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Em 1878, António Augusto Gonçalves, homem dotado de grande capacidade de iniciativa e de vasta cultura, fundou a Escola Livre das Artes do Desenho (ELAD), o que lhe veio a permitir, mais tarde, impulsionar, em Coimbra, as artes industriais.
António Augusto Gonçalves. Acervo RA
Na Associação dos Artistas, onde Gonçalves também era professor, ministravam-se aulas gratuitas de desenho, em horário pós-laboral, a fim de não colidirem com a atividade das classes laboriosas a que se destinavam. O Mestre apercebeu-se do interesse que os operários demonstravam em ampliar os seus conhecimentos, mas estava consciente de que aquele não era o local mais conveniente para desenvolver determinadas capacidades absolutamente necessárias aos artistas. Para além deste óbice existiam outras motivações que conduziram à fundação da ELAD.
Emblema da Escola. Imagem acedida em http://baimages.gulbenkian.pt/images …
Diploma escolar da ELAD. Acervo RA
Teixeira de Carvalho dá a resposta a estas causas quando escreve que «A Escola Livre das Artes de Desenho foi criada por oposição ao ensino da Associação dos Artistas, todo cheio de peias e formulas dum burocratismo ridículo».
António Augusto Gonçalves, «comquanto discípulo, sócio e mestre da Associação dos Artistas», não se identificava com a orientação perfilhada naquela agremiação.
Na verdade, a criação da ELAD obedeceu “ao desejo de reunir todos os indivíduos que manifestavam aptidões artísticas, de propagar o estudo do desenho nas suas múltiplas aplicações às artes e às artes industriais, de tornar fácil e acessível a aquisição de conhecimentos sobre a forma de trabalhar os diversos materiais ensinando os principios de estética indispensáveis à compreensão e interpretação das obras de arte” e os seus estatutos, embora com carácter provisório, foram aprovados na Assembleia Geral de 25 de outubro de 1880. Do Artigo 1.º salienta-se o desejo de impulsionar “todos os meios que possam favorecer em Coimbra, e mormente na classe operaria, o desenvolvimento do gosto, aperfeiçoamento das manufacturas e intelligencia das obras d'arte”.
‘Tugúrio de Almedina’
No ‘Tugúrio de Almedina’, onde as relações entre professores e alunos se estreitavam e confundiam, formaram-se serralheiros, canteiros, escultores, marceneiros, entalhadores, ceramistas e pintores, que procuraram colher ensinamentos válidos no campo da história da arte, quer através de conferências, verdadeiras lições, proferidas por alguns eminentes vultos deste ramo do saber ou, sempre que tal o justificasse, deslocando-se às terras circunvizinhas, a fim de, in loco, observar pormenorizadamente os monumentos. Ninguém ignora que, em história da arte, a análise das peças se torna tão necessária, quanto a investigação, porque saber ver, é vital.
No contexto desta filosofia podem referir-se, apenas como meros exemplos, a visita ao “convento de S. Marcos” orientada por António Augusto Gonçalves, tendo “os artistas, encantados, fotografado diversos aspetos e modelado em barro alguns dos graciosos capitéis”; as deslocações a Lorvão e a Condeixa; e a excursão à Batalha e a Alcobaça que lhes permitiu visitar, para além destes monumentos, o castelo de Leiria e a capela de S. Pedro.
Escola Livre das Artes e Desenho, visita de estudo
Participaram ao todo vinte e quatro excursionistas, todos sócios, e “António Augusto Gonçalves fez várias preleções sobre o assunto”.
Verdade seja que alguns dos lavrantes mais novos, poucos foram, acabaram a sua aprendizagem na Escola de Desenho Industrial Brotero, criada em 3 de Janeiro de 1884, certamente na sequência da política educacional do governo, mas também por causa dos resultados da ELAD, uma associação, que mais parecia uma confraria, onde se havia “encarnado a singular revivescência do espirito das antigas corporações de ofícios”. O referido estabelecimento de ensino, a fim de satisfazer as pretensões da cidade, acabou por ser transmutado em Escola Industrial Brotero através de decreto assinado pelo ministro Emídio Navarro a 10 de janeiro de 1889.
A Escola Livre não nasceu espontaneamente e, embora tenha sido, em Portugal, a pioneira, a verdade é que estabelecimentos deste tipo eram já recomendados naqueles países onde a indústria se encontrava mais desenvolvida e tecnologicamente mais avançada.
Em Inglaterra, no ano de 1832, antes de ser votada a lei eleitoral, na Câmara dos Comuns, discutiu-se a fundação de uma Galeria Nacional; ao longo do debate, referiu-se, pela primeira vez, a importância social da arte aplicada e um dos deputados chamou a atenção para a ligação íntima existente entre os interesses industriais e o encorajamento que devia ser dado às belas-artes. Posteriormente, o governo inglês nomeou uma comissão de inquérito que, ao elaborar o trabalho de que fora incumbida, questionou acerca do assunto, não só os industriais, como também os técnicos que faziam os projetos e ainda os artistas e os membros da Real Academia; depois de analisadas as respostas, concluiu ser absolutamente necessária a criação de um organismo apropriado ao ensino e difusão das artes e que essa instituição, outra não podia ser, do que uma escola de desenho.
Realmente, bem elucidado e informado se encontrava Gonçalves, porque, para vitalizar as artes na cidade mondeguina, verdadeiro alfobre de artistas na época renascentista, recorreu a meios que, embora já postos em prática noutros países cinquenta anos antes, ainda não tinham feito a sua entrada em Portugal. A cidade e os artistas que dessa Escola saíram, muito lhe devem.
Anacleto, R. A arte do ferro forjado na cidade do Mondego, primeira metade do século XX. In: História, Empresas, Arqueologia Industrial e Museologia. 2021. Edição Imprensa da Universidade de Coimbra, pg. 259-290.
Iniciamos com esta entrada, uma série de treze, onde transcrevemos o artigo da Doutora Regina Anacleto publicado no volume História, Empresas, Arqueologia Industrial e Museologia, editado pela Universidade de Coimbra em 2021, e destinado a homenagear o Professor Doutor Amado Mendes, após a sua jubilação.
Op. cit., capa
Trata-se de um artigo de síntese que dá a conhecer a pesquisa efetuada por Regina Anacleto relacionada com Escola Livre das Artes e do Desenho e, neste caso concreto, com a plêiade de artistas que então batiam o ferro e ali foram formados – os ourives do ferro – artistas que colocaram Coimbra no topo da serralharia artística do País.
O artigo constitui um todo, embora seja possível dividi-lo tematicamente, como aqui o tentamos. Dada a sua extensão, poderão vir a ocorrer hiatos na sua sequência.
Coimbra, nos finais do século XIX e inícios do XX apenas saía da pacatez que a envolvia quando festejava qualquer santo da sua devoção, quando se realizavam as tradicionais feiras, romarias e festas populares ou quando aqui se deslocavam personalidades, quase sempre, do foro político ou cultural. Nessa ocasião, o quotidiano das gentes do burgo sofria alterações.
Comboio na Portagem
Na urbe, grosso modo, intelectuais e artífices movimentavam-se em quadrantes espaciais diferentes e, enquanto os primeiros, gravitavam em torno da velha alcáçova, os segundos haviam-se instalado preferencialmente na zona baixa, já fora de portas, em ruas estreitas, que se desenrolavam circularmente em torno dos já inexistentes muros, apenas a adivinharem-se no perímetro urbano da cidade. É verdade que na zona da Alta também se encontravam instalados artesãos, mas relacionados, quase sempre, com aspetos culturais; refiram-se, como exemplo, os operários que exerciam a sua atividade nas diversas tipografias ali sediadas.
No entanto, em Coimbra, o desenvolvimento industrial era lento e penoso, até porque se tratava de uma terra quase provinciana, de parcos recursos económicos, onde muito pouco havia para investir.
Avenida Navarro, 1.ª metade do sec. XX. Acervo RA
Mesmo assim, nos finais de Oitocentos, existiam na cidade, embora com relevância diversificada, várias fábricas; algumas delas, apesar de apelidadas como tal, não ultrapassavam a dimensão de meras oficinas ou de pequenas unidades fabris.
Recorde-se a sociedade “Aníbal, Lima & Irmãos”, de fiação e tecelagem, fundada em 1887 e que, quando em 1894 instalou no Rego de Benfins, próximo de Coselhas, a Fábrica conimbricense de artefactos de malha introduziu em Coimbra a indústria algodoeira; o grupo altera o pacto social no ano de 1913 e, provavelmente, na sequência, constrói uma nova fábrica na Rua do Gasómetro (atual João Machado), passando a designar-se “Aníbal de Lima & Irmão, L.da”. Encerrou em 1978.
Do outro lado do rio, em Santa Clara, mais concretamente na Rua da Feitoria dos Linhos, localizava-se a Fábrica de sabão, fundada em 1871 por Augusto Luiz Martha, ainda a laborar no ano de 1983 sob a designação de “Augusto Luiz Martha, Sucessores, L.da”.
Fábrica de sabão “A Lusitana” conhecida por Marthas. Imagem acedida em https://www.google.pt/search?q=augusto+luiz+martha+sucessores+lda&source
... A Fábrica de lanifícios de Santa Clara, instalada no antigo convento de S. Francisco, também na margem esquerda, girando sob o nome de “Peig, Planas & C.ª”, iniciou a sua atividade em 1888; no ano de 1983 ainda se mantinha aberta com o nome de “Clarcoop. Tecidos e confecções”, mas encerrou definitivamente as portas em 1994.
Fábrica de Lanifícios de Santa Clara, vista aérea das instalações
A Cerâmica de Coimbra, L.da, trabalhava o barro, pelo menos desde 1867, num local que se situa entre a Rua Direita, o Quintal do Prior e o Terreiro da Erva.
O Conimbricense, em 1891, referia ainda a existência, em Coimbra, de fábricas de massas, de moagem e de padarias. Seis anos depois, o mesmo periódico informa, especificando-as, que se podem encontrar em Coimbra trinta e uma fábricas.
A fundição e a serralharia apresentavam então um certo desenvolvimento, não só porque existiam estabelecimentos em número considerável, como porque eram credenciados, dado que recebiam “numerosas encomendas para esta cidade, e para fora d’ellla”.
Acerca do assunto, O Conimbricense, em 1891, escrevia: “Da fundição ha em Coimbra os estabelecimentos dos srs: Manoel José da Costa Soares, rua da Sophia. José Alves Coimbra, rua das Solas. E de serralheria temos conhecimento das seguintes officinas: Eduardo & Almeida, rua da Magdalena. Joaquim Diniz de Carvalho, largo da Fornalhinha. Antonio Diniz de Carvalho, rua da Gala. Augusto Diniz de Carvalho, rua das Padeiras. Francisco Marques da Costa, Paço do Conde. José Pedro de Jesus, rua das Solas. José Simões Paes, Ameias. José dos Santos Donato, rua da Moeda. João Lopes Junior, rua da Sophia. José Miguel Cabral, rua Direita. Francisco Nogueira Secco, terreiro da Erva. João Pedro de Jesus, Ameias. Manuel Pedro de Jesus, rua da Magdalena. António Gomes, rua da Moeda. Antonio da Silva Espingarda, rua das Solas. Justiniano Gomes Ferreira, rua de Borges Carneiro. Bento Ferreira, claustro de S. Salvador. José Dias Ferreira, rua dos militares. Também junto á serralheria dos srs. Eduardo & Almeida está a officina de carruagens dos srs. Bento Rocha & C.ª. E o sr. Manoel José da Costa Soares, além da fundição, tem oficinas de carruagens e serralheria, e fabrica de moagens”.
Contudo, penso poder dizer que estas oficinas gravitavam em torno de trabalhos quase sempre relacionados com as necessidades do quotidiano, ou seja, com a lavoura e com os transportes.
Anacleto, R. A arte do ferro forjado na cidade do Mondego, primeira metade do século XX. In: História, Empresas, Arqueologia Industrial e Museologia. 2021. Edição Imprensa da Universidade de Coimbra, pg. 259-292.
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