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Um leitor deste blogue – que não se identificou – colocou-me a seguinte questão: Um meu tio-avô, enquanto esteve a estudar na UC em 1890-91, viveu na R. da Sofia, n.º 70. Sabe-me dizer se se tratava de algum antigo colégio?
A resposta que lhe posso dar – muito atrasada no tempo, por lapso meu – passa pela afirmativa.
Com efeito, tratava-se do Colégio de S. Miguel que pertencia ao Mosteiro de Santa Cruz e se situava na Rua da Sofia. Ainda sem se encontrar terminado, em 1547, D. João III requisitou o edifício para ali poder instalar o recém-criado Colégio das Artes até que o edifício próprio, em fase de construção na Alta da Cidade, estivesse concluído.
Este imóvel, embora modificado, ainda existe na atualidade e nele, bem como no Colégio de S. Jerónimo que lhe ficava contíguo, funcionou, até 1986, ano em que se transferiu para as novas instalações erguidas lá para as bandas de Celas, o Hospital da Universidade de Coimbra.
O edifício do Colégio de S. Miguel, bem como o vizinho edifício do Colégio de Todos os Santos, no ano de 1566 foram entregues à Inquisição que, para os adaptar aos lamentáveis objetivos da instituição, os transfigurou, levando a cabo obras vultuosas. Mas disso falaremos na próxima entrada.
Para obter mais esclarecimentos sugiro a leitura das entradas aqui publicadas com os títulos:
- Coimbra: A Inquisição e as suas instalações 1 e 2;
- Coimbra: Rua da Sofia e os seus colégios 4
Não posso deixar de se referir um pormenor curioso.
No último andar do edifício número 70 da Rua da Sofia
Edifício da Inquisição frente Sofia
existe esta varanda:
Gradeamento da varanda
No Pátio da Inquisição está o seguinte edifício
Edifício da Inquisição frente pátio
E nele existe esta varanda
Gradeamento da varanda
Como se pode constatar as guardas das varandas são em tudo similares. Pertenciam ao edifício principal da Inquisição que tinha a frente voltada para o chamado Pátio da Inquisição e as traseiras para a Rua da Sofia.
O sanguinolento e ominoso tribunal teve seu começo em Coimbra em 1541 ... principiaram a exercer as suas funções de roubo e infâmia no dia 15 de Outubro do apontado ano. Em 1572 começaram a ocupar os colégios de Todos os Santos e de S. Miguel, na rua da Sofia, onde persistiu aquela mansão tenebrosa durante duzentos e oitenta anos, pois foi abolida por decreto de 31 de Março de 1821.
Planta das instalações da Inquisição
A trinta e um de Maio deste último ano, foram abertas as portas do edifício, e toda agente pode invadi-lo e penetrar nesses calabouços horrivelmente infectos, onde faziam apodrecer os desgraçados, quando não eram conduzidos através dos negros corredores à sala da tortura, para aí serem deslocados os membros na «polé» ou por outro semelhante meio, para lhes rasgarem as carnes com dentes de ferro, para lhes quebrar os ossos das pernas a maço e cunha, para lhes queimar os pés a fogo lento, ou para os conduzir à praça pública, para servirem de espetáculo à multidão embrutecida, ardendo como pinhas inflamadas, à maneira dos cristãos que serviam de fachos para iluminar os banquetes e os jardins do execrável filho da segunda Agripina.
"No quintal do prédio ... situado entre e a Rua da Sofia e o Pátio da Inquisição, ainda hoje existem, do lado norte e parte do nascente ... dois corredores (do antigo edifício), com as arcadas.
A primeira ordem, ou andar de carceres estava ao nível do quintal ... O segundo andar dos carceres foi transformado em dois espaçosos celeiros, ambos com entrada pelo Pátio da Inquisição. Em seguida à casa dos «tratos» havia um outro carcere, mais baixo, para o qual se descia por uma escada. Era de todos o mais escuro e apertado, sem luz, nem ventilação alguma. Passava-lhe por baixo um cano de água, que o conservava em continua humidade. Chamavam-lhe o carcere do «Inferno» ... Os carceres do andar superior eram chamados da «Judia». Segundo as informações dos que em 1826 arremataram o prédio da inquisição havia ali para cima de 100 carceres, distribuídos em dois pavimentos.
Sala dos tratos e argola da polé
A já referida casa dos «tratos» estava colocada no fim de um corredor, tendo 4,44 m de largo, por 4,11 m de fundo. Era de abobada, com cimalha, rosetas e florões pintados, num mesmo gosto dos carceres: isto é, a preto e branco. Nos florões do teto dos carceres achavam-se disfarçadas algumas espreitadeiras, por onde os presos eram vigiados. Contigua à casa dos «tratos», e dividida apenas por um arco de volta redonda, estava outra casa mais pequena, com uma janela gradeada, onde se colocava a mesa dos inquiridores e notário, que assistiam á tortura. No teto desta última casa achavam-se pintadas as conhecidas armas da inquisição.“ (O Conimbricense, n.º 3.967, de 29 de Agosto de 1885).
... O edifício da inquisição da cidade de Coimbra tinha três entradas: pelo Pátio da Inquisição em Montarroio; pelo pátio de S. Miguel que abria sobre a praça de Sansão; e pela porta da Bica, na rua da Sofia.
O Pátio de S: Miguel tinha duas frentes, uma para o largo de Sansão e outra para Rua da Sofia ... Foram neste recinto celebrados alguns autos de fé, e lá se fizeram também muitas publicações das sentenças menos solenes do maldito Ofício.
Figueiredo, A. C. B. 1996. Coimbra Antiga e Moderna. Edição Fac-similada. Coimbra, Livraria Almedina, pg. 28-33
… o Rei (D. João III), concedera aos Crúzios pelo alvará de 16.XI.1547, que conhecido pelo ‘Estudo Geral’, lhes concedia o ensino do latim, do grego, do hebraico, da matemática, da lógica e da filosofia … Em 1555, o Rei, já muito doente, escrevia ao Prior-mor de Santa Cruz, então Dom Francisco de Mendanha, dando-lhe a inesperada ordem:
“mando que entregais esse Colégio das Artes (assim passaram a ser designados São Miguel e Todos os Santos) e o governo dele mui inteiramente ao Padre Diogo Mirão provincial da Companhia de Jesus, o qual assim lho entregareis no primeiro do mez de Outubro …”
… Contra a espoliação os Crúzios reagiam como podiam à autoridade régia, que se entende seria muito pouco.
Mas conhece-se um acontecimento que é paradigmático, e que muito polidamente mostravam ao Rei a sua contrariedade.
Muitos anos antes de ser erigida a Torre sineira de Santa Cruz (que os mais velhos conheceram, a nascer de dentro da torre maior da defesa do Mosteiro, e que se dizia fora a primeira obra levantada quando da fundação do Mosteiro), o conjunto de sinos estava montado na denominada Torre velha dos sinos, na muralha sobranceira ao Mosteiro, e que as obras do Colégio Novo iriam obrigar a demolir.
Entre os seus sinos, um existia denominado ‘sino real’ que somente era tangido quando o Rei estava em Coimbra. Anunciava-se a vinda do Rei à cidade, antes da doença que o vitimou, e os sentidos frades logo resolveram calar aquele sino, retirando-lhe o badalo. Não mais replicou alegremente, até mesmo quando da visita do Dom Sebastião, e passou a ser conhecido pelo ‘sino mouco’.
Quatro séculos após a graça irá repetir-se com a ‘cabra’ da Torre da Universidade, da iniciativa de estudantes de outra era, mas na mesma insubmissos.
Silva, A.C. 1992. A Criação e Levantamento do Colégio da Sapiência (vulgo Colégio Novo). Coimbra, Santa Casa da Misericórdia de Coimbra. Pg. 9 a 11
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