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Iniciamos hoje a divulgação de dois textos inéditos, que dividimos por quatro entradas, da autoria de Regina Anacleto e que têm como objetivo a divulgação sumária da vida de Mestre Albertino Marques e o estudo de uma peça que ele cinzelou para a Capela do Seminário Maior de Coimbra.
Albertino Marques que nasceu em Coimbra, na freguesia de Santa Cruz, a 27 de abril de 1890, é um dos artistas que, na primeira metade do século XX, trabalhavam o ferro forjado na cidade do Mondego.
Albertino Marques (Coimbra, 1890-Coimbra, 1966)
O artífice frequentou a Escola Industrial Brotero e quando, em 1907, apenas com 14 anos, terminou o curso iniciou o seu percurso como obreiro do ferro com o serralheiro António Maria da Conceição (Rato) e, posteriormente, em 1918, na oficina de Francisco Nogueira Seco, localizada no Quintal do Prior.
Após a morte deste artista sucedeu-lhe na sociedade, de parceria com os descendentes do industrial e com Daniel Rodrigues. A sociedade girava sob o nome de “Seco, Graça & Marques”. Contudo, Daniel, em 1919, separou-se e inaugurou a sua serralharia no Terreiro da Erva, n.º 36, local onde permaneceu até ao fim da vida e Albertino, a partir de 1929, instalou a sua oficina na Rua João Machado.
Albertino Marques, que jamais deixou de estudar, com o desejo de melhorar a sua formação, passou a frequentar a Escola Livre das Artes do Desenho e a ter como mentor mestre João Machado.
A sua capacidade de saber fazer falar o ferro tosco, tornando-o delicado, introduziu o seu nome entre os mais conhecidos artistas que, em Portugal, se dedicaram à arte de forjar.
A serralharia artística constituiu o objetivo primacial de toda a vida de Albertino Marques, mas, nomeadamente por questões de ordem económica, tornou-se-lhe impossível colocar à margem outros trabalhos mais vulgares.
Lanterna do Parque de Santa Cruz
Ativista das antigas organizações operárias, cedo compreendeu a importância da publicidade na difusão da arte do ferro, facto que, de algum modo, lhe permitiu espalhar as peças saídas da sua oficina por todo o país; os artefactos passavam por tocheiros, em estilo gótico, renascentista ou ‘modernizado’, por lâmpadas cinzeladas ou por portas e grades para jazigos e campas.
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No meio artístico conimbricense, sobretudo no ligado ao ferro forjado, a partir de 1933, instalou-se uma grave crise que se foi prolongando até meados da centúria, agravada por vicissitudes várias, a passarem pela falta da encomenda de trabalhos importantes que ajudassem os artistas a preservar a sua arte e pelo panorama económico da sociedade, que dificilmente permitia às pessoas dispor de numerário passível de possibilitar a compra de obras já que estas não se assumiam como bens necessários à sobrevivência.
Albertino Marques, antes de, em 1955, por razões de saúde, ter encerrado, definitivamente, a sua oficina, realizou várias obras em serralharia artística para instituições religiosas.
Posteriormente, passa a entreter as horas de ócio escrevendo sobre coisas de Coimbra e da sua arte. Nesses escritos, publicados no jornal «O Despertar», revela o gosto e o conhecimento das várias formas de arte, bem como o seu interesse por tudo o que diz respeito à sua cidade natal.
Caricatura de Albertino Marques
A 27 de abril de 1966, com 76 anos de idade, depois de ter dedicado 62 à arte do ferro forjado, morre em Coimbra na sua residência, sita na Rua João Machado, o artista Albertino Marques.
Anacleto, R. Albertino Marques (Coimbra, 1890-Coimbra, 1966). Breves notas soltas. 2024. Texto inédito.
Um outro artista do ferro, que não pode deixar de merecer referência especial é Daniel Rodrigues, homem que nasceu a 26 de março de 1886 no Largo das Ameias, em Coimbra, terra para onde os seus pais, oriundos de Penacova e de Figueira de Lorvão se haviam transferido. Penso poder dizer que o pai, também Daniel Rodrigues de seu nome, casou com Maria do Rosário a 9 de janeiro de 1881, na igreja de S. Bartolomeu.
Daniel Rodrigues
Iniciou a sua aprendizagem numa oficina de serralharia civil, mas a sua habilidade invulgar para o desenho e manejo do ferro terão despertado o interesse de António Augusto Gonçalves, que o levou a frequentar as aulas de Desenho Ornamental e de Modelação, ministradas na Escola Industrial Brotero por Silva Pinto e pelo próprio Gonçalves.
Retrato de Bissaia Barreto. Desenho de Daniel Rodrigues
Foi também aluno da Escola Livre. Em 1933, conjuntamente com António Maria da Conceição e com Manuel de Jesus Cardoso, integra a direção daquela “universidade plebeia”, fazendo-se também sócio da Associação de Socorros Mútuos dos Artistas de Coimbra. Morreu, com 84 anos, quase à beira de cumprir mais um, a 11 ou 12 de fevereiro de 1971.
Daniel Rodrigues, começou a executar, em 1928, uma artística grade para o palacete Sotto-Mayor que foi construído na Figueira da Foz.
A fundição deste trabalho esteve a cargo da casa Alves Coimbra, Sucessores, desta cidade, e a cinzelagem e acabamento foram feitos na oficina do mestre serralheiro. A peça, que foi muito apreciada e mereceu rasgados elogios de João Ameal no Diário de Notícias, esteve exposta no estabelecimento “A Vigorosa”, da rua Ferreira Borges.
Grade para o palacete Sotto Mayor
Daniel era um homem católico e, por conseguinte, de certo modo marginalizado pelos seus colegas e mestres, ateus ou agnósticos e que se encontravam fortemente ligados à maçonaria; por isso não admira que trabalhos como os que bateu para a igreja de Santo António dos Olivais não tivessem na imprensa o eco que alcançaram peças de igual gabarito saídas do malho de outros artistas. Mas, em 1934, por iniciativa do pároco daquela freguesia, padre Manuel Estrela Ferraz, fez o desenho e executou duas artísticas grades de ferro, em estilo gótico, destinadas às capelas laterais da escadaria da igreja. Quatro anos depois, bateu uns artísticos portões para a capela de Nossa Senhora das Dores e para a do Senhor dos Passos, da mesma igreja, bem como o lustre central do templo.
Porta da Capela de Nossa Senhora das Dores
Porta da Capela de Nossa Senhora das Dores. Desenho
De entre as obras de Daniel Rodrigues, com temática religiosa, destaca-se o Anjo da paz eterna, “esculpido” em 1941, a fim de ser colocado no portão do cemitério da Conchada, a substituir o esqueleto que ali se encontrava. Trata-se de uma estátua vultuosa que teve por modelo uma das suas filhas; dir-se-ia que o artista trabalhou o ferro com a mesma facilidade com que as mãos do oleiro modelam o barro.
Cemitério da Conchada. Anjo da Paz Eterna
O anjo ergue as suas asas e, segurando a cruz, como que aponta o céu, num sinal de esperança e de evasão que é, afinal, o estigma de toda a arte. Neste trabalho deve salientar-se a perfeita nitidez das feições do rosto e a execução do cabelo, o subtil drapeado da túnica, apertada na cintura com um cordão, deixando aparecer, ligeiramente, os pés descalços, simbolizando a humildade e a fragilidade inerente ao ser humano.
Nas horas vagas, vai trabalhando a porta do jazigo da sua filha Berta que havia falecido prematuramente. Trata-se da obra mais sentimental saída da sua oficina A peça revela a forte sensibilidade do artista, que retrata, através da imagem esculpida no ferro duro e frio, o real-irreal ou o tempo-não-tempo, que é a transição vida-morte, numa quase ausência de dimensões. No tímpano retratou, ao mínimo pormenor o quarto onde a filha morreu, com o seu mobiliário, a janela que já não dá para este mundo e a jovem, soerguida no seu leito, enfrentando o Anjo da morte.
Cemitério da Conchada. Porta do jazigo da filha
Sob o tímpano encontram-se esculpidas, duas almofadas: na da esquerda pode observar-se “Daniel na cova dos leões” e na da direita encontra-se representada “Santa Beatriz”; alusões diretas ao seu nome e ao de sua mulher.
Em baixo, a meio dos batentes, visualizam-se dois medalhões que mostram, respetivamente, Cristo e a Virgem, entre lírios e rosas, apontando, nitidamente, para a ressurreição.
Tímpano da porta do jazigo da filha
Ao longo da sua vida, Daniel Rodrigues, que perde dinheiro em muitos trabalhos (a salvação do artista é o artífice), executa “relevos erguidos no ferro forjado à força de buris e martelada”. É um trabalho verdadeiramente “toledano, grosso de aspeto, mas de um valor que atesta bem as possibilidades da forja e do martelo ao serviço da arte”.
Medalha da Casa da Criança Bissaia Barreto
Medalha da Casa da Criança Bissaia Barreto. Estudo
Na IV Exposição Oficial de Arte em Coimbra (1942), patrocinada pela Comissão Municipal de Turismo e que se realizou no edifício da Faculdade de Letras, o artista expôs uma banqueta de ferro forjado e cinzelado, que se destinava à capela da base aérea da Ota, posteriormente também mostrada na igreja de S. Tiago; o desenho e a execução pertencem-lhe, mas apoiou-se, para a riscar, na opinião avalizada do Doutor António Nogueira Gonçalves.
Banqueta para a basa aérea da Ota
Em 1955, mestre Daniel foi encarregado de executar também dois portões para o edifício da Caixa Geral de Depósitos de Coimbra, mas resolveu ceder parte da empreitada ao artista industrial Joaquim Geraldo Lopes.
Portão cinzelado por Daniel Rodrigues com desenho de Raúl Lino
Os seus trabalhos, e já se não refere Coimbra, encontram-se espalhados por todo o país, desde a Régua, a Odemira, passando por Braga, Porto, Aveiro, Figueira da Foz, Torres Novas, Beja, Lisboa, Covilhã, Belmonte, Figueiró dos Vinhos, Espinhal, Santa Comba ou Mortágua.
Oficina de serralharia. Desenho de Daniel Rodrigues
Daniel Rodrigues é um dos artistas que integram a vasta plêiade de serralheiros da cidade do Mondego; para ele, a arte de alindar o ferro não tem segredos: aproveitou bem as lições dos seus mestres.
Anacleto, R. A arte do ferro forjado na cidade do Mondego, primeira metade do século XX. In: História, Empresas, Arqueologia Industrial e Museologia. 2021.Edição Imprensa da Universidade de Coimbra, pg. 259-292.
Uma outra obra conjunta e de grande envergadura, a envolver quase todos os artistas mondeguinos do ferro, encontra-se relacionada com o edifício do Palácio da Justiça, a finalizar-se na inacabada morada dos condes do Ameal.
Tímpano do portão principal da fachada do Palácio da Justiça. Obra coletiva.
O titular comprou, antes de 1895, o antigo colégio de São Tomás, que se erguia na zona cabeira da rua da Sofia e introduziu-lhe modificações tendentes a transformá-lo na sua residência. Chamou para dirigir as obras o arquiteto Silva Pinto que lhe foi indicado pelo seu amigo lisboeta, o arquiteto José Luís Monteiro.
Antigo Colégio de S. Tomás.
Após a morte do conde, a sua incompleta habitação foi posta à venda, tendo sido, depois de atribuladas negociações e por ordem do então ministro da Justiça, Dr. Manuel Rodrigues, adquirida, entre 1926 e 1928, a fim de aí ser instalado o Palácio de Justiça mondeguino. Para superintender nas obras do edifício, o governo nomeou uma Comissão Administrativa e como o diretor das obras públicas do Distrito de Coimbra não podia desempenhar o cargo, indicou o engenheiro Manuel de Abreu Castelo Branco, que passou a ser o responsável, saindo do seu lápis o projeto do acrescentamento das duas alas, Nascente e Norte, que ainda não tinham sido construídas.
Portões de ferro forjado da fachada principal do Palácio da Justiça.
Aquele técnico teve um certo cuidado, respeitando, minimamente, o estilo e a harmonia que vinham a ser utilizados, sobretudo no que respeita a interiores, porque alterou profundamente o projeto da fachada.
O edifício da Domus Justitiae foi inaugurado a 6 de maio de 1934 e, durante vários anos, funcionou como ex-libris do Ministério da Justiça.
Na sessão de 29 de agosto de 1929, a Câmara Municipal de Coimbra apreciou um requerimento do Juiz Presidente do Tribunal da Relação, pedindo licença para proceder à vedação do Palácio da Justiça, com um muro e gradeamento. Mas, quase em simultâneo com o pedido, a imprensa noticiava que tinha sido aprovada a proposta conjunta dos serralheiros Lourenço Chaves de Almeida, António Maria da Conceição, Daniel Rodrigues, José Domingos Baptista e Albertino Marques, para a feitura de 106 metros de grade, 2 portões e várias pilastras destinadas à parte exterior das traseiras do imóvel. Os trabalhos eram realizados sob a direção do engenheiro Castelo Branco e constava que outras obras, como lustres, grades interiores, portões, etc., lhes iriam ser encomendadas.
Portão da vedação do Palácio da Justiça.
Portão da vedação do Palácio da Justiça. Desenho existente no espólio de Daniel Rodrigues.
A vedação que, em agosto de 1930, se andava a assentar, de ferro batido era considerado pela imprensa da época como um dos mais artísticos trabalhos “que se têm executado nos últimos tempos em Coimbra, obedecendo à arquitectura do renascimento do século XVI, tão notável e abundante na nossa região e que tem servido de escola aos artistas contemporâneos”.
Mas as encomendas para a Casa da Justiça, tal como havia sido anunciado, continuaram a acudir às oficinas dos serralheiros e, no ano seguinte (1931) Albertino Marques forjava, para o Palácio da Justiça, um novo portão em estilo renascença; concomitantemente, os “ourives do ferro” executavam, no mesmo gosto, quatro candeeiros, destinados à iluminação do claustro superior.
Na mesma altura, para o salão nobre do tribunal, Albertino Marques e Daniel Rodrigues, coadjuvados por João Machado Júnior que modelou os bustos destinados a ser, posteriormente, executados em ferro forjado, bateram um lustre.
Lustre central da Sala das Audiências.
Terminados em fins de junho de 1934, foram executados nas oficinas de Daniel Rodrigues e de Albertino Marques quatro artísticos lampiões e as respetivas gárgulas de suporte, que se destinavam, obviamente, ao imóvel em causa.
Lampião e gárgula de suporte.
Lampião e gárgula de suporte. Desenho existente no espólio de Daniel Rodrigues.
Numa entrevista feita aos artistas conimbricenses do ferro, levada a cabo por um jornal local, revela-se que os portões do Palácio da Justiça tinham sido executados “a meias”, porque o trabalho fora arrematado por Daniel Rodrigues, que resolveu dividi-lo com Albertino Marques e com António Maria da Conceição. Como se depreende, Daniel é o responsável e dirige os trabalhos executados nas três oficinas, todas elas pequenas e ruidosas; contudo, a do mestre serralheiro, era a mais pequena de todas, “baixa, com tecto abobadado em arcos, quase um cubículo”.
Daniel Rodrigues, em 1915, era sócio da antiga oficina de Francisco Nogueira Seco que se situava no Quintal do Prior, mas, em 1919, inaugurou a sua serralharia no Terreiro da Erva, n.º 36, local onde permaneceu até ao fim da vida.
É ainda sediada no Quintal do Prior que, em 1818, Daniel, talvez de parceria com Albertino Marques e com os descendentes do acreditado industrial Francisco Nogueira Seco, constituíram uma sociedade que girava sob o nome de “Seco, Graça & Marques”. Nessa oficina, um deles, ou ambos, faz ou fazem, a jogo, uns ferros para o fogão estilo Luís XV esculpido por João Machado, destinado à casa de Álvaro Castanheira Esteves, Filho. Não será de excluir a possibilidade de Daniel Rodrigues e de Albertino Marques, sócios da dita manufatura, se terem desentendido, talvez até por via destes suportes, uma vez que as peças, posteriormente, surgem com a paternidade atribuída ora a um, ora a outro. Como quer que seja, Albertino Marques, gerente da firma que explorava a oficina do Quintal do Prior, transfere o seu local de trabalho para o Terreiro da Erva, onde, já em 1922 se encontrava sediado. Embora dois anos mais tarde ainda ali permanecesse a laborar, em 1925, era dono da serralharia que se situava no Adro de Santa Justa e, quatro anos volvidos, transfere-se, definitivamente, para a rua João Machado.
Apesar de a citada entrevista apontar como autor do risco dos portões do Palácio da Justiça o engenheiro Castelo Branco, a verdade é que tanto informações orais, como as notícias dos periódicos o atribuem, sem margem para qualquer dúvida, a paternidade dos mesmos a Daniel Rodrigues.
As grades de ferro que fecham as três aberturas e dão acesso ao interior do Palácio de Justiça deviam ser colocadas no princípio do ano de 1936 ou ainda antes; utilizam uma gramática neorrenascentista, onde avultam medalhões, enrolamentos e grutescos. Daniel Rodrigues, à boa maneira antiga, deixou nos portões, que pesam três toneladas, um testemunho, colocando uma moeda de prata de 10$00 em cada um dos medalhões do corpo central.
Portão principal da fachada do Palácio da Justiça.
O arco do meio, de volta inteira, apresenta, como se de um tímpano se tratasse, uma monumental bandeira que, ao centro, ostenta a figura simbólica da justiça, rodeada por gentes desavindas, representadas por dragões que olham assustados para a figura central, temendo a sua ação; os animais mostram uma atitude de contendores furiosos, mas as cabeças, porque os seus olhos avistam a justiça, voltam-se para trás, temerosos da balança da verdade. A rodear e a compor o motivo, encontram-se elementos ornamentais renascentistas.
Figura simbólica da justiça. Tímpano do portão principal.
Para a mesma Casa da Justiça, do cinzel de Daniel Rodrigues e de Albertino Marques, individualmente ou de parceria, mas quase sempre com desenho do primeiro, saíram a grade do tribunal do crime, os lustres da sala da Relação, os dos gabinetes do Presidente e do Procurador, lanternas para o claustro baixo e três portões para o interior, estes da inteira responsabilidade de Marques.
Anacleto, R. A arte do ferro forjado na cidade do Mondego, primeira metade do século XX. In: História, Empresas, Arqueologia Industrial e Museologia. 2021.Edição Imprensa da Universidade de Coimbra, pg. 259-292.
Os artistas conimbricenses do ferro iam batendo as mais diversas peças, trabalhando quase sempre isoladamente, mas expondo-as coletiva ou individualmente, tanto em mostras locais, como nacionais; contudo, quando elaboravam algum artefacto mais requintado, não se eximiam de o apresentar no Museu Machado de Castro, na Faculdade de Letras, ou na montra de algum estabelecimento comercial da Calçada.
Uma, talvez a primeira grande apresentação pública dos seus trabalhos fora da cidade, aconteceu em 1905, na exposição que o Grémio Artístico ou a Sociedade Nacional de Belas-Artes (as fontes divergem) anualmente realizava em Lisboa. Estiveram aí presentes trabalhos de Daniel Rodrigues, de Lourenço Chaves de Almeida, de Manuel Pedro de Jesus, de António Craveiro e de António Maria da Conceição.
António Craveiro. Porta de jazigo
Pode ficar-se com uma ideia desta mostra através da leitura do artigo que Quim Martins publicou, em 1906, na “Illustração Portugueza”.
A Resistencia, por seu turno, informa que Chaves de Almeida expôs as ferragens (tenaz, suporte e pá) que se destinavam a fazer conjunto com um fogão que João Machado esculpira para a casa de José Relvas, em Alpiarça. “As peças foram batidas em estilo renascença e o ferro está torcido como o dos pequenos balaústres que essa arte requintada deixou espalhada por palácios e jardins de Coimbra. A obra foi feita segundo um croquis de António Augusto Gonçalves, como os ele sabe fazer, apontamento ligeiro destinado apenas a sugerir, a excitar a actividade criadora dos seus discípulos. Os dois monstros que o enfeitam estão poderosamente martelados e esculpidos em ferro. Toda a obra revela excepcionais aptidões para a arte de trabalhar o ferro que, depois do período atormentado do ferro fundido, hoje renasce por toda a parte”.
Chaves de Almeida. Ferros para uma chaminé da Casa dos Patudos
Mas, a primeira obra coletiva de vulto surgiu quando foi necessário dar resposta aos trabalhos de ferro, destinados ao edifício da Faculdade de Letras, que havia sido projetado, em 1913, pelo arquiteto António Augusto da Silva Pinto.
Faculdade de Letras projetada pelo arquiteto António Augusto da Silva Pinto
Um pouco estranhamente, ou talvez não (a falta de dinheiro pode ser uma das explicações viáveis), só em 1927 vieram a ser assentes, na fachada principal do edifício, os grandes portões de ferro forjado, obra dos artistas Manuel Pedro de Jesus, António Maria da Conceição (Rato), Daniel Rodrigues, Albertino Marques. A direção do trabalho e o desenho dos portões é da responsabilidade de Silva Pinto.
Portão da antiga Faculdade de Letras sem a bandeira
Aliás, a Faculdade de Letras, pode bem dizer-se, manteve uma avença com o ferro forjado, porque, dois anos antes, em 1925, Albertino Marques tinha em mãos uma grade que se destinava àquela casa e em 1928 e 1929 executou quatro artísticos candelabros para serem colocados na escadaria, bem como dois monumentais tocheiros, pesando, cada um 70 quilos e medindo 1,80 metros, para o vestíbulo. Além disso, no mesmo estilo dos candelabros, também com desenho e sob a orientação de Silva Pinto, bateu dois portões de ferro forjado para a entrada do museu da Faculdade. Numa linha mais prosaica e utilitária, foi entregue a mestre Albertino a feitura de 39 metros de estantes de ferro.
Portão da antiga Faculdade de Letras. Pormenor
Mas as encomendas da Faculdade de Letras não se ficaram por aqui, pois em 1930, nas oficinas de Daniel Rodrigues e de Albertino Marques estavam a executar-se umas artísticas ferragens para a porta do salão nobre do edifício e seis anos depois aquele imóvel ia ser rodeado com uma grade de ferro, cuja execução fora confiada a Albertino Marques, a Daniel Rodrigues e a Jesus Cardoso.
Anacleto, R. A arte do ferro forjado na cidade do Mondego, primeira metade do século XX. In: História, Empresas, Arqueologia Industrial e Museologia. 2021. Edição Imprensa da Universidade de Coimbra, pg. 259-290.
A serralharia artística de Coimbra renasceu com António Augusto Gonçalves e com o Dr. Joaquim Martins Teixeira de Carvalho, na intimidade Mestre Gonçalves e Mestre Quim Martins, como lhe chamava a plêiade de artistas do ferro que foram seus discípulos: António Maria da Conceição (Rato), Albertino Marques, António Craveiro, Daniel Rodrigues, Lourenço Chaves de Almeida, Manuel Pedro de Jesus, José Domingues Baptista e Filhos, José Pompeu Aroso, e tantos outros. Das mãos dos ‘ferreiros’ saíram obras notáveis, capazes de marcar o ressurgimento daquela arte rude e maravilhosa que, em Coimbra, a partir de meados do século XIX, tanto tinha decaído, limitando-se, a bem dizer, ao fabrico de camas e de lavatórios, como se verificou na exposição, realizada em 1869, no salão da Associação dos Artistas.
Joaquim Martins Teixeira de Carvalho
Nesse renascimento, para além dos citados Gonçalves e Quim Martins, podem ainda referir-se os nomes de Manuel Pedro de Jesus e de João Augusto Machado, este também a tentar o ferro e o primeiro que, a partir de certo momento, lhe dedicou todo o seu saber e criatividade; por isso, os podemos apelidar de precursores da serralharia artística aeminiense.
A Câmara Municipal, logo em 1903, entendendo que devia encorajar a nova indústria, abriu concurso para a construção de um coreto destinado a ser colocado no novo Passeio Público que se iniciava no Largo das Ameias. Manuel José da Costa Soares, o artista que emprestara os utensílios a João Machado e o ensinara a bater o ferro, concorreu, a par com algumas firmas industriais sediadas no Porto.
Coreto no Passeio Público
Costa Soares era dono de uma alquilaria, sita à Rua da Sofia, na inacabada igreja de S. Domingos, onde, ao fundo, um pouco afastado da entrada, montara a forja. Mas os seus trabalhos de ferro já eram conhecidos, porque foi ele que arrematou a parte metálica do então Teatro-Circo e também é da sua autoria a cúpula metálica da Penitenciária, feita em 1887.
A comissão nomeada para apreciar as propostas que haviam sido apresentadas acabou por dar o seu aval à do referido industrial, porque, para além do mais, o seu projeto não era uma obra de catálogo, de fabrico em série, mas tratava-se de uma construção inédita. Contudo, foi “o modesto artista sr. João Gaspar, que na officina do sr. Manoel José da Costa Soares forjou as peças do corêto que a camara municipal mandou construir na Avenida Emygdio Navarro”.
Coreto. Manuel José da Costa Soares com desenho de Silva Pinto
A estrutura, posteriormente transferida para o Parque Dr. Manuel Braga, foi adjudicada a 18 de fevereiro do ano seguinte, e sabe-se, apenas através do que se encontra escrito em jornais publicados na cidade, que o arquiteto Silva Pinto, “um dos mais calorosos apóstolos do novo culto”, executara o seu desenho e que a edilidade tinha todo o interesse em entregar a obra a um artista da cidade, porque podia, deste modo, implementar a indústria nascente.
O coreto depois de transferido para a Parque Dr. Manuel Braga
Anacleto, R. A arte do ferro forjado na cidade do Mondego, primeira metade do século XX. In: História, Empresas, Arqueologia Industrial e Museologia. 2021. Edição Imprensa da Universidade de Coimbra, pg. 259-290.
Há já algum tempo utilizei o pequeno autocarro que liga o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha à Universidade, passando pela Mata do Botânico, a fim de desfrutar a beleza que tal deslocação (devia) proporciona(r), mas, na passada quarta feira (29 de agosto) percorri a pé parte da Mata, partindo do belíssimo portão que se encontra na Rua da Alegria até ao Reservatório, adossado ao que resta da muralha que ainda se pode visualizar num pequeno troço da Couraça de Lisboa.
Tive então ocasião de analisar mais pormenorizadamente todo o percurso e, se vi coisas de que gostei, outras houve que me causaram tristeza e me desgostaram.
Começando pelas primeiras.
- Portão da Rua da Alegria
Antiga Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Portão da Rua da Alegria, antes do recente restauro
Portão da Rua da Alegria. Pormenor
A peça pertenceu a uma das entradas da primitiva Faculdade de Letras que se erguia no local onde atualmente se encontra a Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Projetou o edifício, em 1912, o arquiteto Augusto de Carvalho da Silva Pinto. O desenho dos portões, colocados apenas em agosto de 1927, também lhe pertence e foram batidos por Manuel Pedro de Jesus, António Maria da Conceição (Rato), Daniel Rodrigues e Albertino Marques, todos eles saídos da plêiade dos serralheiros artísticos de Coimbra. Depois da intervenção na zona da Alta, que acabou por transformar o edifício em causa, um dos portões foi transferido para a Rua da Alegria, enquanto os outros e as bandeiras das aberturas levaram sumiço. Como se comprova estamos perante mais uma muito boa obra de serralharia saída das oficinas coimbrãs a merecer um olhar atento.
- Recuperação do caminho pela Mata
O caminho percorrido pelo miniautocarro atravessa parte da mata e, para além de ser muito belo, está bem conseguido; passa, nomeadamente, junto ao bambuzal, provavelmente o maior da Europa. O número de turistas que utilizam aquele transporte, bem como os que se deslocam a pé e que encontrei tanto a descer como a subir podem fruir da beleza da mata. Realidades que justificam a existência da carreira e a necessidade de a manter a funcionar.
- Reservatório
Embora ainda não esteja completa a recuperação do reservatório de água existente na Mata do Botânico e que serviu para, outrora, abastecer do precioso líquido a parte baixa da cidade, aquilo que já foi feito – como se constata a partir da entrada publicada na passada 3.ª feira – permitiu alertar para a existência de um património de interesse que se encontrava completamente esquecido e cuja reabilitação importa terminar dando-lhe uma conveniente utilização, quiçá de índole cultural. Talvez seja de equacionar, por nos parecer uma boa utilização deste espaço, a instalação de um polo do Museu da Água.
Passo a referir, a partir daqui, os aspetos que me causaram tristeza e me desgostaram.
- Fonte da Mata de S. Bento
Fonte da Mata de S. Bento
Magnificamente enquadrada na Mata o Professor Nelson Correia Borges carateriza-a como sendo uma fonte típica das “cercas monásticas, que, juntamente com sítios de fresco, capelas e tanques de água se assumiam como locais de recreio, de meditação e de oração situadas sempre em contacto com a natureza”.
A imagem fala por si mesma, mostrando que a estrutura se mostra carecida de urgente recuperação antes que os homens, o tempo e a Natureza a façam desaparecer.
- Capela de S. Bento
Capela de S. Bento
Seguindo as placas de orientação chega-se a um local paradisíaco. Um dossel de árvores abriga a capela de S. Bento, onde a reflexão em profunda interação com a Natureza por certo acontecia.
Como os trabalhos de desmatação levados a cabo no local se tornam evidentes, pensamos que, sem grandes custos, se podia ter ido mais longe e limparem-se as paredes exteriores e isto sem prejuízo das obras de maior envergadura de que a capela, por certo, necessita.
- Muralha de Coimbra
Ao prosseguir no caminho de acesso ao Reservatório passámos por um local onde outrora existiu um miradouro e de onde nos foi possível recolher as imagens que seguidamente publicamos.
Muralha. Couraça de Lisboa 1
Muralha. Couraça de Lisboa 2
Muralha. Couraça de Lisboa 3
Muralha. Couraça de Lisboa 4
Ao longo dos séculos a cidade e as suas gentes não quiseram, ou não puderam, evitar o desmantelamento da Muralha de Coimbra.
É verdade que a valorização do pouco que resta já se iniciou, mas urge prosseguir para fielmente, e assente em dados concretos, se escrever a História de cidade e valorizar dignamente o que subsiste dessa estrutura.
É hoje inquestionável que a valorização de uma cidade passa pelo progresso, mas este deve assentar no respeito que os seus habitantes e os seus autarcas mostrarem (e demonstrarem) tanto pelo passado, como pela História da urbe.
O átrio, retangular, corresponde ao coro alto e, relativamente à frontaria anterior aos frades, resulta num avanço. De cada lado podem observar-se portas retangulares, fechadas por grades, saídas da forja de Daniel Rodrigues, em 1941.
Pormenor de uma das grades existentes no átrio da igreja de Santo António dos Olivais. Daniel Rodrigues
A da direita (a de Nossa Senhora da Conceição), dá para uma capela de plano octogonal, a funcionar atualmente como sacristia, e mostra a última cena do escadório, isto é, a lamentação de “Cristo deposto da Cruz” ...O portão da esquerda cerrava a capela do Senhor dos Passos, com a sua imagem. Atualmente alberga apenas um Crucifixo.
As paredes do átrio encontram-se envolvidas por um alizar de azulejos, de motivos independentes, mas de qualidade superior aos do escadório e, no teto, pode ver-se um escudo com as armas franciscanas.
Acede-se à nave da igreja através de uma porta da segunda metade do século XV, ainda com impostas, mas já sem capitéis.
Igreja de Santo António dos Olivais. Interior
Sobre o átrio fica o coro, mostrando um insignificante cadeiral do século XVIII.
O interior da igreja é muito simples e cobre a nave uma abóbada de tijolo, de traçado rebaixado e de lunetos.
Os retábulos são de talha dourada, do primeiro terço do século XVIII, tendo o da capela-mor colunas torcidas e os colaterais ao arco cruzeiro, hermes femininos. As mesas de altar são posteriores.
No altar-mor encontra-se uma grande tela representando a Senhora da Conceição. Está assinada: PASCVAL PARENTE PINXIT. 1779.
No mesmo altar podem ver-se duas esculturas em madeira, uma, de S. Francisco, da época do retábulo e a outra, de S. João Baptista e do mesmo século; num nicho da parede encontra-se um Cristo Flagelado. Estas esculturas são obras secundárias. Os retábulos laterais apresentam Santo António no lado do evangelho e S. José no da epístola. Estamos perante obras agradáveis mas inferiores.
O interesse da igreja reside nos azulejos que revestem a maior parte da parede. Os da capela-mor, que a forram inteiramente, são do fim do século XVII, só a azul, em dois motivos, um de composição de folhas acantiformes e outro de entrelaces quadrifoliados com rosetas centrais.
Os azulejos do corpo da igreja pertencem à primeira metade do século XVIII, tendo muito interesse pelo grande desenvolvimento de composição dos enquadramentos; são, no entanto, fracos nas figuras. Representam cenas da vida de Santo António, com a seguinte distribuição: do lado do evangelho, começando a partir da porta: cura de um frade possesso, o santo livra o pai da forca, uma tomada de hábito e milagre da mula; do lado da epístola: pregação aos peixes, milagre do pé cortado, aparecimento de S. Francisco no capítulo de Arles e morte do santo. A reparar umas falhas azulejares, principalmente junto ao chão, foram colocadas peças cerâmicas de diversas épocas, com realce para alguns, sevilhanos de aresta, datáveis do século XVI.
No corredor de acesso à sacristia existem algumas telas dos séculos XVII ao XIX, mas sem interesse. Existe, num pequeno altar improvisado, uma escultura de S. Brás, de pedra e de tamanho pequeno, do fim do século XV e um santo franciscano, de barro, pintado a preto, datado do século XVII, a que chamam S. Benedito.
Devido ao avanço do altar ficou na parte traseira da capela-mor um espaço que se pode considerar um estreito corredor a ligar com a sacristia. Encontra-se aí, suspensa, uma caixa relicário, do século XVII, em acharoado e madrepérola, que tem dentro uma caveira. Trata-se de um exemplar interessante, embora esteja em mau estado.
A sacristia imita muito uma pequena igreja, com capela-mor e brevíssima sacristia. A arquitetura é da primeira metade do século XVIII e a decoração foi completada na segunda metade.
Sacristia da igreja de Santo António dos Olivais. Interior
Os azulejos das duas quadras datam da primeira metade desse século; são do mesmo tipo dos da igreja e apresentam também cenas antoninas. A pintura do teto consiste em enrolamentos de acanto, vendo-se ao centro um brasão eclesiástico, pouco legível. São da segunda metade o arco e os espaldares de talha lavrada e dourada, com seis telas da vida antonina, possivelmente de Pascoal Parente. Há três esculturas de barro, do século XVIII, sendo a que representa Santo Antão de certo mérito. Assentam nas mísulas da abóbada doze meios corpos de santos relicários, da segunda metade do século XVIII.
A quadra que faz de capela-mor tem altar da mesma época e uma tela representando Santo António a tomar o hábito franciscano. Está assinada: PASCOAL PARENTE/O PINTO NO ANO DE/1796. A abóbada é a fresco, com motivos arquitetónicos perspetivados e deve ser do mesmo artista. Sobre a porta da sacristia encontra-se um espelho com regular moldura, também da segunda metade do século XVIII.
Anacleto, R. 2005. Santo António dos Olivais: De Ermitério a Freguesia. Conferência na cerimónia comemorativa do aniversário da criação da freguesia.
Um outro artista do ferro, que não pode deixar de merecer uma referência específica é Daniel Rodrigues que nasceu a 26 de Março de 1886 no Largo das Ameias, em Coimbra, terra para onde os seus pais, oriundos de Penacova e de Figueira de Lorvão se haviam transferido.
... Iniciou a sua aprendizagem numa oficina de serralharia civil e a sua habilidade invulgar para o desenho e manejo do ferro terão despertado o interesse de António Augusto Gonçalves, que o levou a frequentar as aulas de Desenho Ornamental e de Modelação, ministradas na Escola Industrial Brotero ... Foi também aluno da Escola Livre.
Em 1933, conjuntamente com António Maria da Conceição e com Manuel de Jesus Cardoso, integra a direção daquela ‘universidade plebeia’, fazendo-se também sócio da Associação de Socorros Mútuos dos Artistas de Coimbra.
Morreu, com 84 anos, quase à beira de cumprir mais um, a 11 ou 12 de Fevereiro de 1971.
Para além das obras já mencionadas, começou a executar, em 1928, uma artística grade para o palacete Sotto-Mayor que foi construído na Figueira da Foz. A fundição deste trabalho esteve a cargo da casa Alves Coimbra, Sucessores, desta cidade, e a cinzelagem e acabamento foram feitos na oficina do mestre serralheiro. A peça, que foi muito apreciada e mereceu rasgados elogios.
... em 1934, por iniciativa do pároco daquela freguesia (Santo António dos Olivais) fez o desenho e executou duas artística grades de ferro, no estilo gótico, destinadas às capelas laterais da escadaria da igreja . Quatro anos depois, bateu uns artísticos portões para a capela de Nossa Senhora da Conceição e do Senhor dos Passos, da mesma igreja , bem como o lustre central do templo.
Daniel Rodrigues. Anjo da Paz Eterna
De entre as obras de Daniel Rodrigues, com temática religiosa, destaca-se o Anjo da Paz Eterna, feito em 1941, feito para ser colocado no portão do cemitério da Conchada, a substituir o esqueleto que ali havia . Trata-se de uma estátua vultuosa que teve por modelo uma das suas filhas; dir-se-ia que o artista trabalhou o ferro com a mesma facilidade com que as mãos do oleiro modelam o barro. O anjo ergue as suas asas e, segurando a cruz, como que aponta o céu, num sinal de esperança e de evasão que é, afinal, o estigma de toda a arte. Neste trabalho deve salientar-se a perfeita nitidez das feições do rosto e a execução do cabelo, o subtil drapeado da túnica, apertada na cintura com um cordão, deixando aparecer, ligeiramente, os pés descalços, simbolizando a humildade que é, afinal, a deste artista e a fragilidade inerente ao ser humano.
Nas horas vagas, vai trabalhando na porta do jazigo da sua filha ... A peça revela a forte sensibilidade do artista, que retrata, através da imagem esculpida no ferro duro e frio, o real-irreal ou o tempo-não-tempo, que é a transição vida-morte, numa quase ausência de dimensões. Retratou, ao mínimo pormenor o quarto, com o seu mobiliário, a janela que já não dá para este mundo e a jovem, soerguida no seu leito, enfrentando o Anjo da morte. Em baixo, visualizam-se dois santos, a velar a caminhada eterna que Cristo e sua Mãe, insertos nos grandes medalhões que se situam a meio dos batentes, asseguram, entre lírios e rosas, uma ressurreição.
Ao longo da sua vida, Daniel Rodrigues ... executa “relevos erguidos no ferro forjado à força de buris e martelada”. É um trabalho verdadeiramente “toledano, grosso de aspecto, mas de um valor que atesta bem as possibilidades da forja e do martelo ao serviço da arte”.
... Os seus trabalhos encontram-se espalhados por todo o país, desde a Régua, a Odemira, passando por Braga, Porto, Aveiro, Figueira da Foz, Torres Novas, Beja, Lisboa, Covilhã, Belmonte, Figueiró dos Vinhos, Espinhal, Santa Comba, Mortágua ou Coimbra.
Anacleto, R. 1999. Ourives Conimbricenses do Ferro na primeira metade do século XX. Conferência nas I Jornadas da Escola do ferro de Coimbra. In publicado Munda, n.º 40, p. 25-29.
Os artistas conimbricenses do ferro iam batendo as mais diversas peças, trabalhando quase sempre isoladamente, mas expondo-as coletiva ou individualmente, tanto em mostras locais, como nacionais; contudo, quando elaboravam algum artefacto mais requintado, não se eximiam de o apresentar no Museu Machado de Castro, na Faculdade de Letras, ou na montra de algum estabelecimento da Calçada.
Uma, talvez a primeira grande apresentação pública dos seus trabalhos fora da cidade, aconteceu em 1905, na exposição que o Grémio Artístico anualmente realizava em Lisboa. Estiveram aí presentes trabalhos de Daniel Rodrigues, Lourenço Chaves de Almeida, Manuel Pedro de Jesus, António Craveiro e António Maria da Conceição.
Mas, a primeira obra coletiva de vulto surgiu quando foi necessário dar resposta aos trabalhos de ferro, destinados ao edifício da Faculdade de Letras ... em 1927 vieram a ser assentes, na fachada principal do edifício, os grandes portões de ferro forjado, obra dos artistas Manuel Pedro de Jesus, António Maria da Conceição (Rato), Daniel Rodrigues, Albertino Marques.
Albertino Marques. Portão da antiga Faculdade de Letras
Aliás, a Faculdade de Letras, pode bem dizer-se, manteve uma avença com o ferro forjado, porque, dois anos antes, em 1925, Albertino Marques tinha em mãos uma grade que se destinava àquela casa e em 1928 e 1929 executou quatro lindos e artísticos candelabros, para serem colocados na escadaria, bem como dois outros monumentais tocheiros que se destinavam ao vestíbulo. Além disso, no mesmo estilo dos candelabros, também com desenho e sob a orientação de Silva Pinto, bateu dois portões de ferro forjado para a entrada do museu da Faculdade.
E as encomendas da Faculdade de Letras não ficaram por aqui, pois em 1930, nas oficinas de Daniel Rodrigues e de Albertino Marques estavam a executar-se umas artísticas ferragens para a porta do salão nobre do edifício e umas grades em estilo pombalino para as escadas do vestíbulo da reitoria. Anos mais tarde, em 1936, aquele imóvel ia ser revestido com uma grade de ferro, cuja execução fora confiada a Albertino Marques, a Daniel Rodrigues e a Jesus Cardoso.
Uma outra obra conjunta e de grande envergadura, a envolver quase todos os artistas mondeguinos do ferro, encontra-se relacionada com o edifício do Palácio da Justiça, a erguer-se na antiga e inacabada morada dos condes do Ameal.
Na sessão de 29 de Agosto de 1929, a Câmara Municipal de Coimbra apreciou um requerimento ... pedindo licença para proceder à vedação do Palácio da Justiça, com um muro e gradeamento. Mas, quase em simultâneo com o pedido, a imprensa noticiava que tinha sido aprovada a proposta conjunta dos serralheiros Lourenço Chaves de Almeida, António Maria da Conceição, Daniel Rodrigues, José Domingos Baptista e Albertino Marques, para a confeção de 106 metros de grade, 2 portões e várias pilastras destinadas à parte exterior das traseiras do imóvel.
Palácio da Justiça. Portão pormenor
... A vedação, que se andava a assentar em Agosto de 1930, é em ferro batido e a imprensa da época considerava-a como um dos mais artísticos trabalhos “que se têm executado nos últimos tempos em Coimbra, obedecendo à arquitetura do renascimento do século XVI, tão notável e abundante na nossa região e que tem servido de escola aos artistas contemporâneos” ... no ano seguinte (1931) Albertino Marques forjava, para o Palácio da Justiça, um novo portão em estilo renascença; concomitantemente, executava, no mesmo gosto, quatro candeeiros, destinados à iluminação do claustro superior ... para o salão nobre do tribunal, Albertino Marques e Daniel Rodrigues, coadjuvados por João Machado Júnior que modelou os bustos destinados a ser, posteriormente, executados em ferro forjado, bateram um lustre .
Conhecendo conclusão em fins de Junho de 1934, foram executados nas oficinas de Daniel Rodrigues e de Albertino Marques quatro artísticos lampiões e as respetivas gárgulas de suporte.
Anacleto, R. 1999. Ourives Conimbricenses do Ferro na primeira metade do século XX. Conferência nas I Jornadas da Escola do ferro de Coimbra. In publicado Munda, n.º 40, p. 14-21
António Augusto Gonçalves entregou-se ao ressurgimento do trabalho em ferro com o mesmo fanatismo que lhe era reconhecido no respeitante às outras artes e “encontrando” em Manuel Pedro de Jesus que, por volta de 1900, já era sócio da Escola Livre, aptidões excecionais para a serralharia decorativa, incentivou-o a trabalhar nesse campo. Quando finalmente, em 1907, na Escola Industrial Brotero, começaram a funcionar as oficinas de marcenaria e talha, de serralharia, de cerâmica e de formação, Manuel Pedro foi nomeado mestre da de serralharia, lugar que, em 1925, voltava a ocupar, sendo-lhe então reconhecida uma enorme competência e a capacidade de saber aliar a um profundo conhecimento prático da sua especialidade, a teoria necessária, para que o ensino resultasse profícuo e consciente.
A indústria contemporânea do ferro forjado renasceu em Coimbra com a nova centúria, viveu na cidade, mas espalhou-se por todo o país. Homens e mulheres de bom gosto e fartos meios económicos faziam as suas encomendas aos serralheiros do burgo, que também não eram esquecidos pelos arquitetos lisboetas e não só. Adães Bermudes encomendou-lhes peças de ferro forjado para ornamentar edifícios saídos do seu lápis; Raul Lino desenhava peças para eles forjarem; Álvaro Machado louvou-os pelo trabalho executado e, em 1928, foram convidados a participar na exposição de Sevilha.
Também na exposição que Raul Lino levou a efeito nas salas do Instituto, onde apresentou, entre projetos, anteprojetos, plantas, esboços, fotografias, etc., trinta e nove peças, foi feita referência a trabalhos “de distinctos artistas de Coimbra”, concretamente a João Machado, na escultura, e a Manuel Pedro de Jesus e a Lourenço Chaves de Almeida, no ferro forjado.
Casa dos Patudos. Candelabro neogótico
... No entanto, para sobreviver, a arte do ferro não podia apenas contar com encomendas vultuosas, teria de se democratizar, como bem dizia o Dr. Quim Martins e, para tal, fazer com que se tornassem necessários os objetos mais simples e de uso corrente, manufaturados naquele metal.
A par com os grandes candelabros, com os leitos pompeianos, com os portões da Faculdade de Letras ou do Palácio da Justiça, teriam de surgir as grades das varandas, os pequenos portões de jardins, as bandeiras das portas, as tabuletas de anúncios, os gradeamentos dos muros, os portais dos jazigos, as pequenas grades de campas, os puxadores das gavetas e as dobradiças das arcas. Realmente, a arte do ferro, democratizou-se, a indústria vingou e, para além das peças que ainda hoje ornamentam tantas casas e causam orgulho aos que as fruem, Coimbra passou a ser a “cidade das grades”.
Ninguém podia imaginar que nas negras e mal apetrechadas serralharias de Coimbra, entre as labaredas rubras das suas forjas e o ruído dos malhos tirando chispas fulgurantes dos vagalhões candentes, existia, latente, à espera de a despertarem, essa força criadora que transforma o ferro duro e de aspeto indomável em peças de requintado gosto artístico.
A serralharia artística de Coimbra renasceu com António Augusto Gonçalves e com o Dr. Joaquim Martins Teixeira de Carvalho, na intimidade Mestre Gonçalves e Mestre Quim Martins, como lhe chamava a plêiade de artistas que foram seus discípulos: António Maria da Conceição (Rato), Albertino Marques, António Craveiro, Daniel Rodrigues, Lourenço Chaves de Almeida, Manuel Pedro de Jesus, José Domingues Baptista e Filhos, José Pompeu Aroso, e tantos outros.
Daniel Rodrigues. Igreja de S. António porta
Das mãos dos ‘ferreiros’ saíram obras importantes, capazes de marcar o ressurgimento daquela arte rude e maravilhosa que, em Coimbra, a partir de meados do século XIX, tanto tinha decaído, limitando-se, a bem dizer, ao fabrico de camas e de lavatórios, como se verificou na exposição, realizada em 1869.
Nesse renascimento, para além dos dois mestres citados, podem ainda referir-se os nomes de Manuel Pedro de Jesus e de João Augusto Machado, este também a tentar o ferro e o ouro que, a partir de certo momento, lhe dedicou todo o ser saber e criatividade; por isso, foram precursores da serralharia artística de Coimbra.
Anacleto, R. 1999. Ourives Conimbricenses do Ferro na primeira metade do século XX. Conferência nas I Jornadas da Escola do ferro de Coimbra. In publicado Munda, n.º 40, p. 9-13
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