Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Através do Livro do Registo dos Ordenados que se costumam pagar no Convento de Santa Ana, entre 1758-1856, sabemos que tinham ao serviço um Cirurgião, um Médico e um Sangrador, a quem pagavam um salário. Para além destes, pagavam, também aos padres Capelães, ao Dr. António Gomes, ao Dr. Francisco Lopes ao solicitador do Convento, ao escrivão, ao agente das causas, ao sacristão ou ao tesoureiro.
Vista da fachada atual do Quartel de Sant’Ana e parte do aqueduto de D. Sebastião In: «Sant’Ana. Três séculos de convento, um século de quartel», pg. 14.
“Entrou para o partido de Médico desta comunidade de Sant’Anna de Coimbra o Ilustríssimo Senhor Doutor António Augusto das Neves no mês de Abril de 1825”. Este era remunerado com 10.000 reis e 20 alqueires de milho.
“Entrou para sirurgião desta comunidade Manuel José Ferreira a 18 de Agosto de 1773 com o mesmo ordenado de 4 mil reis e 20 de milho”. Esta remuneração manteve-se até 1826, havendo novo ajuste para 6 mil reis e 12 alqueires de milho, até 1831. Entretanto, existe um hiato de tempo em que não há registos, sendo que no ano de 1850, para exercer a função contratam o Senhor Manuel Amadeo que se manteve até 1856.
Esteve também ao serviço da comunidade o sangrador José António Cortegaça “desde 26 de junho de 1773 com o mesmo salário que são de milho 12 alqueires e 7 mil reis em dinheiro”.
Qualquer deles declara por escrito o pagamento que recebe das religiosas, como seja o caso do sangrador, de nome José António Cortegaça: “Recebi o meo ordenado de sete mil reis e tenho o recebido todos athe o dia 6 de julho de 1786”.
Ressalve-se que a figura do sangrador não consta nas Despesa da Botica. Por oposição, é mencionado o Boticário que não nos surge no Livro do Registo dos Ordenados.
A remuneração mais relevante continua a ser o do médico que aufere por mês 10.000 reis e 20 alqueires de milho. Única exceção, em março de 1861, recebe apenas 6.800 reis.
O cirurgião aufere um ordenado de 8.000 reis e 20 alqueires de milho. Excetuando também para o mesmo ano em que lhe pagam 5.440 reis.
Curiosamente os pagamentos em milho não são quantificados, talvez porque possuíssem este cereal, não tendo necessidade de o comprar. De facto, dos inúmeros trabalhos do campo a que as freiras aludem, destacam-se os trabalhos do milho: semear, sachar, regar e cortar.
O médico examinava, diagnosticava e prescrevia receitas. Tinha um estatuto mais nobre sendo tratado por “Ilustríssimo Senhor Doutor”, enquanto o cirurgião e o sangrador somente por “Senhor”. O cirurgião, normalmente, deslocava-se para tirar dentes, fazer sangrias, tratar luxações, tratar feridas e fazer amputações.
Afonso Castelo Branco (fundador do convento). In: «Sant’Ana. Três séculos de convento, um século de quartel», pg. 19.
… Através dos balanços anuais, percebemos que o abastecimento da botica de Santa Ana provinha também de outras fontes exteriores à comunidade, como forma de garantir o provimento de receitas, havendo referência a consideráveis pagamentos a fornecedores. Em janeiro de 1863 “Despendi com o rol das resseitas de 62 – 23490 reis”, ou em janeiro de 1867 “Despendi com o rol das Resseitas da Botica do anno de 66 – 2.4150 reis”.
Sousa, D. Comer e curar no Convento de Santa Ana de Coimbra (1859 a 1871). Texto acedido em: https://www.academia.edu/116755957/Comer_e_curar_no_Convento_de_Santa_Ana_de_Coimbra_1859_a_1871_?email_work_card=title.
Como sabemos, nos conventos, era comum a confeção de doces e bolos, destinados ao uso da comunidade, em alturas festivas e como forma de rendimento, ou seja, para venda. … Do convento de Santa Ana registámos o fabrico de algumas iguarias: as amêndoas, o arroz doce, o arroz de leite, a aletria, o bolo de São Nicolau, os bolos de Natal, as famosas arrufadas, os também afamados “bolos de Sant’Anna”, os sonhos, a marmelada, os doces de pêssego, de ameixa, de pera e de chila.
Arrufadas de Coimbra. Imagem acedida em: https://amodadoflavio.pt/2017/07/doce-tradicional
Na botica de Santa Ana, questionamo-nos sobre o motivo pelo qual despenderam valores tão elevados no doce de chila. Se nos fundamentarmos no seu valor nutritivo, a chila apresenta um alto conteúdo em vitamina C. às suas propriedades nutritivas é necessário acrescentar o seu alto conteúdo em fibras, em água e em potássio e baixo conteúdo em sódio, pelo que o seu consumo é recomendável no caso da retenção de líquidos, transtornos renais, cardiovasculares ou hipertensão arterial. Na época em que situamos o nosso estudo, sabemos que no hospital de Caminha, o doce de chila era dado a doentes que sofriam de gastro-hepatite e tísica pulmonar.
No grupo dos alimentos mais utilizados temos também o leite, frequentemente de burra, ficando em terceiro lugar na hierarquia das despesas, com um total de 11.520 reis
… O leite e, particularmente, o de burra, pelo seu alto valor nutritivo, era ministrado a pessoas debilitadas. Ao possuir uma consistência espessa e açucarada era aplicado em pomadas para feridas e doenças de pele, revelando-se um excelente cicatrizante. Entrava também na composição de soros para medicamentos, utilizado em moléstias crónicas do peito, do intestino, na gota e nas epilepsias.
“O leite, na altura, representava ainda um dos produtos mais unanimemente recomendado para os tísicos (tuberculosos), havendo na comunidade de físicos do tempo a crença que o seu soro mundifica as chagas do pulmão”.
Mas não era só para tratar a tuberculose que o leite de burra era quase obrigatório. Era-o também para uma série de outras enfermidades, como distúrbios gástricos, “pela sua facilidade de digestão, nas cistites, por amenizar a dor durante a micção, nas dores intestinais, por facilitar a cicatrização de fissuras do intestino, nas febres, porque refrescava, mas também na paralisia, nos espasmos ou no catarro”.
… Mas as terapêuticas mais usadas no convento de Santa Ana eram, indubitavelmente, feitas através das sanguessugas, também designadas pelas religiosas por bichas ou bissas.
“Bissas” ou sanguessugas. Imagem acedida em:https://www.bing.com/images/search?view=detailV2&ccid=5718OTKw&id
.… A ideia corrente era a de que este verme extraía o sangue que tinha toxinas ou elementos deteriorados, que se acumulavam nos vasos sanguíneos e nos músculos enrijecidos, causando doença. Outra função prendia-se com os casos de gangrena, visto que a sua função sugadora forçava o sangue a circular, ajudando a manter as células vivas. O recurso a sanguessugas também era utilizado para a cura da pleurisia e da sífilis.
Prática da sangria. Imagem acedida em: https://www.medicina.ulisboa.pt/newsfmul-artigo/115/tratamentos-medicos-aplicados-ao-longo-da-historia
A sangria era uma técnica muitíssimo usada nos séculos, XVII, XVII e XIX. Consistia na abertura de uma veia com uma lanceta, para deixar sair o sangue “causador de moléstia” e era aplicada, geralmente, quando ocorria uma inflamação seguida de febre. Mas esta não era a única forma de sangrar o doente, já que nos casos em que houvesse dificuldades para encontrar uma veia ou o estado do paciente fosse demasiado debilitado, eram usadas as sanguessugas.
… Será igualmente de relevar a utilização de açúcar para remédios que no Convento de Santa Ana nos aparece em terceiro lugar no total das despesas, ou seja 7.592 reis. Nestes casos, o que a escrivã regista é muito claro: “Despendi 6 arrateis de açucar para remédios 780 reis”, ou “Despendi em 8 arrateis de açucar para remédios 1000 reis”, em 186058. Portanto, não há qualquer dúvida que seria consumo de botica.
…. O açúcar, a marmelada, o mel eram usados particularmente na confeção de medicamentos. “O açúcar chegou a ser considerado, no século XVII, uma especiaria de luxo e só após o incremento do seu cultivo na América do Sul é que passou a ser acessível a todas as classes sociais; na alimentação veio substituir o mel e na medicina era tido já por Galeno como elemento essencial da farmacopeia”. Nos registos de boticas, encontram-se referências a açúcar rosado, levado “em ponto” com pétalas de rosas. Era recomendado especialmente para diarreias e disenterias, mas também para problemas respiratórios.
Sousa, D. Comer e curar no Convento de Santa Ana de Coimbra (1859 a 1871). Texto acedido em: https://www.academia.edu/116755957/Comer_e_curar_no_Convento_de_Santa_Ana_de_Coimbra_1859_a_1871_?email_work_card=title
Não sabemos, ao pormenor, como estava regulamentada a dieta das doentes de Santa Ana, mas nela estava incluída a carne de galinha.
… Este consumo de galinha contrapõe, à partida, o que se comia no quotidiano desta comunidade. Encontramos significativos valores na aquisição de carne de vaca, porém nunca de galinha. Existe, aliás, um rol mensal destinado exclusivamente à carne de vaca, com uma despesa mensal que ronda os 20.000 réis.
AUC, Livro de Receitas e Despesas do convento de Santa Ana 1859 – 1871, doc. 46. Op. cit., pg. 224
Que comiam em Santa Ana para além da carne de vaca? Algumas vezes referem despesa com a matança do porco e aquisição de tripas para os enchidos (“shorissos”). Surgem com alguma frequência despesas em lombo e pastéis de carne.
São, ainda, frequentes as despesas com bacalhau e com peixe fresco, embora sem mencionarem qual a espécie. O seu consumo surge, habitualmente, nos períodos de abstinência de carne ligados à Quaresma, em particular nos meses de Março ou Abril. Veja-se, por exemplo, que em Santa Ana, em abril de 1866, despenderam em peixe “que se deo na Coresma três vezes e em letria 5ª feira Santa 4.120 reis”. De igual modo, em Março de 1867, despenderam em bacalhau e arroz para as conçoadas da Coresma 2.000 reis”, “em peiche 3 vezes que se da na Coresma e letria e castanhas 9.470 reis”.
Embora não saibamos qual o peixe que compravam, percebemos que este alimento não seria, de todo, desvalorizado em relação à carne, dado que, com frequência, era manjar de festa, como aconteceu em Abril de 1862, “Despendi em peixe de Domingo da Festa dos Passos 1.060 reis”; Em Março de 1863 “Despendi em peixe pelo Banquete 1.615 reis”. Despenderam, novamente, em peixe pelos Passos 1.715 reis”.
Complementando o quotidiano alimentar, encontramos também o arroz, as batatas, as castanhas, os figos, o queijo, a manteiga, o leite, o azeite (usado também na iluminação), o trigo (não só para o pão, mas também para bolos, havendo às vezes preferência pelo trigo galego para as arrufadas), o vinho, o chá e a cidra.
Planta do Convento de Sant’Ana e respetiva cerca… 1873-74. In: «Sant’Ana. Três séculos de convento, um século de quartel», pg. 61.
Planta do edifício e terrenos confinantes, 1905, DSE – 6845 – 1.º-5-64-73 In: «Sant’Ana. Três séculos de convento, um século de quartel», pg. 103.
Para o cultivo do terreno que lhe restou junto à cerca, após a extinção das Ordens Religiosas, arrolam detalhadamente as despesas com os trabalhos agrícolas ligados às vindimas (incluindo fabrico da aguardente), ao ciclo do milho, enxertia de árvores de fruta como limoeiros e laranjeiras, aos cortiços para as abelhas, à sementeira de alhos, feijões, grão-de-bico, cebolas, repolhos, favas, entre outros.
Porém, a aquisição de galinhas jamais é registada, a não ser nas Despesas da Botica. Estamos já num período de decadência, pelo que já não as recebiam através dos foros, como outrora acontecia. Poderiam criar algumas em galinheiros existentes nos seus terrenos junto à cerca, mas seriam talvez insuficientes, tendo o desvelo de as comprar para as doentes. Por sua vez, o seu preço comparado com outros produtos, era elevado: o valor despendido na aquisição de tripas, vinho, sal e meio porco, para enchidos, importava em 1.200 reis; um lombo para o Procurador 1.100 reis, ao passo que 4 galinhas custavam 1.400 reis.
… Os elementos de que dispomos também não nos dão informação de como seria confecionada a galinha na botica de Santa Ana. Porém, no contexto da dieta alimentar de alguns hospitais de então, regista-se que a carne de galinha era servida cozida, assada ou usada na preparação de caldos.
… Mas a presença de sobremesas ou da doçaria na dieta alimentar hospitalar desta época era comum e o convento de Santa Ana não foi exceção. No período em que nos situamos, a despesa com doce de chila e outros doces (que não se identificam), atinge um valor considerável, só comparável com os gastos em sanguessugas e bichas. Aliás, é com estes dois itens que gastam mais dinheiro: com sanguessugas e bichas 36.980 reis; com doce de chila e doces 36.910 reis.
Este consumo significativo de doces poderá ser entendido mediante duas perspetivas: uma forma de agraciar o médico; aquisição ou confeção de produtos que, por sua vez, o médico ministrava às doentes.
Sousa, D. Comer e curar no Convento de Santa Ana de Coimbra (1859 a 1871). Texto acedido em:
Ao debruçarmo-nos sobre o papel da enfermaria e da botica de Santa Ana, acreditamos estar perante uma comunidade que manifestou um especial cuidado e desvelo para com as doentes.
Enquanto professas da Ordem de Santo Agostinho, a Prioresa tinha uma responsabilidade especial sobre as que se declaravam doentes, em relação às quais lhe competia garantir um trato apropriado e prover adequadamente as suas necessidades. Competia-lhe nomear uma freira acompanhante ou uma enfermeira, sempre que a doença assumia maiores proporções, impedindo a freira afetada de continuar a fazer a sua vida religiosa normal. Tais eram os casos descritos nas constituições “…das febres tercãs ou quartãs, dobres ou sigelas, contínuas ou quotidianas ou intermitentes”.
Ainda no exercício das obrigações da Prioresa, “em relação aos doentes, cabia-lhe solicitar o conselho de médicos e cirurgiões, sempre que se revelasse necessário, e preparar um local para enfermaria que devia visitar com frequência”.
Neste cenário vamos encontrar médicos, cirurgiões e boticários a praticarem a arte de curar, seguindo os princípios médicos e farmacêuticos em constante atualização científica pois, como é óbvio, também nos mosteiros se refletem os progressos que, ao longo dos séculos, foram acontecendo na medicina e na farmácia.
Fachada Norte inicial, 1905, DSE. In: «Sant’Ana. Três séculos de convento, um século de quartel», pg. 65
Porém, em dezembro do ano seguinte já referem que “despendi em bissas para a Madre Boticária 969 reis”.
Em abril de 1861, voltam a registar que despenderam “em galinhas para a Boticária 1.600 reis”. Ou seja, inicialmente seria uma figura masculina, talvez exterior à comunidade a exercer esta função, depois passa a ser uma religiosa que assume esse papel. Surge-nos também a figura da criada e da servente da botica, com um pagamento mensal de 1.200 reis, assim como da lavadeira da botica que recebia 480 reis.
Refira-se uma interessante particularidade: em agosto de 1864 mencionam “despendido na paga de hua Soregiãe 480 reis”. Perante este registo, deduzimos que apesar de terem em permanência ao seu serviço um cirurgião a quem pagavam mensalmente 8.000 reis, por algum motivo que desconhecemos, recorreram ao serviço de uma mulher que já desempenhava essa tarefa. Algo pouco comum nesta época.
Planta do rés-do-chão das hospedarias. In: «Sant’Ana. Três séculos de convento, um século de quartel», pg.63.
Sobre a botica de Santa Ana, para além da sua localização espacial, não encontrámos descrições que nos permitissem reconstituir com pormenores a sua configuração, os seus utensílios ou alfaias … Porém, em agosto de 1864, a escrivã da botica de Santa Ana regista a aquisição de um precioso utensílio: “Despendido com hua comadre para as doentes 600 reis”. As comadres de estanho eram recipientes onde se colocava água quente, utilizados para aquecer a cama das pacientes. Era um recipiente muito comum no quadro hospitalar.
Não sendo claros os registos documentais sobre as doenças das religiosas de Santa Ana, sobre as terapêuticas aplicadas e sobre a alimentação que lhes era ministrada, sabemos, com alguma regularidade, a quem se destinavam os produtos terapêuticos, pois aqueles referem os nomes das pacientes.
Estas eram assistidas na enfermaria, espaço que se situava em local arejado e ensolarado, afastado do núcleo principal das construções devido ao perigo das infeções e contágio e, ainda, à necessidade do sossego necessário às freiras doentes, que recebiam alimentação e cuidados diferentes das outras.
De acordo com o Inventário do Arquivo dos Próprios Nacionais do Distrito de Coimbra de 1857, Santa Ana tinha no andar térreo a “caza da botica”, bem perto da cozinha e no primeiro andar “hum dormitório grande que corre do norte ao sul, abrange em cumprimento ambos os clautros e tem quatro centos e sincoenta palmos com vinte e seis celas e outras tantas janellas”. Faz-se alusão a mais outros dormitórios do poente para nascente composto por mais vinte e duas celas. Uma casa de noviciado com cinco celas e regista-se que “tem sento e noventa e três palmos de comprido, por dezoito de largura”, e que “tem uma boa caza de enfermaria”.
Sousa, D. Comer e curar no Convento de Santa Ana de Coimbra (1859 a 1871). Texto acedido em:
Com a série de cinco entradas que hoje iniciamos chamamos a atenção dos leitores para o trabalho de investigação intitulado Comer e curar no Convento de Santa Ana de Coimbra (1859 a 1871), da autoria da Dr.ª Dina de Sousa.
O Convento de Santa Ana
O primitivo convento situava-se na margem esquerda do Mondego, próximo de um local vulgarmente designado por “Ó da Ponte”. Então conhecido por “Cellas da Ponte”, teve como grande impulsionadora D. Joana Pais, devota de Santa Ana, que fundou o convento numas casas e respetiva quinta que recebera por doação de seus pais, tendo sido aí colocada a primeira pedra a 26 de Julho no ano de 1174, precisamente no dia consagrado a Santa Ana. Devido aos seus parcos recursos, o convento ficou dependente dos bispos de Coimbra, que o sustentavam através das suas esmolas.
Um século após a edificação do convento, “(...) por causa das cheias do Rio Mondego com as quais o dito Convento estava devastado e as ditas freiras por muitas vezes estiveram em perigo de vida”, tornou-se insustentável a continuidade da comunidade naquele espaço.
Coimbra no final do sec. XVI, ruínas das “Cellas da Ponte”. Pormenor da gravura de Coimbra, de Hoefnagel
No “anno de 1561, em que as sucessoras de D. Joanna viram não poder elle continuar a ser habitado”, recorreram ao bispo D. João Soares, tendo-lhes sido feita doação da Quinta de S. Martinho para nela se recolherem, até ser construído um novo edifício.
Quinta de S. Martinho (Vestígios do Convento). In: «Sant’Ana. Três séculos de convento, um século de quartel», pg. 20.
Este seria mandado edificar pelo bispo–conde D. Afonso de Castelo Branco, situado no local outrora conhecido por Eira das Patas, numa colina fronteira à cerca de São Bento e ao aqueduto. O seu domínio estendia-se até ao atual Penedo da Saudade. A 13 de Fevereiro de 1610, as religiosas ingressam no novo convento de Santa Ana, passando a usar o hábito das Eremitas de Santo Agostinho.
Refira-se que esta comunidade acolheu a jovem Josefa de Óbidos. Além dos ensinamentos religiosos, ali recebeu aulas de pintura. Assim, foi nesta cidade que Josefa começou a pintar, pois, parece que a sua obra mais antiga data de 1644, uma série de gravuras de Santa Catarina e São José. Como não seguiu a vida religiosa regressou a Óbidos, em 1653, trabalhando para conventos e igrejas. Mais tarde, foi convidada pela família Real, para fazer os retratos da rainha D. Maria Francisca de Saboia e da sua filha, a infanta D. Isabel.
Josefa de Óbidos. Santa M aria Madalena.1650. Museu Nacional de Machado de Castro. Imagem acedida em:https://www.wikiart.org/pt/josefa-de-obidos/santa-maria-madalena-1650
Josefa de Óbidos, A Anunciação, 1676. Imagem acedida em: https://ilustracaoportugueza.wordpress.com/2016/08/15/josefa-de-obidos-a-anunciacao-1676/
Tal como aconteceu em outros espaços monásticos, em 1810, as religiosas perderam muitos dos seus bens, devido às Invasões Francesas. Poucos anos depois, as guerras liberais vieram agravar a sua frágil situação económica, no contexto da extinção das ordens religiosas masculinas, em 1834. Assim, as ordens femininas ficaram proibidas de receber noviças, pelo que se regista um envelhecimento da comunidade, necessitando de mais cuidados.
O convento é considerado extinto a 6 de Junho de 1885, altura em que a última prelada, D. Maria José de Carvalho, de idade já avançada, e desprovida de bens económicos, abandona Santa Ana, juntamente com mais algumas idosas que com ela viviam, na sua maioria criadas e encostadas. Consigo levou apenas alguns objetos como recordação de um espaço no qual entrara quando tinha sete anos de idade. A sua mudança dá-se para o Real Colégio Ursulino das Chagas, instalado no extinto Colégio de S. José dos Marianos.
Colégio de S. José dos Marianos, atual Hospital Militar
O edifício conventual patenteia uma arquitetura modesta, bem ao espírito dos Eremitas de Santo Agostinho, valorizando a sua fachada dois pórticos que, entretanto, foram retirados e que hoje estão, respetivamente, na Igreja de S. João de Almedina
Pórtico do Convento de Santa Ana, aplicado na Igreja de S. João de Almedina. Imagem acedida em: https://www.bing.com/images/search?view=detailV2&mediaurl=https%3A%2F%2Fimages...
e na fachada do Museu Machado de Castro.
Pórtico do Convento de Santa Ana, aplicado na entrada do Museu Nacional Machado de Castro. Imagem acedida em: https://www.bing.com/images/search?view=detailV2&mediaurl=https …
De estrutura quadrangular, desenvolvida em torno de dois claustros e de dois pátios internos, na sua primitiva construção, no piso térreo encontrava-se a entrada para a Igreja e para o pátio das hospedarias, a roda e as grades, o refeitório, a cozinha e a casa da botica. Existiam outras dependências: casas para criados, celeiro, forno, duas arrecadações e a cerca amuralhada que abrangia a entrada do Penedo da Saudade.
No primeiro andar situavam-se os dormitórios, a casa do noviciado e as enfermarias.
Sousa, D. Comer e curar no Convento de Santa Ana de Coimbra (1859 a 1871). Texto acedido em: https://www.academia.edu/116755957/Comer_e_curar_no_Convento_de_Santa_Ana_de_Coimbra_1859_a_1871_?email_work_card=title
Doces e produtos retirados dos «Livros de Receita e Despesa» dos Conventos de Sandelgas e de Sant’Ana
Doces: Abóbora retalhada; Aletria; Amêndoas; Arroz de leite; Arroz doce; Arrufadas; Biscoitos de manteiga; Bolo de Páscoa; Bolo de São Nicolau; Bolos de Santa’Ana; Bolos e bolinhos dos Santos; Bolos secos; Broa doce da Assunção; Caramelos; Doces de cabaço, de chila, de pera ou de ginjas; Doces e bolos do Natal; Esquecidos; Folares; Manjar branco; Marmelada; Pães-de-leite; Pastéis do Entrudo; Sonhos.
Produtos: Açúcar; Açúcar fino; Água de flor de laranjeira; Amêndoas; Arroz; Canela; Chocolate; Cidra; Cravo; Farinha; Leite; Manteiga; Mel; Ovos; Queijos; Trigo de Soure; Trigo galego
…
Do núcleo que se segue, composto por 30 receitas pertença de famílias antigas de Coimbra e de alguns grupos etnográficos, considerámos também a receita do pão-de-ló de Coimbra, que registámos no núcleo de Coleções particulares Dr. João Jardim de Vilhena, existente no Arquivo da Universidade de Coimbra. Recorde-se que este afamado bolo surge já referido em um documento do século XVIII, intitulado «Suplicio dos Doces», da autoria do padre jesuíta Silvestre Aranha. Nesta rábula satírica, os doces de Coimbra são condenados num tribunal académico pelo mal que faziam aos estudantes. O primeiro a ser chamado foi o pão-de-ló, entrando bem fofo e vestido de amarelo gemado. Face às acusações foi condenado a morrer afogado em vinho.
As 30 receitas acima referidas são as seguintes:
Arroz Doce; Arrufadas de Coimbra I e II; Bolachas de frade; Barriga de freira I e II; Bolos de Amor; Charcada de Coimbra; Doce de laranja; Doces de ovos; Esquecidos; Extrato de Marrasquino para licor; Licor de Rosas; Licor de Canela; Manjar branco de Coimbra I e II; Matrafões; Papos de Anjo; Pastéis de Santa Clara I, II e III; Pão-de-ló de Coimbra; Pingos da tocha; Pudim de Ovos; Pudim de limão; Receita para fazer pudim; Sopa dourada; Sonhos; Suplicas; Talhadas de príncipe.
Sousa, D. F. F. 2013?. Arte Doceira de Coimbra. Conventos e Tradições. Receituários (séculos XVII-XX). Sintra, Colares Editora, pg. 59, 97 a 113
O esplendor da doçaria conventual em Portugal terá ocorrido em meados do século XV já que, foi neste século, que o açúcar entrou na tradição gastronómica dos conventos. Até esta altura, o principal adoçante era o mel, sendo o açúcar usado como componente na confeção de mezinhas e medicamentos.
…
“… Nos conventos só a abadessa e a madre responsável pelo economato e cozinha tinham possibilidade de escrever as receitas em livros que estavam sob a sua guarda e que não podiam ser consultados por mais ninguém”.
É certo, porém, que estes princípios nem sempre foram seguidos, pelo que encontramos, para a mesma iguaria, variadas receitas consoante a região e o convento de origem. É o caso, entre outros, do leite-creme, do pudim da abadessa, da barriga de freira, da charcada, dos ovos reais, das trouxas-de-ovos, do arroz de leite, do arroz doce, do toucinho-do-céu, da marmelada, das compotas de frutas.
De referir, ainda, que a nomenclatura de alguns doces é comum, não só, a conventos de outras regiões do nosso país, como também de outros países. Na vizinha Espanha existem algumas similitudes, por exemplo, com os pastéis e biscoitos de Santa Clara, os melindres, os suspiros, o arroz de leite, o toucinho-do-céu ou com o manjar branco. Curiosamente, ao lermos «Zorro o começo da lenda» de Isabel Allende, deparamo-nos com o herói a deliciar-se com o manjar branco, numa altura em que se encontrava em Barcelona, a estudar.
… Com algumas limitações, consegue-se reunir um curioso manancial de informações possibilitando delinear um pouco da história dos conventos de Coimbra, onde floresceu a doçaria, a par de algumas práticas e tradições ligadas a esta atividade. Referimo-nos aos Mosteiro de Santa Clara e de Santa Maria de Celas e aos Conventos de Sant’Ana e Sandelgas.
…
Relatemos, a propósito, a oferta de “marmelada” e de “pêssegos cobertos de Celas de Coimbra”, bem como ameixas de Santa Clara que, em 1652, as freiras destes Mosteiros fizeram ao rei D. João IV … Para o mesmo período também as religiosas de Celas enviaram ao Abade de Alcobaça um presente que incluía as famosas tigeladas.
Sousa, D. F. F. 2013?. Arte Doceira de Coimbra. Conventos e Tradições. Receituários (séculos XVII-XX). Sintra, Colares Editora, pg. 14, 16, 17
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.