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O estudo agora apresentado resultou na sua essência da dissertação de mestrado que defendemos em julho de 2003. No entanto, investigações desenvolvidas posteriormente permitiram-nos abordar alguns temas que não teriam cabimento num trabalho com objetivos estritamente académicos.
A comunidade que será objeto deste estudo situa-se em plena região centro, sendo desde 1836 uma das freguesias do concelho de Coimbra. Contudo, durante muitos séculos a sua identidade estruturou-se em moldes bem diferentes – vila e sede de um concelho que integrava o termo de Coimbra (que detinha a jurisdição crime), mas possuindo autonomia no cível (que pertencia ao donatário de Eiras, o Mosteiro de Celas de Coimbra).
Eiras situa-se a cerca de 5 km de Coimbra. Uma légua a ser percorrida por todos aqueles que deixavam a cidade da margem do Mondego em direção a Norte, a uma pequena vila, de cerca de 100 fogos. A paisagem é marcada pela sua posição na fronteira entre as terras do campo e as terras do monte, entre as férteis planícies do Bolão e as serranias que se desenham no horizonte, como a de Luzouro, Espinhaço do Cão ou a da Aveleira.
… No século XVIII, o elemento que dominava a paisagem era, sem dúvida, a água.
Fonte de Eiras
… A importância da água para a rega, para acionar as inúmeras azenhas que permitem moer o cereal ou fazer o azeite levaram as senhoras de Eiras, as freiras do mosteiro de Celas, a defender de forma inequívoca as linhas de águas que atravessavam o seu domínio territorial e jurisdicional. O seu interesse pela água, especialmente pela preservação dos caudais, prendia-se com o facto das monjas de Celas deterem o monopólio da utilização dos lagares. A água era essencial, não só para acionar as estruturas de moagem como para o próprio processo de elaboração do azeite.
… O primeiro desses poderes estruturantes é o senhorial. Eiras pertencia a um dos muitos donatários que dividiam entre si o termo coimbrão – o mosteiro de Celas. O Mosteiro há muito implantado no burgo de Celas estabeleceu ligação com o lugar de Eiras em 14 de abril de 1306 quando o rei D. Dinis escambou com as freiras de Celas a terça parte da vila de Aveiro pela aldeia de Eiras e padroado da sua igreja. – “[…] a qual aldeia [Eiras] eu a vos dou e outorgo em escambo com entradas e saidas e com montes e com valles rotos e por romper pastos, e com matos e com todollas outras couzas que a dita aldea pertencem asi commo eu milhor ouvo, e com todos os direitos que eu hi ey e de direito devo aver e com o padroado da Igreja deste lugar d’ Eiras […]”. Este escambo e a consequente posse de Eiras acabaram por ser sucessivamente confirmados por outros monarcas portugueses.
… Assim, enquanto donatárias, e decorrente dos seus direitos jurisdicionais e de padroado, as freiras de Santa Maria de Celas recolhiam em Eiras e seu limite um vasto conjunto de direitos senhoriais, consagrados em foral e transcritos, através do testemunho das gentes de Eiras, no tombo de 1740. … O foral de Eiras terá tido a sua origem no reinado de D. João I.
… Os limites de uma paróquia de Antigo Regime eram construídos sobre um mapa cujas fronteiras não se materializavam em marcos ou divisórias como acontecia com os limites senhoriais ou concelhios.
O seu centro era a igreja (edifício de culto e local de enterramento dos mortos), os seus limites eram os da obrigação dos sacramentos que uniam um conjunto mais ou menos vasto de pessoas e o seu mapa os róis de confessados que o pároco redigia a cada Quaresma.
Igreja Matriz de Eiras. Imagem acedida em https://www.allaboutportugal.pt/pt/coimbra/monumentos/igreja-matriz-de-eiras-3
A paróquia de Santiago de Eiras era vigararia da apresentação do Mosteiro de Celas. Tinha uma área de cerca de 9 Km que incluía a vila, onde se situava a igreja matriz, os lugares de Casais de Eiras, Vilarinho, Murtal, Escravote, Carvalho e Redonda – lugares que pertenciam ao domínio senhorial de Celas, mas também a outros senhorios como é o caso do Murtal ou dos de Casais de Eiras.
O lugar de Vilarinho dividia-se pelas freguesias de Eiras e Brasfemes, sendo os dízimos aí recolhidos divididos pelas duas paróquias.
… Um outro poder que se materializava no espaço era o municipal. A vila de Eiras era um concelho constituído por uma câmara Municipal, com um juiz ordinário, um juiz do crime, dois vereadores, um procurador do concelho, dois almotacés e um escrivão da câmara proprietário do ofício. O juiz ordinário, os vereadores e o procurador da câmara eram eleitos anualmente através de um processo que as atas da câmara de Eiras descrevem com clareza – “[…] sendo presente o dito cofre fixado com tres chaves e sendo aberto […] se achou huma saca dobrada e cozida com bolinhas brancas e lacradas com lacre preto e sendo assim achada a dita saca ou bolsa de pelouros e aberta dentro della se acharam tres pelouros ou bolas de sera e sendo tirada hum dos ditos tres pelouros se achava dentro delle um bilhete embrochado o qual sendo aberto nelle se achavam nomeados os oficiais que serviriam […]”. No que toca ao juiz do crime o processo de eleição era diferente, uma vez que a jurisdição crime pertencia a Coimbra. Assim, o concelho de Eiras apenas poderia indicar três nomes que seriam enviados à câmara de Coimbra que, por sua vez, nomearia o juiz que exerceria o mandato no ano seguinte.
Para além destes cargos e ofícios, detetámos ainda a presença de Almotacés. Estes oficiais exerciam a sua atividade de fiscalização económica em pares que eram eleitos de dois em dois meses a partir de uma pauta estabelecida no início do mandato das justiças desse ano.
Ribeiro, A. I. S. 2005. A Comunidade de Eiras nos Finais do Século XVIII. Estruturas, Redes e Dinâmicas Sociais. Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Às portas da cidade de Coimbra e da Bairrada se situa a antiga vila de Eiras.
Foi concelho extinto em 1836, com sua câmara, vereadores, juiz, escrivães, meirinhos e todas as usuais burocracias. Nos últimos tempos Eiras cresceu quase sem medida, encontrando-se praticamente ligada a Coimbra. Mas o seu centro histórico mantém carácter aprazível, detendo ainda um apreciável número de casas antigas, por vezes nem sempre bem intervencionadas, com trechos sugestivos e encantadores.
O largo principal é de fazer inveja a algumas cidades.
Igreja de Santiago de Eiras
Para ele voltam a fachada a igreja matriz, a fonte e a capela do Espírito Santo. Merece especial destaque o chafariz, ao lado da igreja, composição de grande efeito, mandado fazer por D. João V, em 1743. Lá se podem ver as armas do reino e o selo da vila, envolvidos no corpo central, rematado por pirâmides.
Fonte de Eiras
A igreja paroquial domina o largo, com a sua fachada monumental de duas torres, tendo, do lado oposto, a não menos interessante capela do Sacramento ou do Espírito Santo. É dedicada ao apóstolo Sant’Iago. Sobre a porta principal, entre o frontão curvo interrompido, vêem-se as armas reais, tendo, no escudete das quinas, gravada a legenda Vivat Rex Ioseph, que elucida a época da construção.
Trata-se de um edifício edificado na segunda metade do século XVIII para substituir a antiga igreja que, em 1721, ainda se encontrava fora da povoação e em estado de avançada degradação, no sítio hoje chamado Passal. O antigo templo remontava aos alvores da nacionalidade, pois fora mandado edificar por D. Afonso Henriques, sendo bispo de Coimbra D. Vermudo. Em 1306 D. Dinis concedeu ao mosteiro de Celas a vila de Eiras, por troca com a terça parte da vila de Aveiro, que as monjas detinham por doação da sua fundadora, Santa Sancha. Assim ficaram as monjas de Celas como donatárias da igreja e do território, cabendo-lhes a jurisdição cível e a apresentação do pároco.
Em dezembro de 1728 o cabido autorizou a demolição da velha igreja e construção da atual. Porém, o processo arrastou-se durante muitos anos, com incidentes vários que se podem ver na excelente monografia de João Pinho. Só por meados do século se teria iniciado a construção, com planta delineada por Gaspar Ferreira, virtuoso arquiteto e entalhador, com muitas obras espalhadas pela região e Beiras. A obra de pedraria foi arrematada por Manuel Francisco, de lugar de Sá (Esgueira). Em 13 de abril de 1758 foi benzida a parte da igreja que já estava capaz. O edifício deveria estar pronto no essencial em 1767, pois, em 19 de outubro desse ano, o carpinteiro Manuel Gonçalves contratou fazer toda a obra interior: retábulo da capela-mor, dois retábulos colaterais, dois retábulos no corpo da igreja, conforme planta e risco, com muita probabilidade também de Gaspar Ferreira, e ainda cinco portas, um púlpito e grades da comunhão.
Igreja de Santiago de Eiras interior
Manuel Gonçalves não era um banal carpinteiro, pois sabemos da sua intervenção na feitura de outros retábulos, com riscos de Gaspar Ferreira e Domingos Moreira para as igrejas de Taveiro, S. Pedro de Coimbra e mosteiro de Lorvão. Era natural de Adães (Barcelos) e morador na rua da Trindade, em Coimbra.
No vasto espaço da nave única e luminosa desta igreja impressiona o conjunto dos retábulos marmoreados, numa unidade estilística deveras invulgar. De quatro colunas o principal e duas os restantes, todas de fuste liso e belos capitéis compósitos. Os remates, de movimentados frontões interrompidos, contrastam com as linhas calmas e clássicas dos corpos inferiores. Decoram-se com glórias solares, mas, no retábulo-mor, esta zona é obviamente enriquecida com figuras de anjos sentados, segurando palmas, e outros elementos. Rasga-se nele a boca da tribuna, outrora preenchida por uma tela com o martírio de Sant’Iago e agora exibindo o trono eucarístico de cinco degraus curvos.
Igreja de Santiago de Eiras imagem de S. Tiago
Ainda se conservam algumas imagens, vindas da igreja antiga. De salientar é o Sant’Iago, no altar colateral esquerdo, boa e expressiva obra da renascença coimbrã.
O estilo retabular do rococó coimbrão, gerado a partir do retábulo de Santa Cruz, tem em Eiras um cunho deveras interessante, a merecer cuidados na sua preservação, porque expressão estética de uma época em que os artistas de Coimbra deixaram a sua marca em todo o centro do país.
Nelson Correia Borges
In: Correio de Coimbra, n.º 4695, de 07 Junho 2018, p. 8.
Havia antigamente (até 1832) uma interessante festa em Celas: a festa do «Imperador de Eiras».
Eiras é uma pequena povoação situada a cerca de uma légua ao norte da cidade. Os seus habitantes, segundo muito antiga tradição, vendo que a peste havia invadido Coimbra, começara, capitaneados pelo pároco, a implorar o auxílio celeste, dirigindo principal ou exclusivamente as suas instantes preces ao Espirito Santo.
A divina pomba resolveu-se a atender aos rogos dos eirenses; a peste não penetrou no lugar; e eles fizeram voto de todos os anos elegerem de entre os melhores homens da terra um “a quem haviam de tributar as ofertas dos seus frutos, para que com o nome de «Imperador do Espirito Santo» festejasse ao mesmo Divino nos dias de Páscoa da Ressurreição e do Pentecostes”.
Eleito o imperador pela câmara da povoação (a terra tinha as honras de concelho), era-lhe por ela entregue a quantia de vinte e seis mil réis, cinquenta alqueires de trigo, e oito almudes de vinho.
Este imperador, relativamente barato, tomava posse do seu elevado cargo na primeira oitava do Espirito Santo, indo à igreja matriz com acompanhamento da camara, da nobreza da vila, de dois pajens e dois criados, tudo precedido de uma bandeira de damasco encarnado. O pároco esperava o imperador no arco da capela-mor, assistido do juiz da igreja com cruz alçada e duas tochas; e, ajoelhado sua majestade, lhe punha na cabeça, «sobre um casquete vermelho, a coroa de prata», que dois pajens lhe ministravam, dizendo-lhe com toda a solenidade: – «Eu vos constituo imperador de Eiras». Em seguida entregava-lhe um terçado antiquíssimo, que o imperador beijava, restituindo-o ao pajem; e depois começava sua majestade a percorrer as ruas do seu estado, dirigindo-se com o mesmo acompanhamento, aumentado com a cruz alçada entre duas tochas, à capela do Santo Cristo, aonde ajoelhava para o pároco lhe tirar a coroa e o casquete.
Dali, formando uma luzida cavalgata, dirigia-se o cortejo – o imperador, os pajens, a camara, a nobreza – com a sua bandeira à frente e com alguns músicos, para o mosteiro de Celas.
... Entrados todos na igreja ao som de repiques de sinos, e feita a oração do estilo, cantava-se um «Te Deum», e era o imperador novamente coroado pelo capelão.
Terminado o ofício, ia o imperador sentar-se junto às grades do coro, ande conversava com a abadessa e mais freiras.
... Em seguida, sua majestade recolhia-se à casa da hospedaria a descansar e a tomar alguns refrescos, oferta da abadessa. Pedida por esta a coroa, era ela beijada pelas freiras, que ... a consideravam milagrosa.
Durante a visita, sua majestade era da parte das travessas freiras muito escarnecido ... sucedendo-se às troças das sorores as da rapaziada quando o imperador passava.
... Depois da receção em Celas, ia o imperador à capela do Espirito Santo, perto de Santo António dos Olivais, aonde continuavam as festas, com arrial, e um grande banquete publico ... por esta ocasião havia também corridas de éguas, e lutas de homens.
Figueiredo, A. C. B. 1996. Coimbra Antiga e Moderna. Edição Fac-similada. Coimbra, Livraria Almedina, pg. 329-332
O Chafariz de D. João V é uma maravilhosa obra de decoração do séc. XVIII.
Situa-se no Terreiro da Fonte, ao lado esquerdo da Igreja Paroquial, no lugar e Freguesia de Eiras e está bem conservado. Tem a sua abundante nascente a cerca de 1.000 metros acima, no lugar do Gingil.
De arquitetura baseada na Fonte Nova, da cidade de Coimbra ... pode dizer-se que é a filha mais nova desta. É formada por um corpo central e dois laterais mais baixos, tendo um tanque a todo o comprimento.
Compõem o corpo central duas pilastras, entablamento e frontão curvo. Neste corpo, e por cima do tanque central, existem dois mascarões em que duas bicas jorram água que, em 1921, corria das nascentes até ao Terreiro da Fonte por caleiras de pedra de cantaria assentes num muro de alvenaria.
Mais acima, encontra-se um grande rótulo com o letreiro seguinte:
ESTA OBRA MANDOV FA
ZER EL REI DOM JOÃO V DOS
SOBEJOS DO CABESAM DAS
SIZAS DESTA VILA DE EI
RAS, ANNO DE MDCCXXXX
Por cima deste rótulo, um nicho, em meio de ornatos, mostra a imagem de Santo António com o Menino ao colo, e umas palavras meio gastas de que é ainda possível decifrar as seguintes: do lado esquerdo, SISHD; do lado direito, SIGILDVH.
Ao alto, o escudo da Nação, interrompe, a meio, o frontão.
O Chafariz foi recebendo, ao longo do tempo, várias reparações; são conhecidas as dos anos de 1842 e 1851.
Era no Chafariz de D. João V e na Fonte do Escravote, situada próximo, onde a população da freguesia se abastecia, principalmente em cântaros de barro, pois só em 1973 é que se iniciaram as obras de distribuição de água ao domicílio e o saneamento.
Lemos, J.M.O. 2004. Fontes e Chafarizes de Coimbra. Direção de Arte de Fernando Correia e Nuno Farinha. Coimbra, Câmara Municipal de Coimbra. Pg. 127
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