...Tal como os artesãos que ajudara a eliminar, a Fábrica de Lanifícios de Santa Clara ia ser obrigada a reformular a sua forma de trabalho para produzir mais, mais depressa e mais barato, para tentar responder à solicitação de um mercado cada vez mais competitivo e menos sensível às simples gradações de cinzento de uma flanela".
A fundação, oficializada em 30 de Janeiro de 1970, da Dislan, de Lanifícios Santa Clara, Ld.", como unidade integrada na Planas & C.", tornou-se a resposta mais visível e direta, ainda que manifestamente tardia, face às novas exigências do mercado e dos consumidores.
Logotipo de Dislan, 1971, (APPM), pg. 56
O seu tempo de vida foi manifestamente curto, uma vez que os "novos tempos" e as "novas vontades" trouxeram mudanças substâncias na vida política, económica e social do país.
Logotipo da Planas & C.ª, 1974 (APPM), pg. 57
… A "Revolução dos Cravos", iniciada na madrugada de 25 de Abril de 1974, terminou com 41 anos de Estado Novo e lançou as bases para a instituição de um novo contexto político sedimentado numa democracia plural e representativa.
… A instabilidade vivida afetou igualmente as pequenas e médias empresas do foro privado, como foi o caso paradigmático da Planas & C.ª, que não conseguiu colher os frutos da reestruturação efetuada anos antes, sobretudo com a entrada em funcionamento da Dislan, Ld.". Num extenso ofício enviado ao Ministério do Trabalho, de 15 de Junho de 1974, a unidade fabril conimbricense expõe, nos seguintes moldes, as dificuldades de solvabilidade então vividas: «Actualmente, e devido à conjuntura económica nacional, aliado aos grandes investimentos efectuados nas nossas empresas, estamos a viver uma tal dificuldade de sobrevivência, que a nossa situação é muito grave e crítica».
… o processo de recuperação e dinamização da empresa, elaborado por George Meunier e com a anuência dos principais credores … não produziu qualquer efeito capaz de anular as extremas dificuldades financeiras da firma e a sua falência tornou-se um dado certo e irreversível.
Ainda assim, verificou-se, da parte da comissão de trabalhadores, a tentativa de reabilitar a unidade industrial através da criação de uma cooperativa, registada com o nome de Clarcoop - Tecidos e Confeções Santa Clara, SCRL, acordando, em 1978, com o administrador da massa falida da Planas & C.", o aluguer do espaço sito no antigo convento de São Francisco e a utilização das máquinas, utensílios e móveis existentes, de modo a prosseguirem com a atividade de fabrico de lanifícios e de confeção de vestuário masculino!".
Logotipo da Clarcoop. 1979 (APPM), pg. 59
A citada firma trabalhou até finais de 1994 e encontrou-se oficialmente em regime de laboração suspensa já no ano seguinte, terminando, deste modo, a existência de 106 anos da indústria de lanifícios no lugar do antigo Rossio de Santa Clara.
Freitas, D. M., Meunier, P.P. e Mendes, J. A. (Cordenação e Prefácio). 2019. O Fio da Memória. Fábrica de Janfícios de Santa Clara de Coimbra. 1888.1994. S/loc, s/ed.Pg. 64-70
A notícia da nova tentativa de criar uma unidade de lanifícios no antigo convento de Sâo Francisco da Ponte foi divulgada com regozijo pelo periódico «O Conimbricense», no dia 17 de março de 1888, invocando a oportunidade criada pela junção de «tres activos e habeis industriaes, todos de Sadadell, provincia de Catalunha, no visinho reino».
… A escritura de constituição da sociedade de comércio e indústria Peig, Planas & C.ª foi lavrada, em 24 de julho de 1888 … apresentando como finalidade «a fiação e manufactura de toda a espécie de tecidos de lã e estambre no edifício de São Francisco da Ponte».
... O período de montagem da estrutura fabril iniciou-se logo em abril de 1888, com a vinda de máquinas a vapor, caldeiras e teares mecânicos do estrangeiro, que, depois de montados nas salas do antigo complexo conventual, foram alvo de um período de testes para aferir o seu correto funcionamento, Finalmente, no dia 7 de dezembro, o periódico O Conimbricense anuncia «que se acha em plena laboração a fabrica de lanificios dos srs. Peig, Planas & C.ª, no edifício de S. Francisco além, da ponte. Estão trabalhando os differentes teares, fiações e cardas, e em geral todos os machinismos. Ainda bem que vemos em Coimbra a funccionar uma importante fabrica de lanificios, que pode vir a ser um forte incentivo para a creação de outras».
Pessoal da Fábrica em visita à Exposição Têxtil, no Porto. Fotografia de Lara Seixo Rodrigues, acedido em https://www.acabra.pt/2019/03/convento-sao-francisco-aborda-memorias-a-cores/
… Na aproximação da data comemorativa dos 50 anos de atividade (1938), os responsáveis pela empresa relembraram, em comunicado, a odisseia percorrida até então, enaltecendo a papel fundamental daqueles que nela labutaram e, em particular, as diligências iniciais dos sócios fundadores: «Se atendermos à vida difícil que têm atravessado as realizações industriaes portuguesas, particularmente nos lanifícios, o cincoentenário da Fábrica de Coimbra representa uma invulgar afirmação do valor conjunto dos seus dirigentes e dirigidos, pois todos se esforçaram atravez dos anos nem sempre fáceis e das circunstâncias quasi nunca propícias, por elevar sem descanso o progresso e o prestígio deste estabelecimento fabril».
… As mortes de Jaime Castanhinha Dória, em 9 de junho de 1956 e, no ano seguinte, de Vitorino Planas Dória (30 de junho) provocaram alterações significativas na direção da unidade fabril, a que se juntou o afastamento total de Luís Elias Casanovas, por já antever as dificuldades que o futuro dos lanifícios em Portugal, e da fábrica de Santa Clara em particular, teria com a emergência das unidades de confeção e do pronto-a-vestir. Entre saídas e decessos, podemos afirmar que se fechou um ciclo na gerência do estabelecimento fabril. Os novos tempos trarão novos donos, selecionados, uma vez mais, no seio familiar.
Complexo industrial da Fábrica de Lanifícios em Santa Clara. Finais da década de 70 do século. Fotografia do arquivo particular de Pedro Planas Meunier, acedida, em https://www.publico.pt/2019/07/08/local/noticia/ascensao-queda-fabrica-coimbra-1878945
… Após o período fatídico de sucessivos falecimentos, a sociedade concentrou-se nas mãos dos herdeiros de Vitorino Planas Dória, dividindo-se pelas suas filhas Maria Irene Dória de Aguiar Planas Leitão, Maria Emília Dória de Aguiar Planas Raposo e Maria Vitorino Dória de Aguiar Planas Meunier, casada com o engenheiro George Greenwood Meunier (1926-1996). Este último tomará o comando da gestão da unidade fabril e, a 14 de dezembro de 1962, ascendeu ao estatuto de sócio a partir da compra das quota-partes pertencentes às irmãs da sua esposa.
Freitas, D. M., Meunier, P.P. e Mendes, J. A. (Cordenação e Prefácio). 2019. O Fio da Memória. Fábrica de Janfícios de Santa Clara de Coimbra. 1888.1994. S/loc, s/ed. Pg. 37-59
Fábrica de Lanifícios de Santa Clara, vista aérea das instalações
A Fábrica de Lanifícios de Santa Clara apresenta-se como referência máxima do sector têxtil num polo citadino [de Coimbra) sem grandes tradições no referido do ramo, cujo período anterior à firma em evidência se pautou sobretudo, pelo amadorismo das confeções caseiras dos teares manuais e por tentativas de organização de módulos de produção de tecidos dos que não vingaram no tempo.
Fábrica de Lanifícios de Santa Clara, publicidade
Neste último aspeto, atenda-se, como exemplo, à fábrica de tecidos da Rua de João Cabreira, fundada nos finais da centúria de Setecentos pelos empresários Manuel Fernandes e Guimarães, Manuel Fernandes da Costa e António Machado Pinto, ficando famosa pelos seus damascos «que se tornaram notáveis pelo gosto dos seus lavores e pelo ouro que entrava em muitos», segundo a apreciação do jornalista conimbricense Joaquim Martins de Carvalho.
Os mesmos negociantes fundaram, na cidade, outra unidade de produção de tecidos de algodão em vistosas instalações, uma vez que os relatos asseveram a existência na loja de materiais nobres como o bronze, o aço e madeiras do Brasil. O fornecimento da matéria-prima (fio de algodão) proveio de uma fábrica Tomar; de onde, igualmente, chegaram, para ocuparem um lugar no corpo de funcionários, Bernardo Ferreira de Brito, Paulo José da Silva Neves e Pedro Espingardeiro, epitetados de “habeis artistas”. Em termos de equipamento para produção, o citado espaço deteve 12 teares, cada um com 100 fusos, resultando num tecido de boa qualidade, «não obstante o motor ser de trabalho manual, e por isso sem a regularidade precisa; mas tudo venceu o machinista com a sua rara habilidade».
As causas subjacentes ao definhamentoe respetivo fecho dos dois espaços remetem-se para o roubo de uma porção significativa de fazenda por parte de um familiar dos sócios, bem como a instabilidade proveniente das invasões francesas e a abertura do mercado português aos produtos provindos da Inglaterra, numa consequência evidente do Tratado de Comércio e Navegação assinado em 1810.
Invoque-se, de igual modo, a importância da tentativa de implantação, já em 1875, da Fábrica de Fiação e Tecidos de Coimbra, uma vez que o objeto do presente estudo irá aproveitar as bases materiais deixadas por uma firma que não conseguiu estabelecer-se de modo definitivo e cujo projeto não deixou de espelhar um ímpeto de grandeza que trouxe em si o gérmen da própria derrocada. Se os primeiros tempos nos parecem auspiciosos, dada a grande procura na subscrição do capital social fixado em 150 000$000 réis – divididos em 1500 ações de 10$000 réis cada uma –, o conhecimento, por parte da opinião pública, dos detalhes da compra do convento de São Francisco da Ponte pela quantia, por muitos considerada exorbitante, de 30 000$000 réis, gerou a fuga do investimento inicial através da desistência de muitos dos subscritores.
«valente canudo que lá se ostenta altivo e que devisamos de diferentes pontos da cidade»
Apesar do citado revés, os membros da direção deram continuidade ao projeto, a partir da transformação do complexo conventual em unidade fabril, acrescentando ao edifício uma chaminé industrial, descrita pelo periódico A Voz do Artista como um «valente canudo que lá se ostenta altivo e que devisamos de diferentes pontos da cidade».
Freitas, D. M., Meunier, P.P. e Mendes, J. A. (Cordenação e Prefácio). 2019. O Fio da Memória. Fábrica de Janfícios de Santa Clara de Coimbra. 1888.1994. S/loc, s/ed.Pg. 27-29
Coimbra, do ponto de vista dos ideais, das novas correntes estéticas e das ideias políticas, fervilhava, no terceiro quartel do século XIX … Todavia o seu tecido produtivo continuava a ser o artesanal, muito semelhante ao que sempre fora, desde a Idade Média. Mesmo a Fábrica de Sabão, fundada em 1871 por Augusto Luiz Martha, em Santa Clara (nas proximidades da Feitoria dos Linhos e junto ao futuro Portugal dos Pequenitos) não contribuía para alterar o panorama. Com efeito, aquela não passava de uma grande oficina, que produzia sabão manualmente, como aliás continuaria a fazer, durante mais de um século, mesmo após ter instalado a linha de produção automática … nas unidades artesanais conimbricenses produziam-se artigos de primeira necessidade, sobretudo os relativos à alimentação, ao vestuário, ao alojamento e pouco mais. As fontes coevas mencionam, por exemplo: padarias, refinarias de açúcar, pastelarias e confeitarias, unidades de produção de gasosas, trabalhos de construção civil, alfaiatarias e sapatarias, cordoarias e pirotecnia.
Os produtos destinavam-se, fundamentalmente, ao mercado local ou ao autoconsumo.
… Ao aproximar-se o final de Oitocentos, chegam finalmente a Coimbra os primeiros ecos da Revolução Industrial, através da famosa Fábrica de Lanifícios de Santa Clara que, durante cerca de um século, produziu tecidos de lã, de elevada qualidade, que rivalizavam com o que de melhor se fazia no mundo … A fábrica começou a laborar em 1888 … quando foi constituída a firma “Peig, Planas & C.ª” … tendo encerrado no final dos anos de 1980.
… Além dos lanifícios, a têxtil algodoeira foi igualmente uma das indústrias-piloto da primeira fase da industrialização … Foi a firma Aníbal de Lima & Irmão (sociedade em nome coletivo, estabelecida em 1867) que introduziu a indústria de malhas em Coimbra … instalando a respetiva fábrica, sucessivamente, no Largo do Romal … no Rego de Benfins … e finalmente, na Rua do Gasómetro (futura Rua João Machado).
As suas instalações foram edificadas em 1906-1907, onde se manteve em laboração até 1978.
… Também o Banco Comercial de Coimbra … lutou com enormes dificuldades para sobreviver cerca de um quarto de século (1879-1899).
… Indústria igualmente relevante, nesta fase do desenvolvimento industrial, foi a da cerâmica e da porcelana. Também neste domínio Coimbra tinha tradição. A primeira, que remonta à Idade Média, viria a adquirir certo prestígio do século XVIII para o XIX, graças a Brioso e Vandelli. O seu legado, após uma longa interrupção, viria a ser retomado pela Cerâmica Antiga de Coimbra (Quintal do Prior, também conhecido por Terreiro da Erva), em cujo local se trabalhava o barro, pelo menos, desde 1867.
… merecem destaque, em Coimbra:
a) A Cerâmica Limitada, e a instalação da sua Fábrica no Loreto, junto à Estação de Coimbra B (em 1919), ainda recordada pelo painel de azulejos – visível da referida estação … nela chegaram a trabalhar 1.000 operários, tendo encerrado em 1980.
b) Por sua vez, em 1924, a Sociedade de Porcelanas, Ld.ª … introduziu o fabrico de porcelanas em Coimbra…
Mendes, J. A. 1910. Coimbra Rumo à Industrialização. 1888-1926. In Caminhos e Identidades da Modernidade. 1910. O Edifício Chiado em Coimbra. Actas. 1910. Coimbra, Câmara Municipal de Coimbra, pg. 138 a 143
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