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Iniciamos hoje a divulgação de dois textos inéditos, que dividimos por quatro entradas, da autoria de Regina Anacleto e que têm como objetivo a divulgação sumária da vida de Mestre Albertino Marques e o estudo de uma peça que ele cinzelou para a Capela do Seminário Maior de Coimbra.
Albertino Marques que nasceu em Coimbra, na freguesia de Santa Cruz, a 27 de abril de 1890, é um dos artistas que, na primeira metade do século XX, trabalhavam o ferro forjado na cidade do Mondego.
Albertino Marques (Coimbra, 1890-Coimbra, 1966)
O artífice frequentou a Escola Industrial Brotero e quando, em 1907, apenas com 14 anos, terminou o curso iniciou o seu percurso como obreiro do ferro com o serralheiro António Maria da Conceição (Rato) e, posteriormente, em 1918, na oficina de Francisco Nogueira Seco, localizada no Quintal do Prior.
Após a morte deste artista sucedeu-lhe na sociedade, de parceria com os descendentes do industrial e com Daniel Rodrigues. A sociedade girava sob o nome de “Seco, Graça & Marques”. Contudo, Daniel, em 1919, separou-se e inaugurou a sua serralharia no Terreiro da Erva, n.º 36, local onde permaneceu até ao fim da vida e Albertino, a partir de 1929, instalou a sua oficina na Rua João Machado.
Albertino Marques, que jamais deixou de estudar, com o desejo de melhorar a sua formação, passou a frequentar a Escola Livre das Artes do Desenho e a ter como mentor mestre João Machado.
A sua capacidade de saber fazer falar o ferro tosco, tornando-o delicado, introduziu o seu nome entre os mais conhecidos artistas que, em Portugal, se dedicaram à arte de forjar.
A serralharia artística constituiu o objetivo primacial de toda a vida de Albertino Marques, mas, nomeadamente por questões de ordem económica, tornou-se-lhe impossível colocar à margem outros trabalhos mais vulgares.
Lanterna do Parque de Santa Cruz
Ativista das antigas organizações operárias, cedo compreendeu a importância da publicidade na difusão da arte do ferro, facto que, de algum modo, lhe permitiu espalhar as peças saídas da sua oficina por todo o país; os artefactos passavam por tocheiros, em estilo gótico, renascentista ou ‘modernizado’, por lâmpadas cinzeladas ou por portas e grades para jazigos e campas.
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No meio artístico conimbricense, sobretudo no ligado ao ferro forjado, a partir de 1933, instalou-se uma grave crise que se foi prolongando até meados da centúria, agravada por vicissitudes várias, a passarem pela falta da encomenda de trabalhos importantes que ajudassem os artistas a preservar a sua arte e pelo panorama económico da sociedade, que dificilmente permitia às pessoas dispor de numerário passível de possibilitar a compra de obras já que estas não se assumiam como bens necessários à sobrevivência.
Albertino Marques, antes de, em 1955, por razões de saúde, ter encerrado, definitivamente, a sua oficina, realizou várias obras em serralharia artística para instituições religiosas.
Posteriormente, passa a entreter as horas de ócio escrevendo sobre coisas de Coimbra e da sua arte. Nesses escritos, publicados no jornal «O Despertar», revela o gosto e o conhecimento das várias formas de arte, bem como o seu interesse por tudo o que diz respeito à sua cidade natal.
Caricatura de Albertino Marques
A 27 de abril de 1966, com 76 anos de idade, depois de ter dedicado 62 à arte do ferro forjado, morre em Coimbra na sua residência, sita na Rua João Machado, o artista Albertino Marques.
Anacleto, R. Albertino Marques (Coimbra, 1890-Coimbra, 1966). Breves notas soltas. 2024. Texto inédito.
O arquiteto Augusto de Carvalho da Silva Pinto aderiu mais tarde a este movimento, mas nem por isso deixou de, ao longo dos tempos, o impulsionar ativamente; nascido em Lisboa, depois de ter sido professor na Escola Superior de Belas-Artes deslocou-se a França, a fim de aí aprofundar os seus conhecimentos. Regressou em 1895 e radicou-se em Coimbra, terra que adotou como sua e onde, para além de ter sido diretor e professor da Escola Industrial Brotero e de ter colaborado com a Escola Livre das Artes do Desenho, deixou numerosos trabalhos, alguns deles também relacionados com a arte do ferro.
Augusto de Carvalho da Silva Pinto
António Augusto Gonçalves entregou-se ao ressurgimento do trabalho em ferro com o mesmo fanatismo que lhe era reconhecido no respeitante às outras artes e “encontrando” em Manuel Pedro de Jesus que, por volta de 1900, já era sócio da Escola Livre, aptidões excecionais para a serralharia decorativa, incentivou-o a trabalhar nesse campo. O artista foi contemporâneo e comparticipante, com João Machado, no desenvolvimento e na afirmação, em Coimbra, da arte do ferro forjado.
Quando finalmente, em 1907, na Escola Industrial Brotero, começaram a funcionar as oficinas de marcenaria e talha, de serralharia, de cerâmica e de formação, Manuel Pedro foi nomeado mestre da de serralharia, lugar que, em 1925, voltava a ocupar, sendo-lhe então reconhecida uma enorme competência e a capacidade de saber aliar a um profundo conhecimento prático da sua especialidade, a teoria necessária, para que o ensino resultasse profícuo e consistente.
Os serralheiros da Escola de Coimbra
Provavelmente, Manuel Pedro não se manteve ininterruptamente à frente da oficina de serralharia da Escola Industrial Brotero desde 1907 até depois de 1925, porque se sabe que, em 1914, foi exonerado, a seu pedido, do lugar de mestre da referida oficina António Maria da Conceição “que, enquanto ali esteve, desempenhou esse cargo de modo a merecer elogios de todo o professorado de referida Escola”.
A indústria contemporânea do ferro forjado renasceu em Coimbra com a nova centúria, viveu na cidade, mas espalhou-se por todo o país. Homens e mulheres de bom gosto e fartos meios económicos faziam as suas encomendas aos serralheiros do burgo, que também não eram esquecidos pelos arquitetos lisboetas e não só.
Adães Bermudes, arquiteto de Lisboa e engenheiro das construções escolares, em 1907, ao passar por Coimbra vindo de Viseu, demorou-se algumas horas para entregar os desenhos de umas varandas destinadas a decorar um grande prédio situado num dos mais concorridos lugares de Lisboa e que ele projetara, a fim de elas serem executadas, em ferro forjado, por quatro artistas desta cidade. O convite foi considerado uma honra e a encomenda devia importar em 1:400$00. As peças utilizam o estilo moderno e o ferro curva-se dando o recorte de animais em linhas elegantes, “formando uma renda de um desenho leve e cheio de espírito, sem perder a aparência de solidez que a natureza da matéria impõe como condição essencial”.
Arnaldo Redondo Adães Bermudes
A execução deste trabalho foi entregue aos artistas António Maria da Conceição, João Gomes, Lourenço de Almeida e Manuel Pedro de Jesus; em setembro desse mesmo ano a primeira remessa da tarefa já havia sido enviada e o redator do jornal Resistencia soubera “que o arquitecto ficara satisfeitíssimo com a obra dos serralheiros de Coimbra”.
O Noticias de Coimbra tecera algumas observações acerca dos trabalhos que Adães Bermudes encomendara àqueles artistas e o Resistencia transcreveu os comentários: “Além desta tarefa, destinada a um edifício em construção na Avenida D. Amélia [atual Almirante Reis], em Lisboa, também o mesmo arquitecto confiou ao sr. Alfredo Fernandes Costa a execução de um portão no estilo D. João V, para o palácio do conde de Agrolongo.
Palacete do Conde de Agrolongo. Imagem acedida em https://lisboadeantigamente.blogspot.com/2016/11/palacete-do-conde-de-agrolongo.html
É com grande satisfação que tornamos públicas estas apreciações aos trabalhos dos nossos conterrâneos que tanto se têm dedicado pelo desenvolvimento da sua arte, deixando ganância para só honrarem os seus nomes de artistas e a sua terra”.
Raul Lino desenhava peças para eles forjarem; Álvaro Machado, quando viu, em Lisboa, a grade de um túmulo executada por Manuel Pedro de Jesus, teve esta expressão: "Mas como é que os serralheiros de Coimbra têm a liberdade para amoldar o ferro como desejam!?". Afirmação feita por um arquiteto de reconhecido mérito que, por si só, era suficiente para legitimar a competência dos serralheiros aeminienses.
Em 1928 o comissário geral representante, em Portugal, da exposição de Sevilha convidou os artistas conimbricenses ligados à serralharia artística para participarem na exposição com trabalhos no estilo D. João V.
Também na exposição que Raul Lino levou a efeito, em Coimbra, nas salas do Instituto, onde apresentou, entre projetos, anteprojetos, plantas, esboços, fotografias, etc., trinta e nove peças, foi feita referência a trabalhos “de distinctos artistas de Coimbra”, concretamente a João Machado, na escultura, e a Manuel Pedro de Jesus e a Lourenço Chaves de Almeida, no ferro forjado.
Raul Lino escolheu a cidade de Coimbra para expor os seus trabalhos, “de construção económica e em estilo português”, em virtude de se estar a programar o bairro do Penedo da Saudade, “onde ficariam muito bem prédios daquele tipo” e também porque “o meio artístico de Coimbra permit[ia] uma avaliação correcta da sua obra”.
Raul Lino
No entanto, para sobreviver, a arte do ferro não podia apenas contar com encomendas vultuosas, teria de se democratizar, como bem dizia o Dr. Quim Martins e, para tal, fazer com que se tornassem necessários os objetos mais simples e de uso corrente, manufaturados naquele metal. A par com os grandes candelabros, com os leitos pompeianos, com os portões da Faculdade de Letras ou do Palácio da Justiça, teriam de surgir as grades das varandas, os pequenos portões de jardins, as bandeiras das portas, as tabuletas de anúncios, os gradeamentos dos muros, os portais dos jazigos, as pequenas grades de campas, os puxadores das gavetas e as dobradiças das arcas. Realmente, a arte do ferro, democratizou-se, a indústria vingou e, para além das peças que ainda hoje ornamentam tantas casas e causam orgulho aos que as fruem, Coimbra passou a ser, como lhe chamou Vergílio Correia, a “cidade das grades”.
Avenida Dias da Silva. Grade de varanda
Largo João Paulo II. Casa dos Martas. Grade da bandeira da porta
Coimbra, “a cidade das grades”.
Ninguém podia imaginar que nas negras e mal apetrechadas serralharias de Coimbra, entre as labaredas rubras das suas forjas e o ruído dos malhos tirando chispas fulgurantes dos vagalhões candentes, existia, latente, à espera de a despertarem, essa força criadora que transforma o ferro duro e de aspeto indomável em peças de requintado gosto artístico.
Anacleto, R. A arte do ferro forjado na cidade do Mondego, primeira metade do século XX. In: História, Empresas, Arqueologia Industrial e Museologia. 2021. Edição Imprensa da Universidade de Coimbra, pg. 259-290.
Iniciamos hoje a divulgação de um texto publicado em 1991, pelas Professoras Doutoras Regina Anacleto e Isabel Policarpo e apresentado no Congresso História da Universidade, integrado nas comemorações do sétimo centenário da Universidade em Coimbra. Desse texto, dada a sua extensão e os diferentes temas nele tratados, extraímos um conjunto de seis entradas que a seguir se publicam.
O arquiteto Augusto de Carvalho da Silva Pinto nasceu em Lisboa a 7 de maio de 1865 e era filho de João António da Silva Pinto. Depois de ter frequentado o “Instituto Industrial e Comercial de Lisboa”, matriculou-se, em 1882, no Curso Geral de Desenho da “Escola de Belas Artes” e, seguidamente, inscreveu-se na especialidade de Arquitectura Civil, que integrava o curriculum daquela escola lisboeta.
Durante algum tempo lecionou no estabelecimento de ensino onde se havia formado e onde fora aluno brilhante, mas logo de seguida partiu para Paris, a fim de se valorizar e tomar contacto com as novas correntes estéticas então ainda pouco difundidas no nosso país. Regressou em 1895 e, logo depois, veio fixar residência em Coimbra, terra que adotou como sua.
Este facto revestiu-se de grande significado para a cidade, que se encontrava afastada dos grandes centros, fechada sobre si mesma, sem possibilidade de se desenvolver, e passou a dispor de um homem com conceções arquitetónicas modernas, capaz de colocar o seu saber ao serviço da comunidade.
Logo após a chegada e acumulando com outras tarefas, entra como professor para a Escola Industrial Brotero onde permaneceu, ensinando gerações, até atingir o limite de idade; além disso, integra-se na vida artística do burgo, que quase se reduzia só à Escola Livre das Artes do Desenho fundada por Mestre António Augusto Gonçalves em 1878, e por todos os artistas e artífices que gravitavam em torno dela.
Arquiteto Augusto de Carvalho da Silva Pinto
… Silva Pinto, ao longo dos anos que permaneceu em Coimbra não se desligou do quotidiano. Relacionado com a vida artística, pois, para além da sua atividade profissional esteve intimamente ligado com a Escola Livre das Artes do Desenho, com Mestre Gonçalves, com o Dr. Joaquim Martins Teixeira de Carvalho, mais conhecido por Quim Martins, e ainda com os numerosos artistas saídos desses dois alfobres que foram as escolas da Torre de Almedina e a Brotero, andou também de braço dado com a política.
Pertenceu ao executivo municipal, exerceu o cargo de Governador Civil Substituto e, mais tarde, por discordar do sistema vigente instaurado após 1928, conheceu mesmo as agruras da prisão. Republicano convicto acabou por ser preso a 6 de maio de 1930 e, embora libertado onze dias depois, foi-lhe imposta residência fixa em Tentúgal, até agosto do mesmo ano.
… A personalidade e os conhecimentos do arquiteto Augusto de Carvalho da Silva Pinto ressaltam dos muitos projetos que elaborou durante a vida. O edifício da Faculdade de Letras, sobretudo na sua versão original, comprova-o. É verdade que o fulgor inicial das suas realizações foi esmorecendo ao longo dos decénios. Para isso contribuiu, certamente, a estagnação económica que também se repercutiu na cidade, a guerra de 1914-1918 e ainda o facto de se ter instalado demasiadamente em Coimbra. Sem contactos com a capital e com o estrangeiro, os seus conhecimentos não evoluíram em consonância com as suas muitas capacidades e não acompanharam as novas correntes arquitetónicas, sobretudo as dimanadas de Paris que continuava a ser o “omphalos” da Arte. Acabou por ficar preso na teia que ele próprio urdira.
De qualquer forma não podemos deixar de, numa análise desapaixonada e séria, enaltecer a obra do arquiteto Augusto de Carvalho da Silva Pinto pelo trabalho desenvolvido em prol da cidade, que o não teve por berço, mas à qual se devotou inteiramente.
Anacleto, R.; Poilicarpo, I.P.L. O arquitecto Silva Pinto e a Universidade de Coimbra, em Universidade(s). História. Memória. Perspectivas, vol. 2, Congresso História da Universidade. 7.º centenário. Coimbra, 1991, p. 327-346.
A Escola Industrial Brotero deambula pela cidade (continuação)
Martins de Carvalho, no ano de 1891, em O Conimbricense fazia a apologia do ensino industrial ministrado pela escola, escrevendo que “hoje já se não comprehende um operario sem instrucção artistica. É mister progredir, e não se progride sem estudo. As differentes terras do reino procuram desenvolver e aperfeiçoar as suas industrias; e por isso a cidade de Coimbra não póde nem deve ficar-lhes inferior, quanto o permita a sua esphera de acção. O conhecimento do desenho é absolutamente indispensavel aos operarios; e esse conhecimento podem elles obtel-o na Escóla industrial Brotero. Chamâmos toda a attenção dos operarios, dos paes de familia e dos chefes dos estabelecimentos para este ponderoso assumpto”.
No contexto de modernização escolar delineada pela Coroa, a que já me referi, foi importada “mão-de-obra” específica, destinada a integrar o corpo docente desses estabelecimentos de ensino industriais, então a conhecerem, no país, um considerável impulso. Para Coimbra, de acordo com A Voz do Artista (1889.08.31) e O Conimbricense (1889.08.24), a fim de lecionar na Escola Industrial de Brotero vieram vários professore estrangeiros: Charles Lepierre (francês), contratado em Paris para o ensino da química aplicada à indústria; Leopoldo Battistini (italiano), contratado em Roma, para ensinar desenho decorativo; Hans Dickel (austríaco), contratado em Viena, seria o responsável pelo ensino do desenho de arquitetura; Emile Lock (austríaco), contratado em Viena, regeria o ensino da física mecânica e suas aplicações industriais, devendo também ocupar-se do curso de desenho de máquinas.
Charles Lepierre
Hans Dickel, pouco depois de ter chegado a Coimbra, foi encarregado (1889) de riscar o projeto de um edifício destinado a albergar a Brotero, mas a verdade é que ele jamais saiu do papel, se é que alguma vez lá esteve, embora aparecesse sempre referenciado na imprensa local como sendo “de grandiosas dimensões”.
Mais tarde, em 1910, também sem qualquer resultado visível, o “distinto arq. Adães Bermudes” deslocou-se a Coimbra, a fim de coligir os apontamentos indispensáveis para a elaboração do risco do novo edifício e o dr. Sidónio Pais, no ano seguinte, depois de ter sido nomeado ministro do Fomento, encarrega o arquiteto Silva Pinto de apresentar um outro projeto que “ficará situado entre a Praça da Republica, rua Oliveira Matos e estrada de Entre Muros, com a fachada principal voltada para a Avenida Sá da Bandeira”. A impressa local publicou o alçado que por aí se quedou.
A impressa local publicou o alçado que por aí se quedou.
Em 1917 as chamas consumiram as alas do claustro da Manga que a Brotero ocupava, ocasionando graves prejuízos e deixando a escola sem instalações.
Mas goraram-se as expectativas de que o incêndio tivesse sido ‘providencial’ e obrigasse à construção do novo imóvel, porque a Escola passou a utilizar o edifício onde funcionara a Direção das Obras Públicas, nas proximidades da Praça da República; isto é, na ‘Casa de Férias’ do prior de Santa Cruz.
Em 1921, quando foi criado o Instituto Industrial e Comercial de Coimbra, o Governo determinou que a Brotero deixasse as instalações da Rua Oliveira Matos e passasse a ocupar o edifício fronteiro ao Jardim da Manga.
Fig. 40 – Em 1921 a Escola Brotero instalou-se no edifício crúzio fronteiro ao mercado. [BMC.I, AG_0077].
A estrutura, um “edifício, donairoso e alegre na exposição de mimos que o rodeavam, pois se debruçava por sua longa fila de janelas e serventias sobre a opulenta e viçosa horta e laranjal, que a paciência e laborioso entendimento dos frades, tornavam em aprazível retiro digno de ser visto”, entrara na posse da edilidade, como já se referiu, depois da extinção das ordens religiosas.
Torre de Santa Cruz e edifícios circundantes
Tratava-se, porém, de uma construção muito mais vasta do que a atual, pois a “queda” da torre de Santa Cruz, acontecida em 1935, arrastou consigo uma grande parte do edifício que havia integrado, outrora, o complexo crúzio.
Construído na primeira metade de Seiscentos para servir de enfermaria, acabou por funcionar como residência do prior e como hospedaria, destinada a receber visitantes ilustres; coloca-se mesmo a hipótese de o cartório também ali ter estado instalado. Depois de servir muitos outros fins, acabou em Escola Brotero e, posteriormente, em Escola Jaime Cortesão.
Anacleto, R. Coimbra: alargamento do espaço urbano no cotovelo dos séculos XIX e XX. In: Belas-Artes: Revista Boletim da Academia Nacional de Belas Artes. Lisboa 2013-2016. 3.ª série, n.ºs 32 a 34. Pg. 127-186. Acedido em https://academiabelasartes.pt/wp-content/uploads/2020/02/Revista-Boletim-n.%C2%BA-32-a-34.pdf
A Escola Industrial Brotero deambula pela cidade 1
Ao subir a Avenida Sá da Bandeira voltamos a deter-nos para pensar no grandioso edifício, nunca construído, destinado a nele funcionar a Escola Industrial e Comercial Brotero. Mas, para tal, forçoso se torna recuar no tempo e compreender a filosofia que envolveu a criação daquele estabelecimento de ensino.
A monarquia estava, no final de Oitocentos, a investir na instrução, com particular ênfase na vertente industrial, até porque chegara à conclusão que este tipo de desenvolvimento, já posto em prática noutros países, funcionara como mola impulsionadora do progresso.
É no contexto da ideologia subjacente que António Augusto de Aguiar assina, a 03 de janeiro de 1884, o decreto que criava, em Coimbra, a Escola de Desenho Industrial, ‘batizada’ de Brotero, em dezembro do mesmo ano.
Fig. 38 – O refeitório dos crúzios albergou, conjuntamente com a Associação dos Artistas de Coimbra, a Escola Brotero. [BMC.I, Bmc_b231].
Para albergar o novo estabelecimento de ensino a Câmara cedeu a igreja do Colégio da Trindade, mas a escola jamais se alojou no templo e, para que o novo estabelecimento de ensino iniciasse as suas funções, a Associação dos Artistas que, como vimos, ocupava o refeitório crúzio, em 1885, ofereceu, de forma parcial, as suas instalações, para que as aulas se pudessem iniciar.
Associação de Socorros Mútuos dos Artistas de Coimbra. Diploma
Refeitório dos crúzios, hoje Sala da Cidade
Dois anos volvidos, em 1887, os vereadores republicanos António Augusto Gonçalves e Manuel Augusto Rodrigues da Silva apresentaram uma proposta no sentido de transformar a Brotero numa escola industrial. A sugestão justificava-se porque, na cidade, a indústria mais vultuosa era a da cerâmica e porque se perfilava a hipótese de que a Escola Nacional de Cerâmica “que andava na mente do Sr. ministro das obras públicas”, se localizasse em Coimbra.
A alteração veio a acontecer quando Emídio Navarro, através de decreto publicado no Diário do Governo de 10 de janeiro de 1889, transforma a “Escola de Desenho Industrial” em “Escola Industrial” Brotero.
Três anos antes (1886), sendo diretor António Augusto Gonçalves, a escola passou a utilizar, para além da parte da sala cedida pela Associação dos Artistas, o espaço pertencente à Câmara Municipal situado por cima do refeitório crúzio; contudo, em meados de 1889, o estabelecimento de ensino, então ‘provisoriamente’ instalado, continuava a usufruir os mesmos espaços.
Como consequência, procedeu-se a adaptações que passaram por lhe anexar, num primeiro momento, o andar superior da ala oeste do claustro da Manga (atual Jardim da Manga), a antiga capela do noviciado e, mais tarde, o segundo piso da fachada sul, bem como o próprio claustro e os pisos térreos das duas mencionadas alas.
Fig. 39 – Claustro da Manga. [Revelar Coimbra, 31].
Anacleto, R. Coimbra: alargamento do espaço urbano no cotovelo dos séculos XIX e XX. In: Belas-Artes: Revista Boletim da Academia Nacional de Belas Artes. Lisboa 2013-2016. 3.ª série, n.ºs 32 a 34. Pg. 127-186. Acedido em https://academiabelasartes.pt/wp-content/uploads/2020/02/Revista-Boletim-n.%C2%BA-32-a-34.pdf
O complexo crúzio no contexto citadino (continuação)
As repartições públicas ali acomodadas deviam manter-se e a edilidade poderia gerir aqueles espaços como lhe aprouvesse.
Complexo crúzio
Contudo, o referido documento impunha à Câmara a obrigatoriedade de abrir duas vias de comunicação com o Bairro Alto, uma que conduzisse ao caminho da Fonte Nova e outra ao de Montarroio. Coloco a hipótese, fundamentada numa outra documentação não muito explícita, de este último caminho vir a ligar a Rua de Montarroio com a zona de Celas, desenvolvendo-se na periferia poente-sul da cerca (ou quinta, se se preferir) crúzia.
A autarquia ficou na posse de um vasto espólio que lhe permitia ceder assento a todas as instituições que se julgassem com direito a essa benesse, mas viu-se confrontada com a necessidade de manter e conservar edifícios antigos e degradados que tinham passado a integrar o seu património.
Nas estruturas foram-se acomodando ou confirmaram a sua instalação diversos serviços públicos: cadeia, esquadra da polícia, roda dos expostos, hospício dos abandonados, creche, maternidade, Instituto Industrial e Comercial de Coimbra,
A edilidade, depois de haver alojado os serviços administrativos e de utilidade pública, ainda alugou espaços monacais para tudo quanto se possa imaginar: bairro de gente modesta, celeiro, matadouro e até cedeu a ‘Porta Fidalga’ para nela se abrir um talho.
A construção de uma praça de touros no terreiro fronteiro ao local onde esteve instalada a esquadra da polícia, dependência então conhecida pelo nome de “Casa Vermelha”, “Casa dos Meninos de Palhavã” ou “Casa dos Moços Fidalgos”, não se concretizou e parte do edifício, após a transferência dos presos da cadeia situada no Largo da Portagem, passou a funcionar como prisão da cidade.
Dando cumprimento às exigências estatais constantes da carta de lei de 30 de julho de 1839 que impunha à Câmara a obrigatoriedade de abrir duas ruas que comunicassem com a zona alta, em 1860, quando D. Pedro V visitou a cidade, a rua que ligava a Praça de Sansão à Fonte Nova, a Olímpio Nicolau Rui Fernandes, já havia sido aberta, rompendo a unidade do conjunto outrora pertencente aos frades agostinhos.
A Rua Olímpio Nicolau Rui Fernandes, já havia sido aberta.
Trata-se da primeira intervenção estrutural levada a cabo no complexo crúzio, dividindo-o em dois lotes completamente autónomos.
Alterações estruturais do Complexo Crúzio
A fim de satisfazer a segunda exigência, em 1890 a edilidade resolveu que se estudasse “a rua que há-de comunicar desde a cidade baixa com Celas” e encarregou o projeto a Estêvão Parada, condutor de Obras Públicas. Comentando este empreendimento, um jornal local referia: “vamos ver se serão atendidos os interesses públicos ou se lhes prefere os interesses particulares”.
Por quantas vicissitudes passou o septacentenário complexo fradesco!
Não pode deixar de se acentuar que a edilidade, ao modificar, arrasar, substituir, alterar as estruturas monacais e ao transformar a quinta anexa, destruiu, no bom e no mau sentido, possivelmente mais neste do que naquele, o património existente e transfigurou mesmo a fisionomia da urbe.
A 18 de março de 1875, a Câmara pede licença ao rei para demolir uma parte do mosteiro crúzio, a fim de aí construir os novos Paços do Concelho e, a 22 de junho de 1876, sob a presidência de Lourenço de Almeida Azevedo (1833-1891), votou, por entre o ruído feito por uma parte da imprensa local que vivamente se insurgiu contra este e outros atos da administração municipal, a primeira verba para custear a demolição parcial do mosteiro, justamente a zona em que se deviam erguer os novos paços municipais. A casa da Câmara, inaugurada a 13 de agosto de 1879, ostenta, a coroar a fachada principal, as armas da cidade que, certamente devido à pouca confiança depositada pela vereação nos canteiros da cidade e na recém-iniciada formação destes na Escola Livre das Artes do Desenho, fundada no ano anterior, foram encomendadas a Joaquim Castelo, artista lisboeta com oficina na Rua do Arsenal. Mas, mal as colocaram, logo o diretor de O Conimbricense, notando o erro existente no escudo, afirma que elas serão para os vindouros “o padrão do desleixo, incúria e ignorância” da vereação citadina de 1879.
Fig. 06 – O edifício da Câmara Municipal integra o complexo dos frades crúzios. [Bilhete Postal].
Diversos incêndios também se encarregaram de desfigurar o complexo monacal dos crúzios, neste caso as alas claustrais da Manga; em 1917 a zona onde se encontravam instaladas as oficinas da Escola Industrial Brotero e, em 1926, a parte do nascente, ocupada pelos serviços dos correios.
Anacleto, R. Coimbra: alargamento do espaço urbano no cotovelo dos séculos XIX e XX. In: Belas-Artes: Revista Boletim da Academia Nacional de Belas Artes.
Lisboa 2013-2016. 3.ª série, n.ºs 32 a 34. Pg. 127-186. Acedido em https://academiabelasartes.pt/wp-content/uploads/2020/02/Revista-Boletim-n.%C2%BA-32-a-34.pdf
De seu nome completo José dos Santos Sousa Barata, foi sócio fundador e um dos primeiros e dos mais ilustres alunos da Escola Livre das Artes do Desenho fundada em 1878 por António Augusto Gonçalves de quem foi um discípulo dileto.
Joaquim Martins Teixeira de Carvalho refere ainda que foi aluno da Escola Brotero e discípulo de João Machado.
Na Exposição de 1884, expõe um busto da Vénus de Milo, estudo feito em pedra de Outil, obra que foi premiada.
A primeira grande obra conhecida em que participou data de 1886 e foi a casa neomanuelina da Rua do Corpo de Deus.
A partir de 1897 colabora na obra do que é hoje o Palace Hotel do Buçaco, sendo referido em O Conimbricense, de 8 de Julho de 1899 como um dos artistas que mais se têm distinguido pela mestria e perfeição com que têem executado delicadissimos lavores em pedra.
Em 1898, em parceria com João Machado e sob a batuta de António Augusto Gonçalves, interveio no restauro do pórtico principal da Sé Velha.
Em 1904, Joaquim Martins Teixeira de Carvalho refere-o como um dos artistas conimbricenses que trabalha nas obras do Palácio da Regaleira, em Sintra, afirmando, que lavra como nenhum outro artista portugues, em estilo manuelino
Em 1916 esculpiu a fonte do palacete Garcia (hoje Vila Marini).
Fonte do Palacete Garcia
Em 1927 concluiu a magnifica pia batismal da igreja de Santo António dos Olivais.
Pia batismal da igreja de Santo António dos Olivais
No Despertar de 26 de Fevereiro de 1930 é referido numa nota necrológica: Decorador distinto do manuelino, tendo também executado diversas esculturas, deixou espalhada pelo país (Buçaco, Sintra, etc.) obras admiráveis de beleza e elegância. A pia batismal da paróquia de Santo António dos Olivais, a ornamentação de um prédio na Rua Alexandre Herculano e um jazigo em manuelino foram as suas últimas obras, revelando nelas o seu talento de artista, José Barata, pode também dizer-se, foi quem melhor interpretou o estilo manuelino.
Nota: Esta entrada só foi possível pela investigação e disponibilidade da Senhora Professora Doutora Regina Anacleto que, para a mesma, me cedeu as fotografias e as suas fichas referentes a José Barata.
O meu profundo agradecimento.
José da Fonseca, apesar das reais potencialidades artísticas reveladas ao longo da sua existência, tem sido votado a um certo esquecimento, talvez nem sempre casual.
O artista nasceu em Coimbra, a 20 de Fevereiro de 1884, e iniciou os seus estudos artísticos na então Escola Industrial Brotero ... Fonseca concluiu o seu curso na Escola Brotero com alta classificação, mas «apesar de já então estar na posse de apreciável técnica e apto a produzir e a criar na difícil atmosfera das artes (...) tomou novas lições com mestre António Augusto Gonçalves», o que equivale a dizer que frequentou a Escola Livre. Além disso, foi discípulo de João Machado e na sua oficina aperfeiçoou os ensinamentos adquiridos no estabelecimento de ensino estatal.
... O arquiteto-pintor italiano Luigi Manini ... foi incumbido, cerca de 1890, de projetar o conjunto dos edifícios onde se integraria o Palace Hotel do Buçaco ... Aos artistas canteiros de Coimbra, ligados à Escola Livre das Artes do Desenho, foi-lhes entregue o lavor da pedra e José da Fonseca, ainda muito jovem, integrava a companha
... Na charneira do século, o Dr. Carvalho Monteiro, vulgarmente apelidado de Monteiro dos Milhões por via da sua enorme fortuna, depois de ter comprado em Sintra (na estrada dos Pisões) aos herdeiros da baronesa da Regaleira, a quinta do mesmo nome, encomendou o projeto do palacete e de alguns outros edifícios a construir na, herdade ao cenógrafo italiano.
... Manini havia lidado de perto com o trabalho realizado, no Buçaco pelos artistas conimbricenses, e não teve rebuços em os aliciar para que fossem também eles a lavrar a pedra desta sua nova construção.
Alguns canteiros deslocaram-se a Sintra e por lá se quedaram, enquanto o trabalho não escasseou, para, posteriormente, regressarem à sua cidade ou se fixarem em Lisboa; outros lavraram a pedra em Coimbra e enviaram-na através do caminho-de-ferro, a fim de ser armada no local. José da Fonseca acabou por se radicar na vila, onde organizou a sua vida pessoal e montou oficina.
Mestre Fonseca acompanhou os trabalhos da Regaleira, pode bem dizer-se, desde o princípio até ao fim.
José da Fonseca. Quinta da Regaleira fogão
O lavrado da pedra, algumas estátuas e a magnífica chaminé da casa de jantar, saíram do seu cinzel. Esta última, desenhada por Manini, joga com os apelidos do proprietário: Carvalho e Monteiro. Coroa o conjunto, que quase esmaga pela sua sumptuosidade excessiva e pela falta de equilíbrio existente entre a peça e a parede onde se inscreve, a estátua de um caçador. Na parte superior do fogão de sala, surgem cavalos, cães, figuras humanas e vegetação, completamente isolados do fundo, demonstrando por parte do artista grande domínio da técnica de trabalhar a pedra.
... A partir de 1928, participa nas Exposições da Sociedade Nacional de Belas-Artes com bastante assiduidade; a imprensa e o público nota-o, a coletividade confere-lhe prémios, Em 1932, na 25.a Exposição, apresenta o trabalho intitulado Lóki; quatro anos mais tarde, na 33.a expõe o grupo Náufragos; e, no Salão Primavera da 42.a Exposição, levou às gentes da capital o Busto de Senhora e o grupo designado por Surpresa. Este conjunto de nus foi posteriormente, em 1947, apresentado também numa exposição coletiva que teve lugar no Palácio Valenças, em Sintra. A escultura era particularmente notável pela sua plasticidade, riqueza rítmica e possuía ainda a envolvê-la «um sopro de sensualidade» .
José da Fonseca trabalhou em Sintra durante mais de quatro décadas, até ao seu falecimento, ocorrido em 13 de Dezembro de 1956.
Anacleto, R. Dois fontanários do concelho de Sintra esculpidos pelo mestre-canteiro José da Fonseca, In Boletim Cultural, 90, 1.º e 2.º tomos. Lisboa, Assembleia Distrital de Lisboa, 1984/1988, p. 105-124.
António Augusto Gonçalves entregou-se ao ressurgimento do trabalho em ferro com o mesmo fanatismo que lhe era reconhecido no respeitante às outras artes e “encontrando” em Manuel Pedro de Jesus que, por volta de 1900, já era sócio da Escola Livre, aptidões excecionais para a serralharia decorativa, incentivou-o a trabalhar nesse campo. Quando finalmente, em 1907, na Escola Industrial Brotero, começaram a funcionar as oficinas de marcenaria e talha, de serralharia, de cerâmica e de formação, Manuel Pedro foi nomeado mestre da de serralharia, lugar que, em 1925, voltava a ocupar, sendo-lhe então reconhecida uma enorme competência e a capacidade de saber aliar a um profundo conhecimento prático da sua especialidade, a teoria necessária, para que o ensino resultasse profícuo e consciente.
A indústria contemporânea do ferro forjado renasceu em Coimbra com a nova centúria, viveu na cidade, mas espalhou-se por todo o país. Homens e mulheres de bom gosto e fartos meios económicos faziam as suas encomendas aos serralheiros do burgo, que também não eram esquecidos pelos arquitetos lisboetas e não só. Adães Bermudes encomendou-lhes peças de ferro forjado para ornamentar edifícios saídos do seu lápis; Raul Lino desenhava peças para eles forjarem; Álvaro Machado louvou-os pelo trabalho executado e, em 1928, foram convidados a participar na exposição de Sevilha.
Também na exposição que Raul Lino levou a efeito nas salas do Instituto, onde apresentou, entre projetos, anteprojetos, plantas, esboços, fotografias, etc., trinta e nove peças, foi feita referência a trabalhos “de distinctos artistas de Coimbra”, concretamente a João Machado, na escultura, e a Manuel Pedro de Jesus e a Lourenço Chaves de Almeida, no ferro forjado.
Casa dos Patudos. Candelabro neogótico
... No entanto, para sobreviver, a arte do ferro não podia apenas contar com encomendas vultuosas, teria de se democratizar, como bem dizia o Dr. Quim Martins e, para tal, fazer com que se tornassem necessários os objetos mais simples e de uso corrente, manufaturados naquele metal.
A par com os grandes candelabros, com os leitos pompeianos, com os portões da Faculdade de Letras ou do Palácio da Justiça, teriam de surgir as grades das varandas, os pequenos portões de jardins, as bandeiras das portas, as tabuletas de anúncios, os gradeamentos dos muros, os portais dos jazigos, as pequenas grades de campas, os puxadores das gavetas e as dobradiças das arcas. Realmente, a arte do ferro, democratizou-se, a indústria vingou e, para além das peças que ainda hoje ornamentam tantas casas e causam orgulho aos que as fruem, Coimbra passou a ser a “cidade das grades”.
Ninguém podia imaginar que nas negras e mal apetrechadas serralharias de Coimbra, entre as labaredas rubras das suas forjas e o ruído dos malhos tirando chispas fulgurantes dos vagalhões candentes, existia, latente, à espera de a despertarem, essa força criadora que transforma o ferro duro e de aspeto indomável em peças de requintado gosto artístico.
A serralharia artística de Coimbra renasceu com António Augusto Gonçalves e com o Dr. Joaquim Martins Teixeira de Carvalho, na intimidade Mestre Gonçalves e Mestre Quim Martins, como lhe chamava a plêiade de artistas que foram seus discípulos: António Maria da Conceição (Rato), Albertino Marques, António Craveiro, Daniel Rodrigues, Lourenço Chaves de Almeida, Manuel Pedro de Jesus, José Domingues Baptista e Filhos, José Pompeu Aroso, e tantos outros.
Daniel Rodrigues. Igreja de S. António porta
Das mãos dos ‘ferreiros’ saíram obras importantes, capazes de marcar o ressurgimento daquela arte rude e maravilhosa que, em Coimbra, a partir de meados do século XIX, tanto tinha decaído, limitando-se, a bem dizer, ao fabrico de camas e de lavatórios, como se verificou na exposição, realizada em 1869.
Nesse renascimento, para além dos dois mestres citados, podem ainda referir-se os nomes de Manuel Pedro de Jesus e de João Augusto Machado, este também a tentar o ferro e o ouro que, a partir de certo momento, lhe dedicou todo o ser saber e criatividade; por isso, foram precursores da serralharia artística de Coimbra.
Anacleto, R. 1999. Ourives Conimbricenses do Ferro na primeira metade do século XX. Conferência nas I Jornadas da Escola do ferro de Coimbra. In publicado Munda, n.º 40, p. 9-13
A Brotero é uma escola de tradições. Uma escola que nasceu do nada e cresceu, valorizando o Coimbra e o País ... Atenta à evolução do mundo exterior, sempre foi uma escola de vanguarda ... Uma escola-Escola, de todos os tempos, de sempre, porque sempre em luta consigo própria. Para servir.
... Desde o século XVIII que o ensino profissional – até aí quase inteiramente da responsabilidade das corporações de artes e ofícios e de organismos religiosos – mereceu a atenção dos governantes nacionais. Contudo, só após o Liberalismo e face à necessidade de resposta ao avanço da Revolução Industrial foram tomadas as primeiras medidas sérias com vista à sua implementação.
...Em Coimbra, este estado de coisas fez surgir, em 1851, a «Sociedade de Instrução dos Operários» e, em 1862, a «Associação dos Artistas de Coimbra», que, sob o patrocínio de Olímpio Nicolau Rui Fernandes, visava «a difusão do Ensino Geral e Técnico das Artes e Ofícios, propagando os conhecimentos de economia, industrial e doméstica, necessários ao aperfeiçoamento dos métodos de trabalho, e promovendo em tais atividades o uso e introdução de novos maquinismos», e deu origem ... em 1878, a criação da «Escola Livre das Artes do Desenho», por iniciativa de António Augusto Gonçalves, a qual obteve da Câmara Municipal a cedência da antiga Casa do Senado, no andar superior da Torre do Arco de Almedina.
... por Decreto de 3 de Janeiro de 1884, o Ministro ... António Augusto de Aguiar, criou oito Escolas de Desenho Industrial, verificando-se com agrado que uma delas era em Coimbra – a atual Escola Secundária de Avelar Brotero.
... A 20 de Fevereiro de 1885, ou seja, cerca de um ano depois da sua criação a Escola de Desenho Industrial Brotero, ainda equipada com mobiliário emprestado pela Associação dos Artistas e sem material didático, encomendado na Alemanha ... iniciou atividades ... Matricularam-se cento e cinquenta e dois alunos (cento e quarenta e nove do sexo masculino e três do sexo feminino), com idades compreendidas entre os seis e os quarenta anos e, na sua maioria, profissionais: «alfaiates, canteiros, carpinteiros, empregados, funileiros, marceneiros, ourives, paliteiros, pedreiros, pintores de louça, sapateiros, segeiros, serralheiros, tipógrafos». A única disciplina lecionada no primeiro ano de funcionamento foi a de «Desenho Elementar». E apenas no período noturno, dado que, por falta de alunos, a Escola não teve aulas diurnas, tal como pelo menos nos seis anos subsequentes.
... Em 1889 ... o ministro Emídio Navarro elevou a Escola de Desenho Industrial Brotero a Escola Industrial.
... em 1914, ano a partir do qual a Escola passaria, em consequência, a Escola Industrial e Comercial.
... Nos finais do ano (1918) ... a Secção Comercial existente na Brotero foi-lhe retirada, para formar uma escola independente – a Escola Comercial de Coimbra, que, por não ter sede própria se estabeleceu no edifício da Escola (novamente apenas) Industrial, de Outubro de 1919 até Junho de 1920, data em que, por escassez de espaço, foi transferida para um andar na Rua da Sofia.
... em 1926 ... a 4 de Setembro ... foi decretada a integração da Escola Comercial de Coimbra na Escola Brotero, adotando esta – e por largos anos – a denominação de Escola Industrial e Comercial de Brotero .
... Em suma, a «Brotero», de início uma escola de modestas dimensões, foi ampliando e diversificando ao longo dos tempos o seu efetivo curricular com a introdução sucessiva de cursos profissionais tecnológicos e artísticos ... ligados a variadíssimas áreas, como Comércio, Serralharia, Mecânica, Serralharia Artística, Carpintaria, Talha (em madeira) e Marcenaria, Cerâmica, Vitrais, Eletrotecnia, Mecanotecnia, Construção Civil, Costura e Bordados, Mecânica de Automóveis.
Figueira, M. L. 2012. Escola Brotero. Memórias de Sempre. 2.ª edição revista e actualizada. Coimbra, Escola Secundária Avelar Brotero, p. 13, 17-20, 25, 28, 32
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