Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]

A' Cerca de Coimbra


Quinta-feira, 16.06.22

Coimbra: Miguel Torga e os seus lugares na Cidade 2

MT 2.jpg

Folheto, pormenor

Mais uma vez em Coimbra, procura um destino profissional duradouro, tirando uma especialidade: "Dispus-me, finalmente, a meter o corpo aos varais. Comecei a praticar no consultório de um colega otorrinolaringologista".

…. Concluída a especialidade, nova fase surge m sua vida. Como não era fácil abrir consultório em Coimbra, vai para Leiria, onde "montou a sua tenda", segundo as suas próprias palavras. Foi determinante para a escolha da cidade a proximidade de Coimbra, o que lhe permitia. ir aí todas as semanas, para o convívio literário de que necessitava e pela proximidade das livrarias, das tertúlias e da tipografia onde imprimia os seus livros. E um deles, saído em 1939, «O Quarto Dia da Criação do Mundo», narração da sua viagem pela Europa, da Espanha franquista e da Itália de Mussolini, bem como do encontro em Paris com os exilados do regime salazarista, iria levá-lo à prisão do Aljube, em Lisboa, onde passou o Natal desse ano e escreveu alguns dos seus mais significativos poemas.

Liberto da prisão, regressa a Leiria. No ano de 1940 a vida de Miguel Torga iria tomar um novo rumo, com o casamento com Andrée Crabbé, uma jovem belga que conhecera em Coimbra em casa de Vitorino Nemésio, de quem era aluna em Bruxelas. E nesse ano publica um livro de contos, Bichos, um dos mais representativos da sua obra. A censura não dormia e, no ano seguinte, um outro livro do escritor, «Montanha», é apreendido.

Continua a viver, agora casado, em Leiria. Mas a cidade não preenchia os seus anseios. E quando pensa em mudar de ares, a resposta surge naturalmente: "Coimbra, como não podia deixar de ser. Era ela, quer eu quisesse quer não, a, minha Agarez alfabeta, o húmus pavimentado que os meus pés pisavam com mais amor".

MT 12.jpg E assim, mais um nome vinha, juntar-se aos clínicos da cidade. Num primeiro andar do Largo da Portagem estava agora o seu consultório. Na parede, uma placa: "Adolfo Rocha - Ouvidos, Nariz e Garganta".

MT 10.jpg

 Em frente, o pequeno jardim, com a estátua de Joaquim António de Aguiar, mais além o Mondego e, em fundo, o verde do horizonte de Santa Clara.

Não longe, no n.º 32 da Estrada da Beira, num caminho bordejado pelo Parque da Cidade, instalara-se o casal. Nas traseiras, a vista descia até ao Mondego numa paisagem inspiradora.

MT 3.jpg

O seu consultório era não só um local de alívio para os seus doentes, mas também um ponto de reunião com os seus amigos e com sucessivas levas de estudantes, onde tudo se discutia, da política à literatura, e sobretudo, as suas janelas eram os olhos com que Miguel Torga viu, no decorrer dos anos, o mundo à sua volta e as alterações que se iam desenrolando e de que, observador atento, deu conta nos seus livros … O seu consultório era também a sua oficina de escritor.

Numa cidade que mudava, também ele mudara de residência. E na Rua Fernando Pessoa, para os lados da Cumeada, passa a ter o seu novo lar, em 1953, a que, em breve, o sorriso de uma filha vem dar nova vida.

MT 11.jpg

O reconhecimento da sua obra não tardaria, com a atribuição de vários prémios, quer nacionais quer internacionais, e a sua universalidade está bem patente na tradução dos seus livros nas mais variadas línguas e nos mais diversos países.

… O tempo corria, inexoravelmente. Para trás iam ficando as longas jornadas de caça, o subir dos montes, a descida dos vales. O médico usaria menos vezes o bisturi, daria maior descanso ao estetoscópio. E um dia o velho consultório da Portagem deixaria de ser o seu posto de observação. Estávamos em 1992: "Desfiz-me do escritório. Mil circunstâncias adversas conjugaram-se encarniçadamente nesse sentido. E adeus, meu velho reduto, onde durante tantos anos lutei como homem, médico e poeta". Mais do que uma porta que se encerrava, era uma vida que se escoava, fechadas que estavam as janelas por onde o mundo entrara pelos seus olhos iluminando as paredes do que fora espaço de tertúlia, alívio de dores e oficina de poesia.

Andrade. C.A. Passear na Literatura. Miguel Torga. Sem data. Coimbra, Câmara Municipal.

 

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

por Rodrigues Costa às 12:05

Terça-feira, 14.06.22

Coimbra: Miguel Torga e os seus lugares na Cidade 1

Um dos itinerários organizados por Carlos Santarém Andrade, no âmbito da iniciativa Passear na Literatura, foi dedicado a Miguel Torga. Dessa iniciativa tão meritória, para além da memória, resta um pequeno e muito bem ilustrado folheto com o título … A ver correr Serenas, as Águas do Mondego.

É dele que nos socorremos para, mais uma vez, lembrar Torga e o seu percurso pela terra que adotou como sua.

MT 1.jpg

Folheto, capa

Adolfo Correia da Rocha nasceu em São Martinho de Anta, em Trás-os-Montes, em 1907. Depois de concluir a escola primária na sua terra natal e após uma breve passagem pelo Seminário de Lamego, ruma ao Brasil, com 13 anos de idade. Em 1925 regressa a Portugal, chegando a Coimbra no Outono desse ano, a fim de tirar um curso.

Para ingressar na Universidade precisava primeiro de fazer o curso liceal. Instalado num pequeno colégio na Estrada da Beira (hoje Rua do Brasil), faz os cinco primeiros anos em apenas dois.

MT 7.jpg

Morando depois numa casa ao fundo da Ladeira do Seminário, conclui num só ano os dois que lhe faltam, frequentando o Liceu José Falcão, então sediado no antigo Colégio Universitário de S. Bento, sobranceiro ao Jardim Botânico.

MT 8.jpg

Matriculado na Faculdade de Medicina, em 1928, publica então o seu primeiro livro, «Ansiedade». Frequentador da tertúlia literária da «Central», não tarda a sua colaboração na «Presença», em 1929, altura em que muda para a república «Estrela do Norte» (na sua ficção «Estrela de Alva»), também na Ladeira do Seminário, n.º 6. Com a chancela da «Presença» vem a lume o seu segundo livro, Rampa, em 1930. No entanto, em breve se dá a sua cisão com o movimento presencista, juntamente com Edmundo Bettencourt e Branquinho da Fonseca. Com este, que usa o pseudónimo de António Madeira, edita a revista «Sinal», de que apenas sai um número. A par dos estudos médicos a sua obra literária. prosseguia, com os contos de «Pão Ázimo» e os poemas de «Tributo», em 1931, ou «Abismo», também de versos, saídos dos prelos da Atlântica. Em todos eles usa ainda o seu nome civil, Adolfo Rocha. Finalmente, conclui o curso, em dezembro de 9933.

 

NT 9.jpg

Formado em Medicina, regressa a S. Martinho de Anta. Mas não cabiam na terra natal as suas ambições. E pouco depois está de novo em Coimbra. Sem uma situação profissional definida, numa terra em que abundavam os médicos, a escrita continuava, e mais uma vez a «Atlântida» lhe iria imprimir um novo livro. Escritor e médico, como depois escreveria, "serviria devotadamente a dois amos". Mas sentia que era necessário separar os nomes de quem empunhava o bisturi e de quem manejava a caneta. Adolfo Rocha seria o clínico, cuidando dos corpos. Para o escritor iria buscar na admiração por Cervantes e por Unamuno o nome de Miguel, a que acrescentaria Torga, matriz transmontana das urzes selvagens das suas origens. E quando em 1934 sai o livro A Terceira Voz, encimava o título o seu nome literário. "Com um Ósculo vo-lo entrego. Chama-se Miguel Torga'', escreveu pela última vez Adolfo Rocha no prefácio.

No mesmo ano vai substituir, temporariamente, o médico de Vila Nova, no concelho de Miranda do Corvo, tomando todos os fins de semana, quando as obrigações médicas não o impediam, o comboio para Coimbra, onde tinha um quarto para as suas pernoitas na A C. E. (hoje A C. M.), na Rua Alexandre Herculano. E do convívio à mesa da «Central», bálsamo semanal para o isolamento da aldeia, nascia mais uma revista, «Manifesto», que funda em 1936 com Albano Nogueira. Nesse ano, mais um livro, «O Outro Livro de Job». Não se demoraria muito em Vila Nova. O regresso do médico permanente, as intrigas aldeãs e a falta de saúde fazem-no regressar à cidade do Mondego.

Andrade. C.A. Passear na Literatura. Miguel Torga. Sem data. Coimbra, Câmara Municipal.

Autoria e outros dados (tags, etc)

por Rodrigues Costa às 10:22

Terça-feira, 02.05.17

Coimbra: origem do topónimo Calhabé

Encontra-se também próximo da estrada da Beira (hoje Rua do Brasil, junto ao entroncamento com a Rua dos Combatentes) um pequeno lugar, o «Calhabé», que foi formado pela aglomeração de algumas casitas ao pé de uma antiga taberna.

Vem-lhe o nome de um consciencioso sacerdote de Baco, muito nomeado nos finais do último (séc. XVIII), e do qual nos deixou memória um dos autores da «Macarronea», no «Calhabeidos». Vejamos.

O Calhabé, o famoso Calhabé, entra na taverna, e é calorosamente recebido; alguém o apostrofa, com umas reminiscências virgilianas:

Ó Calhabee, Deus nobis haec otia fecit;

Sejas bem vindo; nobis communia sejant

Gaudia; nam boa pinga temos, boa pinga bibatur,

Tantas pelas nossas corrat vinhaça goellas,

Quantum ferre solet Inverni mensibus augam,

Monda, Coimbrenses cobris qua turbidus agros.

Ferte siti alqueires, almudes, ferte canadas,

Et pipae, ceu Monda, fluant: date procula, tripas

Tempestas vermelha reguet ; Calhabee, bebamus.

O Calhabé não se fez rogar; escancara a boca como um forno; bebe da torneira do tonel, bebe, bebe; e não fica farto, Vendo que os outros não acompanham, incita-os às libações:

Bibe plus, bibe, quaeso:

Sume canadinham saltem hanc: engole copinhum

Saltem hunc.

E bebe sem descanso; mas finalmente a cabeça se lhe transtorna; e por fim cai bêbado «como uma canastra».

Então todos os companheiros aplaudem, dizendo-lhe um tanto admirados:

Tu quoque, magne, cadis, Calhabee!

 

 Nota

A designação Calhabé foi aqui muito popular pois era a que figurava nos elétricos da linha 5. Quando foram substituídos pelos troleicarros estes passaram a ostentar a designação S. José e o topónimo foi-se perdendo.

Figueiredo, A. C. B. 1996. Coimbra Antiga e Moderna. Edição Fac-similada. Coimbra, Livraria Almedina, pg. 311

Autoria e outros dados (tags, etc)

por Rodrigues Costa às 09:58


Mais sobre mim

foto do autor


Pesquisar

Pesquisar no Blog  

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

calendário

Dezembro 2023

D S T Q Q S S
12
3456789
10111213141516
17181920212223
24252627282930
31