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As funções do «mohtesib» cristão, do almotacé, abrangendo a inspeção do comércio de retalho, eram, todavia, mais amplas. Mas ainda assim, embora a edilidade se reproduza na almotaceria, não se pode dizer que esta fosse tanto da tradição romana como uma imitação parcial do sistema administrativo dos muçulmanos.
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… em Coimbra havia almotacés já na primeira metade do século XII, e é dali que a instituição parece ter irradiado pelos concelhos que se foram organizando no Sul do reino, onde ela se tornou mais geral do que no Norte. Não seria hipótese arriscada em demasia atribuir à influência do conde Sesnando e dos seus imediatos sucessores a introdução deste cargo; porque, habituado ao sistema de administração muçulmana, o vizir moçárabe havia forçosamente de aplicar à prática do governo as ideias que bebera na corte de Ibn Abbed. Convertida em corte de D. Henrique, logo no princípio do século XII, Coimbra exerceu naturalmente larga influência nas povoações que gradualmente se iam anexando na Estremadura à sociedade cristã. É assim que nos forais relativos a esta província, e sobretudo nos análogos ao de Coimbra, se pressupõe a existência dos almotacés.
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As posturas municipais de Coimbra de 1145 são o primeiro monumento por nós conhecido donde se pode deduzir com alguma individuação a índole da autoridade do almotacé, cujo cargo naquela época ainda não parece que fosse eletivo. Por essas posturas incumbia-lhe o regular o preço de venda do pescado que excedesse em valor a um soldo, o dar o padrão para se fabricarem as telhas e o aferir as medidas de capacidade. É óbvio que neste diploma, destinado a corrigir abusos que se haviam introduzido, não se mencionam todas as funções da almotaceria, mas só aquelas que nessa conjuntura era necessário tomar providências. Todavia isto basta para vermos que o objeto principal era a polícia do comércio interno do município e o impedir as falsificações na grosseira indústria fabril daquela época … A disposição geral dos forais deste tipo é que a almotaceria fique pertencendo ao concelho e que seja o almotacé eleito pelo povo de acordo com o alcaide.
Herculano, A.1987. História de Portugal. Vol. VII. Lisboa, Circulo de Leitores, pg. 202 a 204
Coimbra, como vimos, era ainda no meado do século XII um concelho imperfeito, mas antes disso, nos fins do XI, nem essa organização tinha. Sesnando, o célebre conde moçárabe, fora revestido de todos os poderes administrativos e judiciais por Fernando Magno, e conservado no exercício da sua ilimitada autoridade enquanto vivera. O mesmo sistema parece ter predominado no regimento de Coimbra até à época do conde Henrique, em que, segundo todas as probabilidades, uma revolta popular produziu instituições mais livres. Meio século, porém, em que a jurisdição civil andara confundida com o poder militar e administrativo trouxe naturalmente o facto de se dar na linguagem vulgar aos magistrados jurisdicionais distintos, que a organização municipal criara, umas das qualificações usadas até aí pelos oficiais da coroa, em cujas mãos estivera acumulada toda a jurisdição. Não só Sesnando mas também os seus sucessores, e, até os ministros subalternos, haviam adotado a qualificação de «alvazires», e daqui proveio, em nossa opinião, o dar-se o mesmo nome aos juízes burgueses nas diversas povoações da Estremadura que, em seguida a Coimbra, se foram submetendo ao jugo de Afonso I.
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Achamos igualmente em Coimbra o alcaide deliberando com os magistrados municipais e com o concelho, reunidos na Igreja de S. Pedro, sobre objetos de polícia e administração interna, embora esses objetos respeitem também à coroa:
«Nós N., «alcaide», N. e N., alvazis e o concelho de Coimbra, chamados e ajuntados pelo nosso pregoeiro, de ciência certa e de espontânea vontade, consentimos e concedemos que el-rei nosso senhor faça feira e tenha açougues (mercado permanente de vitualhas), fangas (mercado de farinhas) e alfandegas com sua estalagem no sítio em que lhe parecer na almedina, sendo em chão seu, mandando vender tudo pela maneira que aqui vai determinado.»
Segue-se um extenso e curioso regulamento sobre a forma de polícia do pequeno tráfico.
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Nuns agravos do concelho de Coimbra, oferecidos, segundo cremos, nas cortes de 1254, diz-se:
«Quanto às queixas relativas aos alvazis que el-rei (D. Afonso III) pretende nomear só por si, responde ele que o concelho eleja os seus alvazis, como era de uso em tempo de seu pai e de seu avô.»
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No mesmo ano em que Coimbra foi elevada à categoria de concelho perfeito (1179) suscitou-se contenda sobre a posse de certos caneiros entre uns pescadores e o Mosteiro de São Jorge. Esta causa foi devolvida pela cúria régia aos novos magistrados do concelho. A sua competência era reconhecida por este ato, não obstante ser um dos litigantes uma corporação eclesiástica.
Herculano, A.1987. História de Portugal. Vol. VII. Lisboa, Circulo de Leitores, pg. 114, 122, 152, 177
Coimbra que, desde os primeiros dias da independência de Portugal até quase o fim do período cuja história temos escrito, foi a capital do reino, tinha sido organizada e melhor povoada de gente cristã pelo conde Sesnando sem instituições municipais, ou apenas com as fórmulas duvidosas dos concelhos rudimentares. Conquistada a povoação, Fernando Magno a entregara ao célebre vizir moçárabe, autorizando-o para repartir a propriedade territorial, pôr e tirar colonos, julgar as contendas e exercer todos os atos administrativos conforme a sua vontade. Este parece, de feito, ter sido o sistema mais útil e natural no primeiro momento da conquista, em que eram necessárias a energia e a unidade de mando para ordenar o estado tumultuário de uma grande cidade donde se expulsava a população sarracena, que devia ser substituída por outra. Não falaremos dos regulamentos estabelecidos pelo conde, e que propriamente pertencem à época leonesa. Com eles Coimbra se tornara importante e populosa, e o sentimento de força trouxera aí a impaciência da opressão. Os vestígios de revoltas contra os oficiais do conde Henrique e contra ele próprio, nos primeiros anos do século XII, são palpáveis no foral concedido pelo genro de Afonso VI em 1111 aos moradores da capital. Esta carta de comunidade, posto que substituída meio século depois por outra mais ampla, não deixa de oferecer bastante interesse como tipo dos forais concedidos a várias vilas, sobretudo da alta Estremadura. Por ela Coimbra se constituiu um concelho imperfeito, desses a que é aplicável a quinta fórmula. A característica desta, a existência simultânea de cavaleiros e peões com o sistema incompleto de magistraturas, é evidente no foral. Eis algumas passagens que o provam e que, ao mesmo tempo, nos pintam a situação relativa destas duas classes:
Se algum cavaleiro comprar vinha de tributário seja essa vinha exempta («libera»). Se casar com viúva de tributário, qualquer herdade que ela traga seja igualmente exempta.
O tributário, se tiver posses para ser «cavaleiro», seja-o.
Todos os «jugadeiros» que os cavaleiros puderem ter nas herdades, tanto em Coimbra como por outras vilas e castelos, sirvam-nos a eles livremente, e não sejam acoimados por homicídio ou rapto.
Se a algum cavaleiro morrer o cavalo, não tendo com que compre outro, dar-lho-emos nós e, se lhe não dermos, goze das imunidades da sua classe («stet honoratus») até que possa comprá-lo.
O «infanção» não tenha em Coimbra casa ou vinhas, salvo querendo fazer vizinhança e «servir» como qualquer de vós outros.
Os «peões» deem de ração de cereais que costumavam dar só metade, etc.
Aqui as duas classes estão bem distintas. A primeira estriba-se na propriedade, unicamente nesta. O nobre de raça («infanzon»), se quiser possuir bens em Coimbra, há-de descer ao nível dos cavaleiros vilãos, e os peões favorecidos da fortuna elevar-se-ão à mesma categoria, como, nos últimos tempos do Império Romano, os possessores eram, só também por esse facto, incorporados na ordem dos decuriões. Aos colonos ou caseiros dos cavaleiros vilãos aplica-se em especial a designação de jugadeiros, e aos colonos imediatamente dependentes da coroa a de tributários ou peões.
Vejamos agora os vestígios que o foral de Coimbra nus subministra pelo que respeita às magistraturas:
O saião não vá pôr selo na casa de ninguém. Se qualquer individuo cometer delito, venha ao tribunal («concilium») e seja devidamente julgado.
Os vossos «juiz» e «alcaide» sejam naturais de Coimbra e postos nesses lugares sem ser por peita.
Não deis portagem ou alcavala, nem de comer, aos guardas da cidade ou das portas.
Os magistrados de Coimbra eram, pois, o alcaide do castelo, entidade mista, ao mesmo tempo municipal e régia, e um juiz, ambos nomeados pelo poder supremo. Os oficiais eram o saião, espécie de agente público, provavelmente no distrito inteiro, e os guardas da cidade alheios ao município, cujos membros, aliás, ficavam exemptos dos direitos de barreira ou portagens.
Herculano, A.1987. História de Portugal. Vol. VII. Lisboa, Circulo de Leitores, pg. 91 a 93
Sesnando … tinha sido introduzido na corte de Sevilha no tempo de Ibn Abbad e, pelos seus talentos e importantes serviços feitos ao príncipe sarraceno, chegara a ocupar o lugar de vizir no divã, esto é, ministro ou membro do conselho supremo do amir, que o distinguia particularmente entre os seus conselheiros. Sesnando tornou-se temido nas guerras com os inimigos de Ibn Abbad; porque nas empresas que dirigia obtinha sempre prósperos sucessos. O motivo por que abandonou o amir de Sevilha para entrar ao serviço de Fernando Magno ignora-se; mas o seu procedimento posterior persuade que alguma ofensa recebida dos sarracenos a isso o instigara … Porventura entre Sesnando e os muçulmanos limítrofes alguns recontros haveria, segundo parece indicá-lo o foral dado a Coimbra por Afonso VI … Sesnando serviu lealmente até o seu último dia a causa da monarquia cristã.
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Um diploma exarado no mesmo dia em que, segundo a Crónica dos Godos, Santarém caía em poder dos muçulmanos alguma luz derrama para se descortinarem as causas que tolhiam ao conde o socorrer as suas fronteiras meridionais. É ele o foral de Coimbra, Sesnando, atraindo para ali a população cristã, não organizara o município, contentando-se os novos habitadores com lhes ser assegurado por um título geral a posse hereditária das propriedades rústicas ou urbanas que se lhes distribuíam.
Depois, por quase meio século, Coimbra fora a capital de um distrito, e ainda no tempo de Henrique se podia considerar como a principal cidade do condado ou província de Portugal; mas na tradição, que os documentos contemporâneos parece confirmarem, nos assegura que o genro de Afonso VI estabelecera em Guimarães a sua corte, se tal se pode dizer de uma residência incerta e quase anualmente interrompida. Coimbra, posto que, como vimos, fosse frequentada pelo conde, o qual por vezes fez aí larga assistência, tinha, como todos os lugares principais, governadores próprios sujeitos a ele, segundo sistema hierárquico da monarquia leonesa.
Herculano, A.1987. História de Portugal. Vol. II. Lisboa, Circulo de Leitores, pg.10, 31
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