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Sexta e última entrada dedicada à divulgação do livro de historiador brasileiro Milton Pedro Dias Pacheco, Do aqueduto, das Fontes e das Pontes.
Estabelecendo a vital ligação entre os dois lados do rio Mondego, a antiga ponte real foi durante séculos a principal entrada em Coimbra, integrando a via terrestre que ligava Lisboa ao Porto – não no trajeto conhecido através das ruas Ferreira Borges e Visconde da Luz –, mas sim através da íngreme Couraça de Lisboa.
Alguns autores defendem a tradição de que as primeiras pontes construídas sobre o Mondego tiveram, tal como no caso do aqueduto citadino, uma origem romana.
Fig. 4. Ponte da cidade de Coimbra (pormenor) | Civitates Orbis Terrarum, vol. V, 1598, pg. 235
Depositada no Museu Nacional Machado de Castro
Ponte Manuelina e vista de Santa Clara. 1860. Acervo RA
Entretanto, iniciada a formação do Reino de Portugal, consta que D. Afonso Henriques … mandara reconstruir a ponte no ano de 1132, seguida dos arranjos planeados por D. Sancho I, em 1210, e pelos seus sucessores ao longo de toda a Baixa Idade Média.
Estas sucessivas reconstruções ficar-se-iam a dever, sobretudo, devido aos danos provocados pela força das correntes, como se verifica numa carta enviada por D. João II ao conselho da cidade: “a ponte dessa cidade está muito danificada das cheias passadas e em mui grande perigo”
Com efeito, os autores mais fidedignos apontam para uma intervenção sabiamente estruturada durante o reinado de D. Manuel I, nos alvores do século XVI. Segundo o que as fontes documentais apontam, o monarca … ordenara aos mestres Boytac e Mateus, em Setembro de 1510, de promoverem os estudos necessários para o “corregimento da ponte” campanha seria efetivamente concluída nos três anos seguintes, pois, em 1513, a ponte estava aberta ao tráfego.
A estrutura ficava assim a dispor de vinte e quatro arcos, executados em pedra, provavelmente em calcário dolomítico da cidade, inclusive as guardas laterais, que na seção correspondente ao oitavo arco eram encimadas em cada um dos flancos pelas esferas armilares do monarca reinante. No extremo sul, já próximo da margem de Santa Clara, parte do troço da ponte fora alargado, com acessos a jusante e a montante, como se vê ainda nalgumas das gravuras antigas dedicadas a Coimbra.
A extremidade norte era rematada por um torreão-peagem, quadrangular, destinado à aplicação das taxas e impostos sobre quem entrava na cidade. No frontispício principal, sobre o arco de entrada, fora colocada uma lápide brasonada ladeada das esferas armilares, retirada para o Museu do Instituto de Coimbra e hoje depositada no Museu Nacional de Machado de Castro … sobre o referido padrão estaria a representação escultórica com a Virgem Maria, segurando Cristo Menino, que se encontra igualmente no principal museu da cidade, provavelmente ambos da autoria de Diogo Pires o Moço.
…. D. Filipe I de Portugal determinava, por carta régia, o lançamento da finta para se proceder à reconstrução da dita ponte e das margens envolventes onde aquela assentava. Muito provavelmente, as obras não teriam sido logo executadas, pois na correspondência epistolar trocada com o arcebispo de Braga, em 1586, o monarca salientara os estragos provocados pelos “grandes invernos do anno passado”.
A ponte quinhentista, reformada pela última vez naquela centúria pelo arquiteto régio Fillipo Terzi, teria outras obras de consolidação até ser substituída por uma nova em Maio de 1875, não devido ao assoreamento do leito do rio, mas sim às necessidades de permitir, com maior segurança, a passagem do trânsito rodoviário.
Setenta e nove anos depois, a estrutura de ferro assente em pilares de alvenaria ...
Ponte de ferro (finais dos anos 30). Acervo RA
... deu lugar à atual ponte, uma estrutura de betão armado, dotada de tabuleiro plano e assente em cinco pilares pendulares, com talha-mares elípticos … Erguida em local próximo da anterior, a nova ponte, desenhada pelo arquiteto Peres Fernandes.
Ponte de Betão, em construção
Pontes de Ferro e de Betão
Ponte de Santa Clara. Inaugurada em 1954
Curiosamente, em 1950, durante as sondagens geológicas realizadas no seguimento dos estudos de engenharia, seriam encontrados, a 14 metros de profundidade, nas proximidades da margem de Santa Clara, vestígios de uma escada executada em cantaria. Pertenceriam estes achados arqueológicos à ponte real manuelina como sugeriram os engenheiros responsáveis pela última obra?
Pacheco, M. P.D. Do aqueduto, das Fontes e das Pontes: a Arquitetura da Água na Coimbra de Quinhentos. In: História Revista. Revista da Faculdade de História e do Programa de Pós-graduação em História, v. 18, n. 2, p. 217-245, jul. / dez. 2013. Goiânia (Br.). Acedido em:
Voltamos a um texto do académico brasileiro Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira sobre o Mosteiro de Santa Cruz, este dedicado ao estudo de um dos documentos fundamentais para conhecer a história daquele cenóbio.
Das mãos de um cronista agostiniano, orientado pelos interesses institucionais do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, a segunda metade do século XII, início do XIII, testemunhou, por meio de textos como a Chronica Gottorvm, a estruturação do discurso institucional de exaltação da imagem de Afonso Henriques, rei de Portugal.
Materializando o imaginário na literatura, o autor da cronica associou ao infante atributos tanto militares quanto espirituais, configurando assim uma masculinidade régia idealizada.
Afonso Henriques como rei, Imagem acedida em: https://www.portugalvisitor.com/famous-portuguese/afonso-henriques
A mais antiga representação conhecida de Afonso Henriques, no Museu do Carmo. Imagem acedida em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_Henriques#/media/Ficheiro:Lisbonne_Mus%C3%A9e_du_Carmo_Buste_de_Afonso_Henriques.jpg
Diversos sinais de Afonso Henriques. Imagem acedida em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_Henriques#/media/Ficheiro:AfonsoHenriquesSelo.jpg
Seguindo uma ordem cronológica, a obra narra como teria se dado o processo de expansão territorial portucalense promovido por Afonso Henriques.
Dividido em duas partes, o texto apresenta, na primeira seção, uma estrutura linhagista composta por autoridades locais que teriam precedido o “domínio” afonsino na região do Condado. Na segunda parte, o enfoque está nos feitos militares do infante, apresentando-o como um instrumento de Deus no plano terreno.
Representação da Batalha de Ourique na Genealogia dos Reis de Portugal. Imagem acedida em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_Henriques#/media/Ficheiro:Battle-of-Ourique.png
"Tomada de Santarém", por Roque Gameiro (Quadros da História de Portugal, 1917). Imagem acedida em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_Henriques#/media/Ficheiro:Tomada_de_Santar%C3%A9m_(Roque_Gameiro,_Quadros_da_Hist%C3%B3ria_de_Portugal,_1917).png
Segundo a historiografia, a construção imagética que se estabelece sobre o infante tem pelo menos dois objetivos: assentar uma memória de ações notáveis sobre a heroica figura fundacional do reino e estimular militarmente os portucalenses, sob a liderança de Sancho I (1154-1211), filho e sucessor de Afonso Henriques, a combater o avanço muçulmano.
Mosteiro de Santa Cruz. Túmulo de D. Sancho I
…. Durante o exercício dos dois primeiros priorados, com D. Teotónio (1132-1152/62) e D. João Teotónio (1162-1181), a Canónica agostiniana institucionalizou-se, postulando normas de conduta aos cónegos regulares e associados, evidentes nas disposições capitulares de 1162 e reproduzidas na Vita Theotonii, e organizando o patrimônio crúzio e os direitos adquiridos, expressos tanto na Vita Tellonis quanto em partes específicas do Livro Santo e do Livro de D. João Teotónio.
…. O vínculo com a autoridade real, pois o mosteiro funcionava como chancelaria e abrigo do tesouro régio, e a consequente preponderância gozada no seio social, teriam levado a Casa regrante a um aumento de influência no Condado. A figura régia foi pedra angular no processo, uma vez que garantia múltiplos privilégios sobre os domínios da comunidade.
….Na segunda metade do século XII, a Casa crúzia se viu afetada por, pelo menos, dois fenómenos principais. Por um lado, pelo enfraquecimento militar sofrido pela autoridade régia após os eventos de Badajoz, em 1169. O acidente de Badajoz teria a um só tempo dificultado o ímpeto real como meio de ampliação da influência Regular no reino, e enfraquecera a linha de defesa portucalense frente às ofensivas muçulmanas, colocando em risco os espólios agostinianos na fronteira. Por outro, pela desarticulação política do círculo afonsino que orientava as ações reais no Condado, uma vez que alguns dos principais agentes teriam morrido no período, tirando do cenário político, sem que houvesse substituição à altura, articuladores dos interesses portucalenses no Ocidente Ibérico. Neste sentido, destacam-se as mortes de D. Teotónio, Superior de Santa Cruz de Coimbra e conselheiro do infante, em 1162; D. Gonçalo Mendes de Sousa, seu mordomo-mor, em 1167; chanceler Alberto, por volta de 1169, e D. João Peculiar, arcebispo de Braga e uma das figuras centrais da corte, em 1175.
Apesar de Sancho I, filho e sucessor de Afonso I, ter buscado reorganizar o reino e seu exército, juntamente com os que ainda se encontravam a assistir à corte, é razoável que a desagregação do círculo afonsino que herdara tenha gerado um forte impacto na coesão política do Condado.
…. Nesse panorama, já de relevante insegurança lançada sobre o seu patrimônio, os crúzios perceberam que, para defendê-lo, era necessário fortalecer novamente o círculo régio. Assim, estando integrado a um corpo real forte e consolidado, o património da comunidade estaria menos sujeito a alienações por parte de terceiros. A literatura foi um dos caminhos escolhido.
O discurso cronístico crúzio, consumado na Chronica Gottorvm, para além dos interesses já evidenciados pela historiografia, teria por fim enfraquecer os protestos levados ao Papado por outras instâncias eclesiásticas e mitigar as disputas de poder com autoridades locais. Ao construir uma imagem heroica de Afonso I, evidenciando seus feitos militares e a devida anuência divina às suas ações, o Mosteiro evocava a corte, governada agora por Sancho I, a reestabelecer a integração entre seus membros, promover a reorganização de seu exército e restaurar o exercício de poder no Condado.
Oliveira, J.R.S. O discurso cronístico do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra no século XII: uma análise da Chronica Gottorvm. 2019. In: Revista do CFCH – Universidade Federal do Rio de Janeiro.Pg. 1 a 5. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
No texto que ora transcrevemos sobre a investigação de Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira, continua a debruçar-se sobre as circunstâncias do período inicial do Mosteiro de Santa Cruz.
Durante o priorado de D. Teotónio, concessões de naturezas variadas teriam sido feitas por parte do Infante ao Mosteiro, aumentando-lhe assim tanto o património particular do qual dispôs nesta primeira etapa, quanto às zonas de influência sobre o Condado Portucalense: “[...] o rei lhe concedeu muitos dos bens que aí tinha, tanto móveis como imóveis, enriqueceu o local, confirmou todos os bens do mosteiro, tanto de dentro como de fora, e ao confirmá-los coutou-os”.
S.Teotónio, monumento em Valença. Imagem acedida em https://www.bing.com/images/search?view=detailV2&ccid=73TXSsPF&id=...
S. Teotónio, monumento em Viseu. Imagem acedida em https://www.bing.com/images/search?view=detailV2&ccid=73TXSsPF&id=...
…. Dentre as concessões feitas por Afonso Henriques ao Mosteiro regrante, destacamos os coutos que, nos primeiros anos da canónica, teriam composto um conjunto patrimonial significativo. Nesse sentido, tornamos evidente, por exemplo, o couto de São Romão de Seia, de dezembro de 1138; o couto feito a um barco de pesca, de março de 1139; o couto da vila de Gouveia, de novembro de 1140; o couto de parte das vilas de Quiaios e Emide, além de toda a de Lavos, de junho de 1143; o couto de todos os homens e herdades de Santa Cruz, de julho de 1146.
…. O mosteiro de Santa Cruz, ao demonstrar, em certa medida, alinhamento aos interesses defendidos pela Sé romana, obtendo dela o devido reconhecimento e se colocando em direta subordinação, teria exercido no Ocidente peninsular um papel concentrador e difusor das orientações provenientes de Roma. Como agente disseminador dos interesses românicos, trazia para a lógica de organização social o próprio discurso cristão, e para o corpo eclesial, o enquadramento esperado e o referencial de conduta moral estabelecido na base apostólica. Com isso, teria garantido para si o beneplácito da Sé de Pedro para o desenvolvimento de suas atividades, tendo assegurado tanto privilégios quanto a expressiva proteção papal.
O facto de uma rede crescente de paróquias serem fundadas ou ficarem sob a orientação direta do mosteiro de Santa Cruz, que se afirmava isento do poder episcopal, protegido e imediatamente dependente da Sé Apostólica iria contribuir para consolidar o seu próprio processo de isenção [...]. Era igualmente um poderoso meio de a instituição regrante mais se afirmar junto da autoridade episcopal, através do exercício da sua própria jurisdição, e na sociedade em que se situava.
A título de exemplo dos privilégios recebidos, destacamos: a bula «Ad hoc universalis», de abril de 1144, na qual Lúcio II teria confirmado os bens e direitos recebidos pelo Mosteiro, dentre eles os sobre as igrejas de São Romão de Seia, São João de Santa Cruz, Quiaios, Mira, Travanca, etc., isentando-os de dízimo, sem com isso alienar os direitos da diocese.
Papa, Lucio II. Imagem acedida em: https://www.google.pt/search?q=lucio+ii+papa...
Todos repetidos e confirmados por Eugénio III por meio da bula «Apostolica Sedis», de setembro de 1148. O cardeal Jacinto, com a bula «Oficii nostri», de novembro de 1154, além de confirmar as concessões anteriores, teria acrescentado outras novas qual seja, a livre eleição do superior da comunidade regrante e o direito de sepultura. Já Adriano IV, por meio da bula Ad hoc universalis, de agosto de 1157, para além de manter as confirmações já feitas, também a exerce às igrejas do castelo de Leiria e de Taveiro, entre outros.
Um dos pontos que nos chama a atenção nos privilégios eclesiásticos é o da necessidade de uma confirmação contínua das concessões reais ao Mosteiro. Ou seja, mesmo já tendo obtido o devido reconhecimento por parte da Igreja romana, esta consideração parece não garantir um inquestionado direito aos Regrantes sem que passasse por nova confirmação. Era também uma forma de manter, por parte do papado, um controle dos bens adquiridos pelo Mosteiro em um determinado espaço de tempo.
Oliveira, J.R.S.C. A Cidade de Coimbra e o Mosteiro de Santa Cruz no Século XII. Reflexões sobre o Priorado de S. Teotónio. 2017. In: Acedido em:
Terceira de cinco entradas sobre o trabalho do Doutor Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira que vimos divulgando.
É interessante perceber o silêncio que a Vita Sancti Theotonii faz desse período de tensões. De acordo com a obra, omitindo qualquer conflito, menciona que o corpo fundacional do Mosteiro estaria firmado na autoridade de Afonso Henriques e do «uenerabilis» bispo de Coimbra Bernardo. Partindo desta divergência entre os escritos, é razoável trabalhar com a hipótese de a Vita teotoniana, produzida em data posterior à Vita Tellonis, em 1162-63, intentar esvaziar do discurso narrativo possíveis tensões existentes na fase inicial da canónica crúzia, dado a proximidade existente entre ambas no momento de produção da obra. Em data anterior, 1154-55, em virtude do recente período de atrito verificado, e/ou por possíveis interesses que fogem ao nosso entendimento agora, Pedro Alfarde teria achado por bem mencioná-los em sua obra.
Igreja de Santa Cruz, interior na segunda metade do séc. XIX, Acervo RA
A ida de D. Telo e seus associados imediatos ao papado para solicitar a isenção teria, no raciocínio de Erdmann, também trazido frutos ao bispado coimbrão, tendo o Pontífice concedido a proteção da Santa Sé à comunidade, face os interesses compostelanos. Em troca, segundo o autor, o Vigário teria pedido ao Infante uma proteção especial em favor de Santa Cruz de Coimbra.
…. Nos primeiros anos da Canónica agostiniana, a busca por material escrito que servisse às necessidades religiosas do Mosteiro também teria sido uma das iniciativas tomadas pelo corpo fundador. “Telo e os seus companheiros, ao reunirem-se em comunidade, tinham necessariamente de prover à constituição de uma biblioteca que permitisse responder às obrigações da vida regrante [...]”. O mosteiro franco de São Rufo de Avinhão, neste particular, teria sido um dos contribuintes iniciais para a constituição do património escrito da canónica agostiniana. Dele teria vindo, para além da própria inspiração da vida regular, o «Ordinário» (Liber Ordinis, de Letberto), o «Capitulário», «Antifonário», comentários bíblicos de Agostinho de Hipona (sobre o Génesis, João, Mateus e Lucas) e Ambrósio (o Exameron e o De Penitentia), a «Regula Pastoralis de Gregório Magno e um comentário de Beda, o Venerável, sobre Lucas.
Igreja de São Rufo de Avinhão. Na atualidade. Imagem acedida em: https://pt.wikipedia.org/w/index.phpsearch=igreja+de+S%C3%A3o+Rufo+de+Avinh%C3%A3o&title=Especial:Pesquisar&ns0=1&quickView=Arquidiocese+de+Avinh%C3%A3o
Desta forma, ao longo de três etapas de contactos com o mosteiro que lhes servia de modelo, em 1135, 1136-1137 e 1139-1140, Santa Cruz adquiria os textos das regras, constituições, diretórios litúrgicos e doutrinas patrísticas que lhe permitiam completar, internamente, a sua estruturação e conduzir a sua orientação doutrinal. À fundação do «armarium», acrescentava-se este importante núcleo do que mais tarde haveria de ser a sua livraria.
Com isso, ao que tudo indica, a primeira década de vida do Mosteiro seria marcada pela aquisição de um patrimônio teológico-literário que, mesmo ainda incipiente, foi suficiente para o desenvolvimento das atividades iniciais da Casa regrante. Este, progressivamente, teria aumentado durante o priorado de D. Teotónio (1132-1162), fruto também da própria hipertrofia sofrida pela comunidade crúzia no período, que teria expandido sua órbita de influência e, consequentemente, a capacidade de aquisição e a necessidade de produção de novas obras.
Para esse crescimento exponencial, teria concorrido uma série de fatores, dentre os quais damos mais destaque aos possíveis interesses nutridos e consequente intervenção da monarquia Portucalense na dinâmica dos Regrantes agostinianos, das famílias nobiliárquicas de Coimbra e da própria Sé Apostólica.
No que diz respeito a Afonso Henriques, a transferência feita em 1131 da sede administrativa da cidade de Guimarães para Coimbra, efetuada no mesmo ano de fundação do mosteiro de Santa Cruz, dão indícios de uma iniciativa não desinteressada.
Afonso Henriques. Imagem acedida em https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_Henriques
…. Afonso Henriques teria encontrado na cidade de Coimbra o ambiente favorável para poder exercer suas ações com mais liberdade face à condição sob a qual se encontrava em Guimarães. A possibilidade de desempenhar maior capacidade de decisão política, entre outros, surgia como atrativo, frente ao que, sob as limitações da própria lógica de organização local, encontrara no entre Minho e Douro. No Mondego, também, se colocaria em posição geográfica mais estratégica para melhor empreender seus avanços militares e veria reconhecido, pela aristocracia regional, seu papel de proeminência.
…. Em linhas gerais, a Casa crúzia viria em auxílio, como agente legitimador, através do discurso cristão, às investidas militares do monarca portucalense contra os “inimigos” da Sé Apostólica. Assim, ao passo que o exército afonsino avançava sobre seus “oponentes”, o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra garantia - discursivamente - o apoio divino nas batalhas.
…. É este o intento que a literatura coimbrã da segunda metade do século XII parece querer transmitir. De acordo com a «Chronica Gottorvm», por exemplo, escrita no final do século XII,
Oliveira, J.R.S.C. A Cidade de Coimbra e o Mosteiro de Santa Cruz no Século XII. Reflexões sobre o Priorado de S. Teotónio. 2017. In: Acedido em:
Prosseguimos na divulgação do estudo do académico brasileiro Doutor Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira, sobre a problemática da construção do Mosteiro de Santa Cruz e do papel fundamental de S. Teotónio no seu desenvolvimento inicial.
A partir do que a documentação nos permite perceber e do que a historiografia frequentemente destaca, a primeira década de vida da canónica crúzia foi marcada pelas transformações que teriam estabelecido os alicerces da experiência regrante no Condado.
Pensamos ter sido, esta, tanto uma fase em que o Mosteiro buscaria dissociar-se em relação ao bispado local, quanto de estruturação da base sobre a qual a conduta moral dos cónegos se assentaria, sendo para ela buscados os mais diversos referenciais.
Em relação ao bispado coimbrão, salienta Morujão que «Almost immediately a tense relationship developed between the monastery and the see, since the monastery had been founded by clerymen who had abandoned the cathedral chapter to join the new institution and consequently the Crucians tried to evade the episcopal authority».
A necessidade de desvinculação em relação ao bispado teria como raiz, segundo a «Vita Tellonis», a oposição levantada pela diocese, que exigia a confeção em seu favor de um testamento tanto do local quanto do Mosteiro, isto é, que o lançasse como património diocesano. Com isso, vendo a possibilidade de ter sua liberdade cerceada, mantendo-se sob a tutela do bispo local, D. Telo e seus companheiros teriam recorrido à Santa Sé.
Nessa iniciativa, teriam eles buscado o reconhecimento fundacional da Comunidade, bem como a devida proteção face o episcopado coimbrão, gerando assim, de Inocêncio II, em 1135, três bulas: a Desiderium quod, que garantia o amparo da Sé Apostólica ao Mosteiro; a Quod personam e a In Beati Petri cathedra, as quais recomendavam tanto a Afonso Henriques quanto ao bispo de Coimbra os cónegos crúzios. Segundo a Vita Tellonis faz notar, seria a partir de tais disposições que o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra teria conquistado a isenção em relação ao bispo da cidade, estando, assim, diretamente subordinado à Sé romana.
Inocêncio II, papa. Detalhe de um mosaico na basílica de Santa Maria em Trastevere de Roma (c. séc. XII). Imagem acedida em https://es.wikipedia.org/wiki/Inocencio_II
A controvérsia entre D. Bernardo, bispo de Coimbra, e a Comunidade de cónegos regrantes de Santo Agostinho, para além das questões antes citadas, teria se estendido também sobre outros assuntos. De acordo com o que narra Pedro Alfarde sobre o supracitado bispo, ele vendia bens eclesiásticos às escondidas, motivo pelo qual os Regrantes teriam se recusado a serem ordenados por ele. Tal desconfiança, prossegue o autor, teria levado os cónegos a solicitarem a presença do arcebispo de Braga, D. João Peculiar (1138 – 1175), para promover a ordenação. Como resultado, D. Bernardo, [...] tomado de fúria insana, contra as determinações em contrário, procurava impedir os fiéis [sic] que podia de nos entregarem [ao mosteiro de Santa Cruz de Coimbra] benefícios, quer nas coisas eclesiásticas que acaso possuíssem quer no direito civil. Por isso, até algumas das nossas igrejas reteve para si durante bastante tempo [...].
Livro Santo começado no ano de 1155 que contem entre outras a transcrição da Vita Tellonis. Acedido em https://digitarq.arquivos.pt/details?id=4614123
…. Em linhas gerais, a contenda mais incisiva envolvendo a diocese coimbrã e o mosteiro de Santa Cruz teria durado, pelo menos, até que dois bispos, questionados pelas suas condutas, deixassem de ocupar seus cargos: o já citado D. Bernardo, que morrera em 1146, e seu sucessor, D. João Anaia (1147-1155), cuja demissão fora forçada em 1155.
Mosteiro de S. Cruz, claustro do Silêncio, tumulo de D. Miguel Pais Salomão. Imagem acedida em: https://en.wikipedia.org/wiki/Miguel_Pais_Salom%C3%A3o#/media/File:Tomb_-_Cloisters_-_Mosteiro_de_Santa_Cruz_-_Coimbra,_Portugal_-_DSC09710.jpg
Após este período, o bispado teria ficado vacante por sete anos até que um regrante crúzio, D. Miguel Pais Salomão (1162-1176), o ocupasse.
Oliveira, J.R.S.C. A Cidade de Coimbra e o Mosteiro de Santa Cruz no Século XII. Reflexões sobre o Priorado de S. Teotónio. 2017. In: Acedido em: https://www.academia.edu/38218646/A_CIDADE_DE_COIMBRA_E_O_MOSTEIRO_DE_SANTA ...
Esta e as subsequentes entradas, têm a curiosidade de serem extraídas de um estudo do historiador brasileiro, Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira, Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, no qual se debruça sobre a problemática da construção do Mosteiro de Santa Cruz e do papel fundamental de S. Teotónio na concretização desse projeto de tanta relevância não só para a Cidade, mas também para a consolidação do País que somos.
De acordo com a Vita [Vita Tellonis, de Pedro Alfardo] no ano de 1131 da Incarnação do Senhor [...], o arcediago Telo, agregando a si uma falange de homens de primeiro plano em número igual ao dos doze Apóstolos, começou a lançar os fundamentos do mosteiro de Santa Cruz nos arrabaldes de Coimbra.
A comunidade foi estabelecida extramuros da cidade, no lugar conhecido como “Banhos Régios”, próxima ao que fora a judiaria.
Mosteiro de Santa Cruz,. Hoefnagel. 1598. Pormenor
Conforme a narrativa, D. Telo, após alguma procura, teria conseguido o local de fundação a partir de uma troca feita por Afonso Henriques, em troca de uma sela de propriedade do clérigo.
Chegou, pois, o tempo de Deus decidir dar cumprimento ao voto formulado pelo presbítero. Comprara ele [D. Telo], casualmente, mas não sem intervenção de Deus, em Montpellier, uma sela, tal é o termo em língua vulgar, que era muito bem trabalhada e era mais que excelente para montar a cavalo. Certo dia, em que o arcediago seguia montado numa mula pela porta de Coimbra e caminhava como habitualmente pela rua Régia aperceberam-se dela os cortesãos que notaram o seu bom recorte. Alguém de entre os conselheiros deteve a atenção na sua elegância e propôs ao Infante que pedisse ao arcediago para lhe dar. Sem demora, satisfaz ele o pedido, sugerindo em troca a oferta dos Banhos Régios ao fundo da Judiaria.
…. [Na] Carta de couto a Paio Guterres (cabalo, praetio e vaso de planta), no fragmento em que faz a doação dos Banhos Régios, menção alguma é feita à sela.
…. a carência documental da qual dispomos e/ou de estudos que nos permita desenvolver melhor essa possibilidade, encerram em seu posicionamento a nossa opinião.
…. Tendo sido preterido na sucessão episcopal, D. Telo, algum tempo depois, teria encontrado ambiente favorável às suas pretensões após receber a já referida doação, por parte de Afonso Henriques, da área denominada de “Banhos Régios”. Ele também, segundo a obra, comprou do bispado um horto nas proximidades, local este que dispunha de uma fonte.
Vale salientar que o intento fundador de D. Telo não se fizera sem que houvesse para tal opositores. A iniciativa de fundar uma comunidade regrante, tendo como referencial a vida apostólica, teria, no período, alimentado uma crescente rivalidade com os membros do cabido de Coimbra.
…. Assim, a 28 de junho de 1131, após ter conquistado um espaço propício e ter reunido determinado número de adeptos à proposta, nos arredores da cidade de Coimbra, teria sido fundado o mosteiro de Santa Cruz. A arquitetura, baseada nos moldes românicos, teria ficado a cargo de mestre Roberto, um franco de Auvergne, que trouxe inovações estruturais, inaugurando aquilo que os historiadores chamam de “segundo período do românico coimbrão do século XII”.
Torre de S. Cruz. Acervo RA
Igreja de S. Cruz, interior. Imagem João Santos, acedid em www.facebook.com/jpphoto
Iniciava-se, com isso, no ocidente ibérico, mais propriamente no Condado Portucalense, a experiência religiosa comunitária cujo referencial se baseava na Regra agostiniana. Tendo sido promovida a construção do Mosteiro em 1131, como antes vimos, suas atividades, de acordo com a narrativa, só teriam se iniciado em 1132, sendo eleito como seu primeiro Prior-mor, D. Teotónio, um dos fundadores.
Oliveira, J.R.S.C. A Cidade de Coimbra e o Mosteiro de Santa Cruz no Século XII. Reflexões sobre o Priorado de S. Teotónio. 2017. In: Acedido em:
Foi subscrito pelo Professor Doutor Pedro Dias o texto, publicado na revista Munda em novembro de 1981. Faremos a sua divulgação nesta entrada e na seguinte.
A evolução do espaço urbano de Coimbra é hoje bastante bem conhecida, porque dado não ter sido regular, se podem precisar com razoável rigor os seus limites em determinadas datas, nos momentos em que certos eventos a fizeram desenvolver ou a mutilaram.
O povoamento do morro da Alta atual justifica-se plenamente, por ser dominante ao último local até à costa onde era fácil atravessar o Mondego, em qualquer época do ano, dado que, a partir daqui o rio entrava na sua vasta planície aluvial por onde desbordava nas invernias. Assim, este ponto era de passagem quase obrigatória no trânsito entre o Norte e o Sul, pois também para montante, e devido às escarpas que cingiam o leito do Mondego, a viação era difícil. Era, pois, o morro onde a cidade veio a crescer de excecional valor estratégico, no campo militar, e também privilegiado para o florescimento de uma povoação, pois era uma encruzilhada, onde as trocas se poderiam fazer e onde os habitantes se poderiam ocupar a fornecer serviços aos passantes.
Os vestígios pré-históricos são raros, de qualquer modo, existem, o que prova a permanência do Homem no atual perímetro urbano, muitas dezenas de milhares de anos antes da nossa Era. Na margem Sul, para lá de Santa Clara, também, nas grutas dos Alqueves, deixou a marca da sua passagem, aí, na forma de espólio funerário. Pouco sabemos desses nossos remotos antepassados, exceto que, com a sua decisão de se fixarem, iniciaram a História da Cidade de Coimbra.
Mas é do período de dominação romana, já dos primeiros dois séculos da Era Cristã. que nos ficou o mais antigo testemunho material importante: o criptopórtico. Situa-se sob as construções do antigo Paço Episcopal, hoje o Museu Nacional de Machado de Castro, e é formado por duas galerias sobrepostas que serviam para suportar uma grande plataforma artificial na vertente, a fim de se construir o fórum. Aí era o centro da vida da civitas, que então se chamava Aeminium. Por aqui passava a grande via Olissipo-Bracara Augusta, a verdadeira espinha dorsal da viação peninsular ocidental. As invulgares dimensões deste criptopórtico são denunciadoras da importância desta cidade hispânica.
Museu Nacional Machado de Castro. Criptopórtico romano. Imagem acedida emhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Museu_Nacional_de_Machado_de_Castro#/media/Ficheiro:ForumRomanoDeCoimbra3.jpg
Não é de aceitar que a área ocupada fosse multo grande. Certamente não ultrapassaria o perímetro que, mais tarde, as muralhas medievais haveriam de definir. O cemitério. ao lado do grande aqueduto, que o atual substitui no final do séc. XVI, prova o fim da urbe romana, na zona do castelo onzecentista. Na atual Baixa, é provável que também houvesse alguns núcleos de casas, e os Banhos Reais, que D. Afonso Henriques cedeu para a construção do Mosteiro de Santa Cruz, podiam ser umas termas ou um balneário romano.
Com a invasão germânica, a fácies de Coimbra/Aeminium teve, forçosamente, de se modificar. O brilho da civilização romana foi-se apagando, mas, mesmo assim, a cidade ganhou importância, relatlvamente a outros povoados que, décadas antes, a ultrapassavam em prestígio o valor económico e político. Em meados do séc. VI, o Bispo de Conimbriga muda-se para o morro mondeguino e a nova residência do Episcopus Conlmbrlgensls, a Imlnio visigoda. passa a chamar-se Coimbra, enquanto aquela cidade florescente, três léguas a Sul, desapareceria.
O que era a Coimbra do séc. VII? Ao certo não sabemos. Que era pequena e modesta não se duvida, mas suficientemente importante no panorama peninsular, para que quatro monarcas nela cunhassem suas moedas: Recaredo, Lluva, Slsebuto e Chintila.
Com as invasões muçulmanas de 711, a cidade seguiu o destino de todas as que se situavam a Sul das montanhas das Astúrias, e durante mais de três séculos foi islâmica, não obstante breves momentos de domínio de tropas cristãs, como aconteceu em 878. As marcas deixadas nas gentes e nos seus costumes foram profundas, mas no campo artístico os testemunhos dessa intensa colonização não chegaram até nós. Coimbra, pela sua posição geográfica foi o entreposto entre o Sul Islâmico e o Norte Cristão, tendo existido uma importante comunidade moçárabe, que levantou e melhorou os seus templos e que, mesmo depois da vinda para a terra portucalense dos senhores de linhagem franca, continuou a impor o seu modelo de vida, bem diferente do feudalismo de além Pirenéus. A cidade foi definitivamente reconquistada em 1064 pelas tropas de Fernando Magno, mas a reorganização de todo o vasto território e a defesa da linha do Mondego, ficou a cargo de um moçárabe de Tentúgal, o alvazil D. Sesnando, que nas prósperas cidades andaluzas passara os primeiros tempos da sua vida.
O mais antigo testemunho medievo do aspeto da cidade, ainda que vago, é dado pelo geógrafo ldrici, que nos confia que, no início do séc. XII, Coimbra estava «edificada sobre uma montanha, rodeada de boas muralhas, rasgadas por três portas e mui bem fortificada. Fica nas margens do Mondego, que corre a ocidente da cidade até ao mar e cuja foz é defendida pelo forte do Montemor. Sobre o rio existem moinhos. No território da cidade abundam vinhedos e hortas. Na parte que se estende até ao mar, do lado do poente. Existem campos cultivados onde criam gados. A população faz parte da comunidade cristã».
Sem dúvida que, durante os reinados dos nossos primeiros monarcas, a generalidade da população vivia dentro da cerca, onde ficava a alcáçova em que pousaram Afonso Henriques e os seus mais chegados descendentes, o castelo – o último reduto de todo o sistema defensivo – a Sé e o Paço dos Bispos, e as principais igrejas paroquiais.
Sé Velha. 1902. Acervo RA
Mas no arrabalde, além muros, já começavam a despontar alguns pequenos núcleos de habitações, sobretudo junto dos templos que aí se levantavam: Santa Justa, S. Tiago e S. Bartolomeu. Em 1131 começou-se a construção do que viria a ser o mais importante mosteiro português, Santa Cruz. Nesse mesmo ano, e igualmente sob o patrocínio do príncipe D. Afonso Henriques, lançaram-se os fundamentos da grande ponte de pedra sobre o Mondego, cuja solidez desafiou séculos de enxurradas e de assoreamento.
Ponte de Pedra. Acervo RA
Tinha a cidade judiaria e mouraria, continuando a vida destas duas comunidades a processar-se sem grandes sobressaltos até ao final do séc. XV. O bairro judaico ficava na encosta, do lado de Santa Cruz, nas ribas de Corpus Chrlstl. No interior da cerca, uma grande via ligava a Porta de Almedina à Porta do Sol, junto ao castelo, passando pelo adro da Catedral e dividindo ao melo o espaço urbano intramuros. Outra, também de largo uso, fazia a comunicação entre a Porta de Belcouce, a mais próxima do rio, com o adro da Sé e com a Alcáçova.
No final da primeira dinastia a cidade estava já claramente dividida em almedina e arrabalde, cada zona com características muito distintas e bem definidas. Na nova zona além muralha – a Baixa atual – fervilhava o povo miúdo, os comerciantes e os artesãos, sobretudo em torno da Praça, balizada por duas igrejas paroquiais: a de S. Tiago e a de S. Bartolomeu. Nos becos e vias que dela saíam arruavam-se alguns mesteres, mantendo-se ainda em muitos casos a toponímia medieval. Na Alta, dentro dos muros, vivia o alto clero, os cónegos da Sé e outros beneficiados eclesiásticos, a nobreza local e os seus servidores, e também, evidentemente, algum povo.
Dias, P. Evolução do Espaço Urbano em Coimbra. In: Munda, Revista do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, n.º 2, pg. 5-11.
Como todas as cidades antigas, Coimbra é para ser vista de fora; porque colocada em anfiteatro o seu prospeto é formoso; mas vistas interiormente as ruas são tortuosas, e em grande parte tristes. Há ali um cunho de decrepitude; sem haver, salvo em raros edifícios, a majestade dos séculos. A bondade, porem, dos ares, a barateza do sustento, a amenidade dos campos e hortas vizinhas a tornam cómoda e agradável. Os habitantes são em geral alegres e folgazões, ao que os aconselha e inclina o céu e o ar e o solo que a Previdência lhes deu. Quando a natureza ri á roda de nós, alegra-se e folga o coração do homem, e o sorriso vem habitar nos seus lábios.
O Mondego que sumiu grande parte da antiga Coimbra, assentada na planície, ao sopé do monte onde hoje campeia o principal da cidade, é o maior rio dos que nascem em Portugal. Tem as suas fontes nos altos da serra da Estrela, e correndo por mais de vinte léguas, vem meter-se no oceano junto á vila da Figueira. – A sua pequena correnteza na proximidade de Coimbra, e o passar entre montes, cuja terra se esboroa e vem ao leito do rio com as torrentes do inverno, tem feito com que o álveo se vá alteando, de modo que nas grandes cheias os campos ficam inundados. Entretanto na cidade baixa a corrente impetuosa faz notáveis estragos, deixando as casas em sitio. Felizmente estas cheias desmedidas são pouco frequentes: mas a tortuosidade do rio que contribui para que as areias fiquem retidas, fará no decurso dos tempos com que a baixa Coimbra se converta num areal, se a arte não souber pôr barreiras invencíveis ás irrupções das águas.
Já desde os fins do século passado se trabalha por obviar a este dano certo, e aos estragos que as cheias causam nos campos de Coimbra, areando-o, e tornando-os inférteis; mas o mal não foi ainda remediado. Nos anos demasiadamente chuvosos as estacadas de encanamento são rotas e derrubadas, ficando perdido num dia o trabalho de uns poucos de anos, e o rio se estende como vasto mar por aquelas dilatadas campinas.
Rio Mondego ponte de pedra
Sobre o Mondego está lançada a formosa ponte que se vê na nossa estampa, e que une a cidade com a margem esquerda do rio, dando para a estrada de Lisboa. Foi edificada por el-rei D. Afonso Henriques; mas o tempo e as aluviões do rio sepultaram a primitiva fabrica. Segundo o testemunho do historiador Barros já pelo seu tempo se haviam submergido duas pontes: a que existe, obra, quase toda, de el-rei D. Manuel, apesar de sucessivos reparos, também já vai tendo entulhados os primeiros e últimos arcos, e com o andar do tempo ficará provavelmente sepultada, como as antigas, debaixo das areias do rio.
Rua da Sofia
Quem entra na cidade pela estrada do Porto vem desembocar na mais formosa rua da cidade, a «Sofia», rua bordada quase só de conventos, ou colégios, de diversas ordens monásticas. Estes conventos, hoje desertos, serão em breve montes de ruínas. Em Coimbra, cidade de pouco trato, não se achará quem compre estes edifícios vastíssimos; e a rua da «Sabedoria», [Sofia] orlada de paredes desmoronadas, será a imagem epigramática do estado intelectual do nosso país.
O Panorama. Número 51. 21 de Abril de 1838. Pg. 121-122
Em Telo, nesta importante fase «pré-nacional», vê Afonso Henriques o potencial e carismático chefe religioso capaz de conseguir a adesão e o controlo de consideráveis energias, isto é, de uma grande parte da população e consequentemente de recursos e espaços. Com ele e à sua volta, poderia Afonso Henriques constituir uma cerrada rede de resistências, ao mesmo tempo que reforça o seu próprio poder.
... Por isso, nele se apoiará Afonso Henriques na luta contra a igreja institucionalizada – hierarquizada e temporal -, assim limitando mais facilmente o poder desta. Através dele, na base da confiança entre iguais, à sombra dos desejos da Igreja e mediante a infusão do amor divino, pretenderia o príncipe unir os cavaleiros e associá-los ao seu poder. Deste modo, alargando o grupo dos seus vassalos contrabalançaria, consequentemente, o poderio dos magnates nortenhos e reforçaria o seu próprio.
O projeto de uma nova sociedade laica e o de uma nova sociedade eclesiástica, entrecruzavam-se e interpenetravam-se, já pela influência das estruturas sociais globais sobre a instituição monástica, já pela intervenção e controlo do rei.
... A consciência da pertença a uma mesma unidade territorial, a uma mesma unidade política (sobretudo desde que D. Fernando Magno deu a D. Sesnando todo o território do Mondego ao Douro e do litoral até Lamego), a consciência da mesma identidade cultural (que é também moral e ideológica) ou a ânsia de aproximação (ou reaproximação) dos centros do poder sagrado e profano (ou da conexão entre estes) fazem associar os cavaleiros de Coimbra ao movimento eclesiástico em criação.
... Criar uma subsociedade, uma subcultura dentro dos limites da Sé, seria difícil senão impossível. E a renovação exigia um sítio novo, se possível não muito longe do palácio real (lugar de apoio)... Como doador destes banhos (os banhos régios), D. Afonso Henriques liga-se assim cultural e materialmente à fundação do Mosteiro de Santa Cruz.
... Adentro do projeto expansionista de Afonso Henriques, programar a e realizar a colonização de toda a margem (a retaguarda da fronteira) era primordial. O repovoamento da mesma fronteira, no interior, impunha-se-lhe do mesmo modo. Tinha então que, direta ou indiretamente, prolongar e culminar a ação já iniciada por
D. Sesnando e prosseguida, em parte, por D. Henrique e D. Teresa. Ação cujo elemento fundamental de orientação era o mesmo: o Rio Mondego nas suas duas direções, para montante e para jusante de Coimbra.
Ventura, L. e Faria A.S. 1990. Livro Santo de Santa Cruz. Cartulário do Séc. XII. Edição de Leontina Ventura. Transcrições de Leontina Ventura e Ana Santiago Faria. 1990. Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, pg. 19-22, 26-27
À frente dos destinos da Terra Portucalense, desde 1128, Afonso Henriques deixa Guimarães e fixa-se em Coimbra, em 1130 ou 1131.
Este deslocar do centro de gravidade de Guimarães para Coimbra é carregado de significado. É a fuga à tensão entre senhores territoriais de Entre-Douro-e-Minho. Isto é, entre pequenas unidades sociais interdependentes e rivais na conquista do poder social. Auxiliares importantes na vitória de Afonso Henriques em 1128 (também a sua própria vitória), foram engrandecendo o seu domínio e aumentando o seu poder, passando a ver em Afonso Henriques um rival. Este pressentiu o risco de se deixar aniquilar por eles ou vir a cair na sua dependência. Um processo concorrencial entre Afonso Henriques e os senhores do Norte, agravado pelas dificuldades de expansão externa, leva-o a desejar apoderar-se de outras terras. É, em última análise, a procura e a consequente construção de um espaço operatório para a sua ação, a partir do qual se irá esforçar por realizar o seu programa político: a integração das distintas unidades socioculturais, a expansão e o domínio do conjunto do território. A facilidade que Coimbra oferece à defesa e irradiação do seu poder, justifica a escolha desta cidade e a ulterior estratégia de controlo sobre ela.
A ação do infante sobre Coimbra começara já em 1128, com a nomeação para seu bispo do arcediago D. Bernardo, pro-gregoriano e anti-compostelano, em oposição ao clero local que propusera D. Telo, arcediago da Sé de Coimbra, à condessa D. Teresa. Assim, utilizando o conjunto de particularidades que dificultavam a uniformização em Coimbra, absorve a antiga oposição entre senhores laicos e gregorianos, ao mesmo tempo que prepara a aproximação com Roma. Por outro lado, sendo, em primeiro lugar, um grande senhor feudal, atribui-se como função fundamenta a guerra externa, a conquista. Coimbra, como cidade fronteiriça, tendo próximo o muçulmano, possibilitava não só o alargamento do território, mas permitia ainda ao rei aumentar a sua riqueza, fama e honra e recompensar as forças essenciais do seu exército, os seus cavaleiros, também eles desejosos de terras.
... No que diz respeito a Coimbra propriamente dita, subjacente às doações de Afonso Henriques está a consciência da diversidade existente e do prolongamento da luta, entre moçárabes e gregorianos... A intenção de ter propício à sua causa o bispo, representante máximo do poder religioso da cidade, um pro-gregoriano e anti-compostelano de que necessitava na sua luta contra os Travas e contra Diogo Gelmirez é evidente. Que o conseguiu e dele terá recebido importantes auxílios pecuniários, quer para a prossecução desta luta, quer principalmente para subsidiar a guerra externa, provam-no as ulteriores doações onde esse auxílio fica expresso.
... neutralizados os potenciais rivais do Norte, organizado o poder e centralizado em Coimbra, Afonso Henriques procurará, defendendo militarmente as suas terras e afirmando o seu poder face aos muçulmanos e a seus vizinhos, transformar o sistema social existente. Enfim, projetar uma sociedade laica.
Ventura, L. e Faria A.S. 1990. Livro Santo de Santa Cruz. Cartulário do Séc. XII. Edição de Leontina Ventura. Transcrições de Leontina Ventura e Ana Santiago Faria. 1990. Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, pg. 9-10, 14-15, 17.
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