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Os seguidores da regra instituída por São Francisco entraram na cidade de Coimbra em 1217, fixando-se, inicialmente, nas proximidades da pequena ermida de Santo Antão, numa circunscrição que podemos situar na atual igreja de Santo António dos Olivais.
O levantamento de instalações próprias iniciou-se 30 anos depois, a partir da edificação do complexo conventual junto à ponte, na margem esquerda do Mondego, próximo do hodierno estádio universitário. Mais tarde, em 1314, terá como vizinhança a morada das clarissas conimbricenses que professavam a mesma regra.
Se a intervenção do infante D. Pedro, já em 1247, nos parece fundamental no impulso dado à fundação e respetiva ereção do convento franciscano, os contributos monetários deixados, em testamento, pela sua irmã D. Constança Sanches (falecida em 1269), auxiliaram na continuação da referida empresa. Em 20 de janeiro de 1362, a igreja foi sagrada por D. Vasco, antigo arcebispo de Toledo, assumindo, à época, o cargo de administrador da Diocese conimbricense.
A austera vida quotidiana presente no medievo convento de São Francisco da Ponte contou, desde cedo, com as várias intempéries trazidas pelo Mondego, entre o assoreamento do leito e as consequentes inundações das margens. Da representação gráfica de Coimbra de George Hoefnagel, datada de 1581, transparecem tais dificuldades, uma vez que as águas ladeiam, já com alguma perigosidade, o seu edifício, bem como o análogo cercano pertencente às clarissas.
Na mesma fonte documental são visíveis os resultados nefastos das investidas fluviais, através da representação do mosteiro de Santa Ana - morada das cónegas regrantes de Santo Agostinho - já em ruínas, totalmente cercado por água, uma autêntica ilha no leito do Mondego.
Gravura da cidade de Coimbra nos finais do séc. XVI… George Hoefnagel
O abandono efetivo das instalações franciscanas mediévas ocorreu nos últimos anos do século XVI. Na centúria seguinte, mais propriamente a 2 de maio de 1602, lançou-se a primeira pedra para a edificação de um novo complexo conventual, nos terrenos na margem esquerda do rio, em local mais defensável das suas investidas
… Graças às esmolas recolhidas pelos fiéis, a construção do espaço foi avante, permitindo, já a 29 de novembro de 1609, a passagem dos religiosos para as novas instalações, ainda em fase de edificação
Epígrafe que invoca a construção do novo convento de Sâo Francisco (foto de António Cal Gonçalves), pg. 66
Em termos estético-estilísticos, podemos enquadrar a nova construção conventual nos cânones estéticos do maneirismo, bem presentes na fachada do edifício, de cuja descrição se encarregou o historiador de arte António Nogueira Gonçalves nos seguintes modos: “A frontaria da igreja, grande mas de simples composição de pilastras, divide-se em três zonas: a baixa, com os cinco arcos do átrio; a das janelas, mais estreita, acolitada de dois torreões cheios, terminados em obeliscos; a terminal, só com o grande nicho, onde se encontra uma fraca escultura da Senhora da Conceição, acompanhado de duas outras menores e independentes, S. Francisco e outro santo da Ordem [Santo Antônio]. A sineira fica recuada da linha da fachada; mostra uma ventana grande e, como apenso, uma outra muito menor, para sineta".
O programa estabelecido para o interior da igreja consubstanciou-se numa nave de grandes dimensões, ladeada por três capelas laterais em cada lado, com ligação à zona conventual no lado da Epístola, localizando-se ainda, sobre o nártex, um coro alto que detinha passagem para os espaços privados dos frades franciscanos.
Fachada principal do convento de São Francsco (foto de António Cal Gonçalves), pg. 67
Importa, de igual modo, compreender as restantes dependências que ladeavam a igreja, insertas numa fachada de três filas de janelas colocadas de modo simétrico. Neste quadrante encontram-se a casa do capítulo, a livraria (ou biblioteca), oficinas, os corredores dos dormitórios e respetivas celas, o claustro e nas suas proximidades outras demarcações de intuito doméstico, identificadas como sendo a cozinha, a dispensa, o ante-refeitório, o lavabo e o refeitório.
Na cerca do convento instalou-se uma pequena ermida, provavelmente dedicada a São João Batista, cuja datação surge marcada na entrada com o ano de 1624. Ainda no exterior, desta vez no adro de acesso à igreja, situou-se um cruzeiro datado da mesma centúria que a edificação do convento, embora, por razões de alteração do trajeto viário e, mais tarde, do foro estritamente funcional – uma vez que se achava implementado à entrada da fábrica -, este fosse apeado do local primitivo.
A ocupação dos espaços conventuais pelos frades franciscanos foi interrompida abruptamente pela lei da extinção das ordens religiosas, assinada por Joaquim António de Aguiar, em 30 de maio de 1834. Antes mesmo da referida data que modificou, sobremaneira, a vida dos seguidores da regra monástica assentes por todo o país e, em particular, o contexto religioso da própria cidade de Coimbra, não deverão ser esquecidas as vicissitudes que ocorreram no complexo conventual nos inícios de Oitocentos, sendo ocupado pelas tropas gaulesas - durante as invasões francesas a Portugal (1807-1811) -, que dele improvisaram um hospital de campanha militar.
Descobertas arqueológicas recentes confirmam a presença do referido contingente, uma vez que se exumaram, em valas comuns, cerca de 600 indivíduos do sexo masculino, cujos vestígios da sua indumentária nos reportam indubitavelmente para um contexto militar. Alguns relatos da época afiançam que foi a própria população conimbricense responsável por tais assassinatos, uma vez que após a saída para sul dos soldados liderados por André Masséna, os feridos da Batalha do Buçaco foram deixados nos aludidos hospitais, à mercê da fúria da população. Tais episódios da história da cidade ainda não se encontram devidamente esclarecidos, revestindo-se mais de "sombras" do que de "luzes", faltando ainda compreender a situação dos próprios frades franciscanos perante a ocupação do seu locus matricial.
Com a passagem dos bens religiosos das casas masculinas para o Estado, através do já referido decreto de 1834, o convento de São Francisco viveu tempos novamente tumultuosos, com a saída definitiva dos seus ocupantes, sujeitando-se, num período inicial, ao abandono e à rapacidade. Deste modo, o ciclo primordial fechou-se e um novo se abriu, onde o murmúrio das orações e de vida em comum ditada por uma regra será substituído pelos sons industriais das máquinas e dos trabalhadores.
Freitas, D. M., Meunier, P.P. e Mendes, J. A. (Cordenação e Prefácio). 2019. O Fio da Memória. Fábrica de Janfícios de Santa Clara de Coimbra. 1888.1994. S/loc, s/ed.Pg. 66-70
No passado dia 2, publiquei uma entrada com o título “Coimbra: Fábrica de Lanifícios de Santa Clara 2” e, relacionada com ela, um leitor questionou-me no sentido de saber que estrutura é aquela que se vê à frente do convento … seria alguma capela de alminhas/via sacra como existe na ladeira que desce de Sta. Clara-a-Nova?
Referia-se ao edifício quadrangular que se visualiza na fotografia então publicada.
Complexo industrial da Fábrica de Lanifícios em Santa Clara. Finais da década de 70 do século. Fotografia do arquivo particular de Pedro Planas Meunier, acedida, em https://www.publico.pt/2019/07/08/local/noticia/ascensao-queda-fabrica-coimbra-1878945
Dessa estrutura, a partir de uma outra fotografia, obtivemos o seguinte pormenor que a mostra numa posição frontal.
Presumível capela no antigo Rossio de Santa Clara, hoje Praça das Cortes (pormenor)
Col. Carlos Ferrão
Respondi que, embora ainda me lembrasse do edifício, nada sabia sobre o mesmo, razão pela qual iria tentar obter algumas informações.
A primeira ajuda veio-me de Carlos Ferrão que disponibilizou boa parte das fotografias utilizadas para ilustrar esta entrada e suscitou várias hipóteses referidas mais à frente.
Uma vez na posse das fotografias pedimos uma opinião a Nelson Correia Borges que nos adiantou o seguinte parecer: Relaciono essa construção com os torreões que existem no terreiro da nossa antiga escola [a Brotero, atual Jaime Cortesão], com um que ainda está a meio da Av. Sá da Bandeira e mesmo com os da entrada no jardim de Santa Cruz.
Antigo torreão da cerca do Mosteiro de Santa Cruz, localizado na Av. Sá da Bandeira
Imagem do Google Maps
Numa das fotos vê-se bem o cuidado tratamento que foi dado ao lintel da porta e ao óculo superior, pelo que não tenho dúvida que a construção será bem anterior à Fábrica. Estes elementos parecem poder ser datados da segunda metade do século XVIII. Para o que serviria? Inclino-me para uma finalidade de tipo religioso e poderia ter albergado o cruzeiro viário referido pelo Prof. Nogueira Gonçalves. É evidente que teve intervenção posterior, como se vê pelas janelas laterais que se detetam em fotografias. Trata-se, no entanto, de mera hipótese de trabalho.
Perante esta pista, guiados pela mão de Regina Anacleto, chegamos ao Inventário Artístico de Portugal. Cidade de Coimbra e a um texto de Nogueira Gonçalves.
O primeiro, o Inventário, descreve o local, dizendo que dava acesso à Igreja do Convento de S. Francisco uma escadaria dupla, paralela ao adro, existindo uma grande cruz no muro em posição medial.
Na estrada, havia um cruzeiro do século XVII, que pela modificação viária, ficou metido na entrada da fábrica. (In: Correia, V., Gonçalves, A. N. Inventário Artístico de Portugal – Cidade de Coimbra. Lisboa, 1947, pg. 91).
Edifício inserido na entrada da fábrica
DGARQ - Centro Português de Fotografia (Estúdios Tavares da Fonseca), pormenor
O segundo, de Nogueira Gonçalves, diz-nos que A região coimbrã teve predileção por certa variante de cruzei¬ros, aquela em que a cruz se abriga num templete, formado de quatro colunas e suportam cobertura hemisférica ou piramidal.
Na própria cidade levantaram se alguns.
A piedade que os ergueu foi os melhorando pelo tempo fora ordinariamente seguindo as seguintes fases.
Primeiramente deu se lhes uma lanterna ou lâmpada e uma caixa de esmolas. Fecharam se lhes depois três lados, por meio de paredes, e no quarto colocou se uma porta com gradeamento de ferro; valorizaram se as paredes internas com diversos reves¬timentos; dotaram se, nalguns casos, de altar. O santuariozinho completou se frequentemente com um corpo de capela, ou mes-mo, amparado de maior favor, foi substituído por uma autênti¬ca capela ampla. (In: A. Nogueira Gonçalves. Colaboração em publicações periódicas. Coordenação de Regina Anacleto e Nelson Correia Borges. 2019. Coimbra, Câmara Municipal, I vol., pg.231)
Foram estes textos que nos levaram a eleger o título da entrada; contudo, eles não nos dão a certeza de que, inicialmente, teria sido essa a finalidade do edifício em apreço.
Como referimos, também batemos à porta de Carlos Ferrão que analisou as possíveis e diversificadas utilizações da estrutura depois da extinção das ordens religiosas e, consequentemente do convento, concluindo:
Independente do que teria sido antes, nos anos 20 do século passado, a estrutura, é apontada como sendo um Posto de Transformação (PT) de eletricidade da rede publica ligado à Fábrica de Santa Clara. Posto que era bidirecional, recebendo e injetando energia elétrica na rede pública.
Outra imagem do edifício
Col. Carlos Ferrão
Importa recordar que em Coimbra, existiram 21 centrais elétricas, todas termoelétricas. Uma de serviço público, as outras de serviço particular como a de Santa Clara, da empresa Planas & Cª que funcionou entre 1942 e 1947, com uma potência de 144 kW.
A fábrica por ser também produtora, era vendedora e compradora de energia à Câmara Municipal.
Depois de exploradas estas pistas concluímos que algo se adiantou, embora as dúvidas continuem a persistir.
Decorre daí o facto de serem bem-vindas outras informações passíveis de continuar a aclarar o assunto.
Rodrigues Costa
Os esparsos registos contabilísticos que chegaram até nós reportam-se, sobretudo, aos anos de 1960 - em particular a 1961 e a 1969 -, permitindo-nos, deste modo, certificar a situação financeira da firma e, ao mesmo tempo, compreender as decisões tomadas no início da década seguinte. O valor total da rubrica Balanço de 1961 - calculado a 31 de dezembro do referido ano - fixou-se em 20.590.641$73, onde se inclui o lucro geral do exercício assente em 26461$46.
Logotipo de Planas & C.ª. 1967. (APPM), pg. 54
… Na comparação possível com os valores registados em 1969, é notória a diminuição significativa do valor da unidade industrial, uma vez que o Balanço se fixou em 1 780 450$98, com a conta Ganhos e Perdas a registar um prejuízo de 55 793$75 … A solvabilidade da Fábrica de Lanifícios de Santa Clara encontrava-se comprometida e urgia uma tomada de posição por parte da gerência.
A crise não se cingiu somente à unidade conimbricense e deverá ser englobada num todo nacional e internacional do referido sector, uma vez que a massificação do pronto-a-vestir e a emergência das fábricas de confeção tornaram, de certo modo, obsoletos os métodos de negócio baseados, sobretudo, na venda de fazendas a grandes armazéns.
A alteração estrutural do mercado dos lanifícios já se notara nos finais dos anos de 1950 e tornou-se irreversivelmente mais forte na década seguinte.
...Tal como os artesãos que ajudara a eliminar, a Fábrica de Lanifícios de Santa Clara ia ser obrigada a reformular a sua forma de trabalho para produzir mais, mais depressa e mais barato, para tentar responder à solicitação de um mercado cada vez mais competitivo e menos sensível às simples gradações de cinzento de uma flanela".
A fundação, oficializada em 30 de Janeiro de 1970, da Dislan, de Lanifícios Santa Clara, Ld.", como unidade integrada na Planas & C.", tornou-se a resposta mais visível e direta, ainda que manifestamente tardia, face às novas exigências do mercado e dos consumidores.
Logotipo de Dislan, 1971, (APPM), pg. 56
O seu tempo de vida foi manifestamente curto, uma vez que os "novos tempos" e as "novas vontades" trouxeram mudanças substâncias na vida política, económica e social do país.
Logotipo da Planas & C.ª, 1974 (APPM), pg. 57
… A "Revolução dos Cravos", iniciada na madrugada de 25 de Abril de 1974, terminou com 41 anos de Estado Novo e lançou as bases para a instituição de um novo contexto político sedimentado numa democracia plural e representativa.
… A instabilidade vivida afetou igualmente as pequenas e médias empresas do foro privado, como foi o caso paradigmático da Planas & C.ª, que não conseguiu colher os frutos da reestruturação efetuada anos antes, sobretudo com a entrada em funcionamento da Dislan, Ld.". Num extenso ofício enviado ao Ministério do Trabalho, de 15 de Junho de 1974, a unidade fabril conimbricense expõe, nos seguintes moldes, as dificuldades de solvabilidade então vividas: «Actualmente, e devido à conjuntura económica nacional, aliado aos grandes investimentos efectuados nas nossas empresas, estamos a viver uma tal dificuldade de sobrevivência, que a nossa situação é muito grave e crítica».
… o processo de recuperação e dinamização da empresa, elaborado por George Meunier e com a anuência dos principais credores … não produziu qualquer efeito capaz de anular as extremas dificuldades financeiras da firma e a sua falência tornou-se um dado certo e irreversível.
Ainda assim, verificou-se, da parte da comissão de trabalhadores, a tentativa de reabilitar a unidade industrial através da criação de uma cooperativa, registada com o nome de Clarcoop - Tecidos e Confeções Santa Clara, SCRL, acordando, em 1978, com o administrador da massa falida da Planas & C.", o aluguer do espaço sito no antigo convento de São Francisco e a utilização das máquinas, utensílios e móveis existentes, de modo a prosseguirem com a atividade de fabrico de lanifícios e de confeção de vestuário masculino!".
Logotipo da Clarcoop. 1979 (APPM), pg. 59
A citada firma trabalhou até finais de 1994 e encontrou-se oficialmente em regime de laboração suspensa já no ano seguinte, terminando, deste modo, a existência de 106 anos da indústria de lanifícios no lugar do antigo Rossio de Santa Clara.
Freitas, D. M., Meunier, P.P. e Mendes, J. A. (Cordenação e Prefácio). 2019. O Fio da Memória. Fábrica de Janfícios de Santa Clara de Coimbra. 1888.1994. S/loc, s/ed.Pg. 64-70
A notícia da nova tentativa de criar uma unidade de lanifícios no antigo convento de Sâo Francisco da Ponte foi divulgada com regozijo pelo periódico «O Conimbricense», no dia 17 de março de 1888, invocando a oportunidade criada pela junção de «tres activos e habeis industriaes, todos de Sadadell, provincia de Catalunha, no visinho reino».
… A escritura de constituição da sociedade de comércio e indústria Peig, Planas & C.ª foi lavrada, em 24 de julho de 1888 … apresentando como finalidade «a fiação e manufactura de toda a espécie de tecidos de lã e estambre no edifício de São Francisco da Ponte».
... O período de montagem da estrutura fabril iniciou-se logo em abril de 1888, com a vinda de máquinas a vapor, caldeiras e teares mecânicos do estrangeiro, que, depois de montados nas salas do antigo complexo conventual, foram alvo de um período de testes para aferir o seu correto funcionamento, Finalmente, no dia 7 de dezembro, o periódico O Conimbricense anuncia «que se acha em plena laboração a fabrica de lanificios dos srs. Peig, Planas & C.ª, no edifício de S. Francisco além, da ponte. Estão trabalhando os differentes teares, fiações e cardas, e em geral todos os machinismos. Ainda bem que vemos em Coimbra a funccionar uma importante fabrica de lanificios, que pode vir a ser um forte incentivo para a creação de outras».
Pessoal da Fábrica em visita à Exposição Têxtil, no Porto. Fotografia de Lara Seixo Rodrigues, acedido em https://www.acabra.pt/2019/03/convento-sao-francisco-aborda-memorias-a-cores/
… Na aproximação da data comemorativa dos 50 anos de atividade (1938), os responsáveis pela empresa relembraram, em comunicado, a odisseia percorrida até então, enaltecendo a papel fundamental daqueles que nela labutaram e, em particular, as diligências iniciais dos sócios fundadores: «Se atendermos à vida difícil que têm atravessado as realizações industriaes portuguesas, particularmente nos lanifícios, o cincoentenário da Fábrica de Coimbra representa uma invulgar afirmação do valor conjunto dos seus dirigentes e dirigidos, pois todos se esforçaram atravez dos anos nem sempre fáceis e das circunstâncias quasi nunca propícias, por elevar sem descanso o progresso e o prestígio deste estabelecimento fabril».
… As mortes de Jaime Castanhinha Dória, em 9 de junho de 1956 e, no ano seguinte, de Vitorino Planas Dória (30 de junho) provocaram alterações significativas na direção da unidade fabril, a que se juntou o afastamento total de Luís Elias Casanovas, por já antever as dificuldades que o futuro dos lanifícios em Portugal, e da fábrica de Santa Clara em particular, teria com a emergência das unidades de confeção e do pronto-a-vestir. Entre saídas e decessos, podemos afirmar que se fechou um ciclo na gerência do estabelecimento fabril. Os novos tempos trarão novos donos, selecionados, uma vez mais, no seio familiar.
Complexo industrial da Fábrica de Lanifícios em Santa Clara. Finais da década de 70 do século. Fotografia do arquivo particular de Pedro Planas Meunier, acedida, em https://www.publico.pt/2019/07/08/local/noticia/ascensao-queda-fabrica-coimbra-1878945
… Após o período fatídico de sucessivos falecimentos, a sociedade concentrou-se nas mãos dos herdeiros de Vitorino Planas Dória, dividindo-se pelas suas filhas Maria Irene Dória de Aguiar Planas Leitão, Maria Emília Dória de Aguiar Planas Raposo e Maria Vitorino Dória de Aguiar Planas Meunier, casada com o engenheiro George Greenwood Meunier (1926-1996). Este último tomará o comando da gestão da unidade fabril e, a 14 de dezembro de 1962, ascendeu ao estatuto de sócio a partir da compra das quota-partes pertencentes às irmãs da sua esposa.
Freitas, D. M., Meunier, P.P. e Mendes, J. A. (Cordenação e Prefácio). 2019. O Fio da Memória. Fábrica de Janfícios de Santa Clara de Coimbra. 1888.1994. S/loc, s/ed. Pg. 37-59
Fábrica de Lanifícios de Santa Clara, vista aérea das instalações
A Fábrica de Lanifícios de Santa Clara apresenta-se como referência máxima do sector têxtil num polo citadino [de Coimbra) sem grandes tradições no referido do ramo, cujo período anterior à firma em evidência se pautou sobretudo, pelo amadorismo das confeções caseiras dos teares manuais e por tentativas de organização de módulos de produção de tecidos dos que não vingaram no tempo.
Fábrica de Lanifícios de Santa Clara, publicidade
Neste último aspeto, atenda-se, como exemplo, à fábrica de tecidos da Rua de João Cabreira, fundada nos finais da centúria de Setecentos pelos empresários Manuel Fernandes e Guimarães, Manuel Fernandes da Costa e António Machado Pinto, ficando famosa pelos seus damascos «que se tornaram notáveis pelo gosto dos seus lavores e pelo ouro que entrava em muitos», segundo a apreciação do jornalista conimbricense Joaquim Martins de Carvalho.
Os mesmos negociantes fundaram, na cidade, outra unidade de produção de tecidos de algodão em vistosas instalações, uma vez que os relatos asseveram a existência na loja de materiais nobres como o bronze, o aço e madeiras do Brasil. O fornecimento da matéria-prima (fio de algodão) proveio de uma fábrica Tomar; de onde, igualmente, chegaram, para ocuparem um lugar no corpo de funcionários, Bernardo Ferreira de Brito, Paulo José da Silva Neves e Pedro Espingardeiro, epitetados de “habeis artistas”. Em termos de equipamento para produção, o citado espaço deteve 12 teares, cada um com 100 fusos, resultando num tecido de boa qualidade, «não obstante o motor ser de trabalho manual, e por isso sem a regularidade precisa; mas tudo venceu o machinista com a sua rara habilidade».
As causas subjacentes ao definhamentoe respetivo fecho dos dois espaços remetem-se para o roubo de uma porção significativa de fazenda por parte de um familiar dos sócios, bem como a instabilidade proveniente das invasões francesas e a abertura do mercado português aos produtos provindos da Inglaterra, numa consequência evidente do Tratado de Comércio e Navegação assinado em 1810.
Invoque-se, de igual modo, a importância da tentativa de implantação, já em 1875, da Fábrica de Fiação e Tecidos de Coimbra, uma vez que o objeto do presente estudo irá aproveitar as bases materiais deixadas por uma firma que não conseguiu estabelecer-se de modo definitivo e cujo projeto não deixou de espelhar um ímpeto de grandeza que trouxe em si o gérmen da própria derrocada. Se os primeiros tempos nos parecem auspiciosos, dada a grande procura na subscrição do capital social fixado em 150 000$000 réis – divididos em 1500 ações de 10$000 réis cada uma –, o conhecimento, por parte da opinião pública, dos detalhes da compra do convento de São Francisco da Ponte pela quantia, por muitos considerada exorbitante, de 30 000$000 réis, gerou a fuga do investimento inicial através da desistência de muitos dos subscritores.
«valente canudo que lá se ostenta altivo e que devisamos de diferentes pontos da cidade»
Apesar do citado revés, os membros da direção deram continuidade ao projeto, a partir da transformação do complexo conventual em unidade fabril, acrescentando ao edifício uma chaminé industrial, descrita pelo periódico A Voz do Artista como um «valente canudo que lá se ostenta altivo e que devisamos de diferentes pontos da cidade».
Freitas, D. M., Meunier, P.P. e Mendes, J. A. (Cordenação e Prefácio). 2019. O Fio da Memória. Fábrica de Janfícios de Santa Clara de Coimbra. 1888.1994. S/loc, s/ed.Pg. 27-29
A Universidade estabeleceu-se em Coimbra no ano de 1308.
Não é agora difícil a reconstituição dos factos.
A Universidade não dera em Lisboa os resultados que D. Dinis esperava ... A rapaziada distraia-se muito e estudava pouco, por isso o aproveitamento não podia ser grande.
... Para atalhar estes males, e tirar do seu querido Estudo as maiores vantagens, lembrou-se então D. Dinis de criar uma «cidade universitária», um meio especial apropriado ao desenvolvimento das letras e das ciências. No qual se implantasse o Estudo «irradicabiliter», como parte integrante, essencial e característica do seu organismo.
... Olhou para todo o país ... e neste relancear de olhos fixou-se-lhe desde logo a vista numa cidadezinha minúscula mas cheia de encantos, emoldurada num quadro surpreendente de verdura, com recamos e matizes de frutos e de flores, por onde serpeava o mais poético de todos os rios: um quadro esse tão belo, qual a sua viva imaginação de trovador nunca sonhara outro que mais lindo fosse.
Coimbra era a terra portuguesa, que melhores condições reunia para poder ser a cidade universitária.
Situada no centro do país, a sua posição geográfica facilitava à juventude de uma e de outra extremidade de Portugal o virem ao Estudo. O Mondego que lhe corria ao pé, de leito estreito e fundo, ainda não entulhado pelas areias, navegável umas poucas de léguas para o interior, e dando fácil acesso pela foz aos barcos de navegação costeira, que aproveitavam as marés que então se faziam sentir até Coimbra, era uma boa via de comunicação a aproveitar no transporte de géneros e manutenções para a população académica.
A suavidade do clima, que aqui se gozava, muito superior à de hoje, efeitos das grandes florestas que vestiam as montanhas e serranias, próximas ou distantes, que cerravam o horizonte; o encanto desta terra e da sua paisagem, iluminada por uma luz suavíssima, de tons infinitamente variados ; a poesia do seu rio, orlado de belos arvoredos, irrigando campos fertilíssimos e matizados de flores, o que, tudo junto, fez exclamar a um estrangeiro visitante, fr. Vicente Justiniano, geral da ordem de S. Domingos, depois de ter contemplado a cidade e seus arrabaldes - «Vidimus urbem úndique ridentem»; as lendas poéticas, graciosas ou heroicas, a ela vinculadas; as tradições de valor, de virtude, de patriotismo, que entreteciam a sua história gloriosa: todos estes predicados reunidos faziam de Coimbra uma terra eminentemente apta a ser transformada em cidade universitária, onde a juventude encontraria um meio admirável para o estudo das ciências e das letras, para a educação das faculdades intelectuais e afetivas, para formação do caráter.
Pequena, de vida tranquila e pouco movimentada. Esta cidade não continha no seio, como Lisboa, elementos perturbadores, que arrancassem os estudantes às suas lucubrações escolares.
A índole boa, pacífica, ordeira dos habitantes prometia que a conjugação dos dois elementos heterogéneos, o antigo elemento popular, e o elemento universitário que de novo nela se introduzisse, se realizaria naturalmente, sem atritos de gravidade. Escolas havia já aqui, onde se professavam as ciências eclesiásticas com mais ou menos desenvolvimento, na catedral, no mosteiro de S. Cruz, e nos conventos de S. Domingos e de S. Francisco: eram elementos de valor a aproveitar, para complemento da instituição universitária, que até agora, em Lisboa, vegetara pobre e raquítica.
Vasconcelos, A. 1987. Escritos Vários Relativos à Universidade de Coimbra. Reedição preparada por Manuel Augusto Rodrigues. Volume I e II. Coimbra, Arquivo da Universidade de Coimbra, pg. 78-82, do Vol. I
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