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Mas, se a Cidade consolidou um Poeta, a Universidade não formou um Bacharel.
Universidade, Via Latina, in: Passear na Literatura. António Nobre
“Olha... São os Gerais, no intervalo das aulas.
Bateu o quarto. Vê! Vêm saindo das jaulas
Os estudantes, sob o olhar pardo dos lentes.”
«Só — Carta a Manuel»
De novo reprovado, António Nobre sai de Coimbra:
Quando vem Julho e deixo esta cidade,
Batina, Cais, tuberculosos céus,
Vou para o Seixo, para a minha herdade:
Adeus, cavaco e luar! choupos, adeus!
O regresso, em Outubro, é breve. Demora-se o suficiente para tratar de papéis que precisará para se matricular em Paris, na Faculdade de Direito, cujo curso terminará em 1895.
E também para as despedidas. E nesses breves dias instala-se na “sua” Torre de Anto “onde um só homem vivia, que era o Anto encantado, na sua Torre”, e que para sempre ficará ligada ao poeta do “Só”.
Torre de Anto, in: Passear na Literatura. António Nobre
“Mas que surpresa ao despertar: imaginarás o que é a gente abrir o olho, repleto de tanta imagem deste século XIX e deparar encantado com a Idade Média em frente, pelos lados, sobre e sob? Oh, a Torre! Levantei-me entusiasmado e fui abrir as ogivas talhadas nestas pedras milenares e, ao ver toda a Coimbra outonal, essa paisagem religiosa, milagrosa, o Mondego sem água, os choupos, meus queridos corcundas, sem folhas e Vergados pelos anos, — pareceu-me que estava num mundo extinto, todo espiritual, onde só um homem vivia, que era o Anto encantado, na sua Torre.”
«Carta a Alberto de Oliveira, 4 Outubro 1890»
Partia de Coimbra, dizia adeus às margens do Mondego. Mas transportava consigo a saudade.
Coimbra, in: Passear na Literatura. António Nobre
“Que lindas coisas a lendária Coimbra encerra!
Que paisagem lunar que á a mais doce da terra!
Que extraordinárias e medievas raparigas!
E o rio? e as fontes? e as fogueiras? e as cantigas?”
«Só – Carta a Manuel»
Monumento a António Nobre, no Penedo da Saudade, inaugurado em 30 de Outubro de 1939. in: Passear na Literatura. António Nobre
E, muitos anos mais tarde, quando procura em Lausana a cura para o mal que em breve lhe leva a curta vida, evoca, emocionado, a “Coimbra sem par, flor das Cidades”:
"Todas as tardes, vou Léman acima,
(E leve o tempo passa nessas tardes)
A pensar em Coimbra. Que saudades!
Diogo Bernardes deste meigo Lima.
Na solidão, pensar em ti, anima,
Oh Coimbra sem par, flor das Cidades!
Os rapazes tão bons nessas idades
(Antes que a vida ponha a mão em cima)
Alegres cantam nos teus arrabaldes,
Por mais que tire vêm cheios os baldes,
Mar de recordações, poço sem fundo!
Freirinhas de Tentúgal, passos lentos!
É chá com bolos, dentro dos conventos!
Meu Deus! e eu sempre a errar no Mundo!"
Carlos Santarém Andrade
Andrade, C.S. Passear na Literatura. António Nobre. S/d. Coimbra, Câmara Municipal
António Nobre não passa despercebido na Coimbra de então. Os poemas dispersos já publicados, o esguio da sua figura, a palidez do rosto, o singular modo de vestir a capa e batina, fazem-no sobressair de entre os seus pares.
Fotografia do Poeta. In: Passear na Literatura. António Nobre
À mesa do «Lusitano», sede das tertúlias boémias e literárias, naquele século XIX de todos os poetas, vai nascer uma revista, grito de uma geração que quer deixar em páginas impressas a afirmação do seu pensar. E surge assim A «Bohemia Nova», que na sua efemeridade, é a presença de uma nova poesia, que desencadeará um vendaval de apaixonadas discussões literárias.
Imagem acedida em https://almamater.uc.pt/republica/item/65714
O fim do ano escolar aproxima-se, e com ele a deceção dolorosa de um ano perdido, com a “quadrilha” de lentes, nas suas próprias palavras, a negar-lhe a aprovação.
Após as férias, no regresso a Coimbra, António Nobre, no acto da matrícula, dá como morada a “Estrada da Beira”.
Estrada da Beira. In: Passear na Literatura. António Nobre
“Vejo o meu quarto de dormir, todo caiado,
Donde ouvia arrulhar as pombas no telhado;
Oiço o relógio a dar as horas vagamente,
Devagar, devagar, como os ais dum doente;”
«Só — Na Estrada da Beira»
Se aí não vem a viver, ficará para sempre ligado a essa rua pelo grande amor da sua vida, Margarida Lucena, a sua Margareth, que cantou em versos, com o nome de «Purinha»:
«Aquela, que, um dia, mais leve que a bruma,
Toda cheia de Véus, como uma espuma,
O Senhor Padre me dará para mim
E a seus pés, me dirá, toda coroada: Sim!»
E entre os fugazes encontros no Jardim Botânico e as novenas nas Ursulinas, a casa amada na “Estrada da Beira”:
«Vejo o teu Iuar e a ti, tão pura, tão singela,
E vejo-te a sorrir, e vejo-te à janela
Quando eu seguia para as aulas, manhã cedo,
Ansiosa, olhando dentre as folhas do arvoredo,
Olhando sempre até eu me sumir, a olhar,
Que às vezes não me fosse um carro atropelar.»
Durante o ano letivo, mora numa casa que dá, por um lado, para a Rua do Correio (hoje Joaquim António de Aguiar) e por outro, para o Beco da Carqueja, mesmo ao pé “de uma das melhores coisas de Coimbra, a Sé Velha; é uma esplêndida igreja, estilo mourisco, que eu tanto desejaria transportar para a Boa Nova, fazendo dela o tão desejado Torreão”.
Beco da Carqueja, in: Passear na Literatura. António Nobre
“Moro, já sabes, no Beco da Carqueja: beco célebre, a que se refere, na sua História de Portugal, o Oliveira Martins. Aqui, numa casa vizinha (nesta quem sabe?), houve uma associação secreta composta de estudantes e conhecida popularmente pelo “Bando da Carqueja”, cujos fins, atém de políticos olhavam a guerrear os Isentes e aquela Universidade:”
«Carta a Alfredo de Campos, 9 Janeiro 1890»
Beco da Carqueja, in: Passear na Literatura. António Nobre
“Não escrevi e gastei, ou antes estraguei duas folhas de papel: uma por hesitar na preferência das minhas duas adresses— Beco da Carqueja, 114 Correio;
...Queria antes de acabar, falar-te desta República a que os meus companheiros, talvez influenciados pela epidemia-Dandy— chamam Le Château jaune.
«Carta a Alberto de Oliveira, 9 Janeiro 1890»
Das janelas da sua nova casa, espraiando a vista, olha-se o rio, que lhe inspira quadras como esta, que irá entrar no folclore coimbrão:
«Vou encher a bilha e trago-a
Vazia como a levei!
Mondego, qu’é da tua água.
Qu’é dos prantos que eu chorei?»
E lá mais longe, o Choupal, que lhe guia a mão nos versos que compôs:
«O choupo magro e velhinho,
Corcundinha, todo aos nós,
Es tal qual meu avôzinho:
Falta-te apenas a voz.
Fui plantar o teu cabelo
Entre os choupos, no Choupal,
E nasceu, anda lá vê-lo,
Um choupinho tal e qual.
Ó boca dos meus desejos
Onde o padre não pôs sal,
São morangos os teus beijos,
Melhores que os do Choupal!»
Andrade, C.S. Passear na Literatura. António Nobre. S/d. Coimbra, Câmara Municipal
Carlos Santarém Andrade organizou há alguns anos uma série de percursos que intitulou Passear na Literatura, tendo elaborado, para cada um, textos ilustrados que merecem ser relembrados. Recordamos o percurso dedicado a António Nobre.
Passear na Literatura. António Nobre, capa
«Vem a Coimbra. Hás-de gostar, sim meu amigo.
Vamos! Dá-me o teu braço e vem daí comigo.»
Passear na Literatura. António Nobre, pormenor de capa
Passear na Literatura. António Nobre, contracapa
Em Outubro de 1888, após a pacatez das férias, Coimbra retoma o seu bulício característico, com o regresso às aulas e a chegada de novos alunos que vêm frequentar a Universidade. Entre eles está António Nobre, que vem cursar Direito.
Instala-se numa casa junto ao Penedo da Saudade, então fora do perímetro urbano, de cuja janela disfruta a bucólica paisagem a que o Penedo é sobranceiro, cuja amplidão recortada de quintas e olivais contrasta com o estreito emaranhado das ruas da cidade.
“O Penedo da Saudade é, na verdade, o único sítio em que se podia viver: à janela do meu quarto, que dá para as bandas de onde nasce o sol, passo eu infinitos segundos meditando na minha vida que é ainda mais triste do que eu.”
Carta Augusto de Castro, 18 Outubro 1888
As duras praxes estudantis, o tédio das aulas, o rigor universitário, são para o poeta uma amarga experiência:
«Hoje, mais nada tenho que esta
Vida claustral, bacharelálica, funesta,
Numa cidade assim, cheirando, essa indecente,
Por toda a parte, desde a Alta à Baixa, a tente
E ao pôr do Sol, no Cais, contemplando o Mondego,
Honestos bacharéis são postos em sossego
E mal a cabra bala aos ventos os seus ais,
“Speech" de quarto de hora em palavras iguais,
Os tristes bacharéis recolhem às herdades,
Como na sua aldeia, ao baterem as Trindades.»
Mas o fascínio da cidade não o pode deixar indiferente:
«Contudo, em meio desta fútil coimbrice,
Que lindas coisas a lendária Coimbra encerra!
Que paisagem lunar que é a mais doce da Terra!
Que extraordinárias e medievas raparigas!
E o rio? e as fontes? e as fogueiras? e as cantigas?»
E, depois, há ainda os amigos:
«O que, ainda mais, nesta Coimbra de salgueiros
Me vale, são os meus alegres companheiros
De casa. Ao pé deles é sempre meio-dia:
Para isso basta entrar o Mário da Anadia.
Até a morte é branca e a Tristeza vermelha
E riem-se os rasgões desta batina velha!»
E, para quebrar a “vida claustral”, nada como os passeios pelos arrabaldes:
«Manuel, vamos por aí fora
Lavar a alma, furtar beijos, colher flores,
Por esses doces, religiosos arredores,
Que vistos uma vez, ah! não se esquecem mais:
Torres, Condeixa, Santo António dos Olivais,
Lorvão, Cernache, Nazaré, Tentúgal, Celas!
Sítios sem par! onde há paisagens como aquelas?
Santos lugares onde jaz meu coração,
Cada um é para mim uma recordação…»
Andrade, C.S. Passear na Literatura. António Nobre. S/d. Coimbra, Câmara Municipal
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