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O historiador Milton Pedro Dias Pacheco publicou em 2013, um interessante estudo intitulado Do aqueduto, das Fontes e das Pontes: a Arquitetura da Água na Coimbra de Quinhentos no qual aborda a temática do abastecimento de água decorrente da chegada à urbe de um significativo número de pessoas docentes, funcionários e discentes.
Desse texto respigamos os excertos que constituem a série de entradas que, a partir da referida obra, elaboramos.
A principal cidade do Mondego, a romana Aeminium convertida pelos Árabes em Qulumriyya e depois rebatizada pelos Cristãos de Coimbra), veio a sofrer grandes transformações materiais e culturais ao longo de toda a centúria de Quinhentos.
Profundamente marcada pelas instituições reais, episcopais e monásticas nos finais da Idade Média, a cidade de Coimbra, nos alvores da Idade Moderna, foi palco de uma séria reforma promovida pela Coroa e efetivada in situ pela casa monástica de Santa Cruz de Coimbra. Se a partir de 1527 D. João III perspetivou a reinstalação do Studium Generale em Coimbra, onde já estanciara por duas vezes no século XIV, foi frei Brás de Braga, o monge hieronimita, tornado prior-mor de Santa Cruz, quem a concretizou a partir da década de 1530.
Fig. 1. Vista da cidade de Coimbra em 1572. In: Civitates Orbis Terrarum, vol. V, 1598. Op. cit., pg. 219
… Junto do Mosteiro de Santa Cruz, casa reformada nos princípios do século XVI, viria assim a constituir-se o primeiro núcleo da rede de colégios … Foi, pois, em torno da Rua de Santa Sofia – a artéria urbana consagrada à Sagrada Sabedoria –, que as diversas Ordens Religiosas nacionais ergueram e sustentaram alguns dos mais importantes colégios, instituições responsáveis pelo contínuo afluxo de estudantes naquela instituição universitária através da administração de um ensino que hoje chamaríamos de preparatório. Junto a este novo eixo urbano, paradigma nacional no planeamento urbano e arquitetónico Quinhentista, também a Coroa decidiu pela construção de uma unidade colegial laica, ainda que a funcionar por um breve período: o Real Colégio das Artes.
…. Mas dentro em breve uma segunda fase construtiva irrompia no casco antigo da cidade em torno do Paço Real da Alcáçova, a mais antiga residência régia portuguesa que se tornaria na principal morada da Sabedoria, pois aqui se instalou a Universidade a partir de 1537. Uma vez mais, os novos modelos arquitetónicos adotados viriam renovar a estética urbana conimbricense, sobretudo, com a presença esmagadora do grande complexo colegial promovido pela Companhia de Jesus.
No final do trabalho ora visitado são apresentadas as Considerações Finais de que destacamos, o que segue.
Poderíamos ter mencionado também muitas outras obras arquitetónicas relacionadas com a distribuição e fornecimento de água à cidade e que seguramente sofreram algumas diversas transformações técnicas, assim como aperfeiçoamentos materiais ao longo de todo o século XVI, mas fomos, em certa medida, obrigados a tratar somente o conjunto mais emblemático.
Sabemos, por exemplo, através das vereações de 21 de Agosto e de 24 de Setembro de 1567, que a edilidade havia planeado uma intervenção de limpeza e reparação da Fonte dos Judeus, noticiada já em 1137;
Fonte Nova ou dos Judeus. In: Planta de Coimbra de Isidoro Emílio Baptista. 1845.
ou que, em 1592, o chafariz de Sansão, junto do Mosteiro de Santa Cruz – conhecido pelas suas águas boas “para amassar o pão e para lavar o rosto porque o faz mais alvo” –, recebera, sobre um pedestal quadrangular, a estátua da personagem bíblica homónima, com cerca de dois metros de altura, da autoria do escultor Manuel Fernandes (séc. XVI).
Outras deixam-nos algumas dúvidas quanto à data da sua execução, como a Fonte da Bica, construída junto do antigo Colégio de São Miguel, no início da Rua da Sofia e onde hoje se ergue o edifício da Caixa Geral de Depósitos.
Mosteiro de Santa Cruz, celeiro e outros. Acervo RA
Ou, noutro caso, a Fonte da Torre de Santa Cruz, erguida no local onde mais tarde se instalou a cadeia comarcã (ficando conhecida desde então como Fonte da Cadeia), cuja água, proveniente das nascentes do Jardim da Sereia, jorravam, pelo menos desde o ano de 1541, da tromba de um elefante.
De igual modo, surgem inúmeras dúvidas quanto à data de construção do mais antigo chafariz da praça de S. Bartolomeu abastecido pelo reservatório da fonte da Sé Velha e identificado no desenho levantado em 1572, mas publicado na obra Civitates Orbis Terrarum em 1598.
Merece ainda especial menção o fontanário central do claustro do Mosteiro de Santa Maria de Celas, fundado por D. Sancha (c.1180-1229), filha de D. Sancho I, para a comunidade da Ordem de Cister, cuja estrutura se assemelha às piscinas batismais utilizadas nos primórdios do Cristianismo.
Claustro de Celas
Através da documentação relativa a esta casa religiosa, sabemos que o claustro recebeu novas obras de revalorização durante o abadessado de D. Maria de Távora (séc. XVI), entre 1541 e 1572. De facto, D. João III oferecera à comunidade, no ano de 1553, um conjunto de capitéis historiados proveniente do edifício dos antigos Estudos Gerais
Pacheco, M. P.D. Do aqueduto, das Fontes e das Pontes: a Arquitetura da Água na Coimbra de Quinhentos. In: História Revista. Revista da Faculdade de História e do Programa de Pós-graduação em História, v. 18, n. 2, p. 217-245, jul. / dez. 2013. Goiânia (Br.). Acedido em: https://www.academia.edu/37539380/DO_AQUEDUTO_DAS_FONTES_E_DAS_PONTES_A_ARQUITETURA_DA_%C3%81GUA_NA_COIMBRA_DE_QUINHENTOS.
… aos Crúzios iria acontecer mais uma surpresa. Morto D. João III, o Cardeal D. Henrique institui em Coimbra o Tribunal do Santo Ofício, ordenando que os seus primeiros inquiridores se alojassem no Mosteiro de Santa Cruz.
… Após a morte do Rei, os Crúzios fizeram chegar à corte reivindicações pedindo a restituição dos Colégios usurpados
… A reivindicação dos Crúzios não teve eco na Corte … É o Cardeal D. Henrique … que em carta de 6 de Outubro de 1565 dá ordem à Companhia de Jesus para largarem os Colégios da Sofia e se mudarem para as novas instalações, na vizinhança da Universidade.
… Para cúmulo de opróbrio os Crúzios, como Ordem rica que era, foram convidados a contribuir com quinhentos cruzados para as despesas com a mudança dos Jesuítas … Naquele convite … dizia … “por no Colégio das escolas velhas com a sua serventia e mais aposentos e casas que cercavam o dito pátio (Pátio de São Miguel, ou da Bica, dada a fonte que ali existia) assim da parte do Mosteiro de Santa Cruz como da Rua de Santa Sofia para cárcere dos penitenciados (pela Inquisição) e outros usos que não podiam escusar e assim todo o mais chão que nestes aposentos havia …”
… estavam incluídos os novos edifícios que entretanto haviam sido construídos para aquele Tribunal, como as celas e salas de tormentos, prisões, e outras semelhantes. Com frente para a Rua da Sofia ainda existe, transformado, um bom edifício com colunatas e gárgulas, onde estiveram os serviços administrativos daquela instituição.
Silva, A.C. 1992. A Criação e Levantamento do Colégio da Sapiência (vulgo Colégio Novo). Coimbra, Santa Casa da Misericórdia de Coimbra. Pg. 13 a 15
… o Rei (D. João III), concedera aos Crúzios pelo alvará de 16.XI.1547, que conhecido pelo ‘Estudo Geral’, lhes concedia o ensino do latim, do grego, do hebraico, da matemática, da lógica e da filosofia … Em 1555, o Rei, já muito doente, escrevia ao Prior-mor de Santa Cruz, então Dom Francisco de Mendanha, dando-lhe a inesperada ordem:
“mando que entregais esse Colégio das Artes (assim passaram a ser designados São Miguel e Todos os Santos) e o governo dele mui inteiramente ao Padre Diogo Mirão provincial da Companhia de Jesus, o qual assim lho entregareis no primeiro do mez de Outubro …”
… Contra a espoliação os Crúzios reagiam como podiam à autoridade régia, que se entende seria muito pouco.
Mas conhece-se um acontecimento que é paradigmático, e que muito polidamente mostravam ao Rei a sua contrariedade.
Muitos anos antes de ser erigida a Torre sineira de Santa Cruz (que os mais velhos conheceram, a nascer de dentro da torre maior da defesa do Mosteiro, e que se dizia fora a primeira obra levantada quando da fundação do Mosteiro), o conjunto de sinos estava montado na denominada Torre velha dos sinos, na muralha sobranceira ao Mosteiro, e que as obras do Colégio Novo iriam obrigar a demolir.
Entre os seus sinos, um existia denominado ‘sino real’ que somente era tangido quando o Rei estava em Coimbra. Anunciava-se a vinda do Rei à cidade, antes da doença que o vitimou, e os sentidos frades logo resolveram calar aquele sino, retirando-lhe o badalo. Não mais replicou alegremente, até mesmo quando da visita do Dom Sebastião, e passou a ser conhecido pelo ‘sino mouco’.
Quatro séculos após a graça irá repetir-se com a ‘cabra’ da Torre da Universidade, da iniciativa de estudantes de outra era, mas na mesma insubmissos.
Silva, A.C. 1992. A Criação e Levantamento do Colégio da Sapiência (vulgo Colégio Novo). Coimbra, Santa Casa da Misericórdia de Coimbra. Pg. 9 a 11
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