Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Conclusão do texto de Manuel Campos Coroa sobre Jorge Gomes.
Jorge Gomes começou por ensinar jovens a tocar guitarra na sua casa, mas logo em 1971 foi convidado para integrar um projeto pedagógico de forma mais intensa e estruturada, no edifício das antigas piscinas municipais da cidade, em consequência de mais uma notável iniciativa do Dr. Fernando Mendes Silva, que criou a escola onde o mestre ensinou várias dezenas de alunos de ambos os sexos. Esta iniciativa passou também pela ACM, num esforço alargado de revitalização da música popular de Coimbra.
Em 1978, na sequência do 1º seminário do fado, a Camara Municipal de Coimbra criou a chamada Escola do Chiado, pela mão do Dr. António Rodrigues Costa e coordenação pedagógica de Jorge Gomes, onde também lecionou Fernando Monteiro.
Jorge Gomes e alguns dos primeiros alunos da Escola de Fado do Chiado. Igreja de Santa Cruz, capela de S. Teotónio. 1979
Tozé Moreira, um dos primeiros alunos da Escola de Fado do Chiado. 1979
Jorge Gomes com alunos da Escola de Fado do Chiado. II Seminário do Fado, serenata na Sé Velha. 1979
Esta escola, que funcionou no edifício camarário da rua Ferreira Borges, começou a “produzir” com regularidade uma grande quantidade de jovens guitarristas, violistas e cantores, com muita qualidade, num tempo em que era necessária uma dose reforçada de coragem, pela necessidade de combater uma ideia (errada), que começou a ser estabelecida na cidade, de certo modo, logo no período da crise académica de 1969, mas com um impacto muito maior durante o período revolucionário (PREC), em que tudo o que se relacionasse com guitarras e canto tradicional era considerado reacionário. Os elementos dos grupos que ousavam fazer serenatas de rua, eram frequentemente vítimas de agressão física, ou insultados porque os consideravam saudosistas do Estado Novo.
Os jovens desse período, honra lhes seja feita, nunca tiveram medo e não pararam as atividades. A escola camarária continuaria a funcionar, mudando de instalações para a ladeira do Carmo e mais tarde para o Centro Norton de Matos, sempre coordenada por Jorge Gomes, até que foi abruptamente encerrada, sem que se desse qualquer explicação aos alunos já inscritos, ou mesmo aos monitores. As razões deste encerramento, embora conhecidas, nunca foram frontalmente assumidas pelos responsáveis políticos da época.
No início da década de 80, mestre Jorge Gomes estende a sua atividade, ao sindicato dos Bancários, à escola de música do Colégio de São Teotónio, e também à AAC, mais concretamente à TAUC e à Secção de Fado, onde inicialmente esteve também Fernando Monteiro.
Esta fase, foi a mais produtiva do percurso de Jorge Gomes no ensino da guitarra, da viola e do canto. Preparou ali instrumentistas às centenas e consequentemente, uma quantidade enorme de grupos de canção de Coimbra, com alto nível artístico, que projetaram de uma forma notável todo o esplendor do património musical da academia e da cidade, através de incontáveis espetáculos “Urbi et Orbi”.
Mestre Jorge Gomes é um homem de fortes convicções e personalidade, que se manteve fiel à forma de ensino tradicional da guitarra, com comprovadíssima e incontestável eficácia.
Dono de uma generosidade notável, ensinou tudo o que sabia a todos os alunos que julgou merecedores. Nada lhe dá mais satisfação do que saber que os seus alunos brilham pelo seu mérito, e quanto mais novos forem melhor. Por isso reagiu sempre às tentativas (mais ou menos explícitas) de desvalorização do mérito que pertence aos alunos e decorre da sua própria dedicação, talento e inteligência.
Dedicou a maior parte da sua vida ao ensino da guitarra de Coimbra, motivado unicamente pelo serviço à causa, sem nunca se servir dela em benefício próprio. Foi muitas vezes incompreendido e criticado por quem acha a sua metodologia desadequada face ao ensino formal da música.
Uma personalidade que fez muitos e bons amigos, mas criou, por outro lado, fortes anticorpos e também alguns inimigos, mas nunca deixou de ser fiel a si próprio, Jorge Gomes soube manter uma total Independência face aos poderes instituídos e por isso, nunca foi passível de instrumentalizar.
A intolerância que sempre teve, à introdução de ornamentação instrumental excessiva nos acompanhamentos e de alguns trejeitos no canto, mais próprios de outras regiões do País, levou a que alguns sectores menos cultos da atividade, o acusassem de fundamentalismo e até de ser um anacrónico travão da “evolução” para a modernidade.
É fundamental compreender que a intenção e a força interpretativa da palavra cantada, a emoção da poesia, reforçada com a adequação e a qualidade nos acompanhamentos, é o que tem que passar para quem ouve. Por isso, tudo o que contribua para “distrair” o ouvinte do essencial, é, na estética da canção de Coimbra, totalmente dispensável.
Tocar guitarra e cantar Coimbra, não pode transformar-se em mero exibicionismo circense ou em feiras de vaidade.
Quando o ouvinte consegue abstrair-se das figuras que cantam ou tocam e se centra emocionalmente na mensagem, mais perto estaremos da perfeição.
A evolução da música de matriz coimbrã, acontecerá de forma independente das vontades, das ambições pessoais, das modas ou de simples circunstâncias conjunturais. Apenas o tempo, na sua sabedoria, separará o “Trigo do Joio“ e ditará o que sobrevive no futuro.
Ao que julgo saber, nenhum dos grandes protagonistas da história da canção de Coimbra, trabalhou com a intenção de procurar o estrelato, ou teve sequer consciência durante o processo criativo, da importância que o futuro lhes concedeu.
Mestre Jorge Gomes foi, durante muitas décadas um verdadeiro guardião do património musical popular de Coimbra, muito particularmente da sua guitarra, garantindo através da transmissão oral direta e do ensino tradicional, a sobrevivência de um tesouro cultural inestimável, de uma forma absolutamente excecional.
Os resultados falam por si. Não conheço outra escola que se lhe compare, seja na qualidade ou na quantidade dos intérpretes que produziu.
Encerrou definitivamente a sua atividade de ensino na Secção de Fado da AAC, em março de 2020, por ocasião do confinamento determinado pela pandemia de Covid-19.
Infelizmente, mais do que o fator idade, foi em grande medida o ambiente de facilitismo instalado na cidade e na academia, com uma crescente falta de ética, grande desrespeito pelas exigências técnicas e estéticas, que foram decisivas para que o Mestre não voltasse.
O fenómeno de crescente mercantilização da música de Coimbra, que caminha a passos largos para uma certa “globalização” descaracterizadora, pouco exigente no gosto e no rigor, protagonizada pelos que se servem da arte para obtenção de lucros e/ou notoriedade pessoal a todo o custo, é manifestamente incompatível com os valores morais e éticos, de homens com a verticalidade do Mestre Jorge Gomes.
Na cultura, como na biologia, é imperativo defender a diferença, as especificidades regionais e locais, porque a beleza da arte também reside na diversidade e a Humanidade precisa do belo.
Serão as forças vivas da cidade, capazes de garantir a sobrevivência deste legado cultural, com a indispensável independência face a interesses conjunturais de qualquer natureza? Seremos capazes de defender e preservar este tesouro cultural?
Ficam as perguntas.
Coimbra, 28 de janeiro de 2024
Manuel Campos Coroa
Continuação do texto de Manuel Campos Coroa sobre Jorge Gomes.
Jorge Gomes, persistiu no seu método pedagógico por mais de 5 décadas e nunca deixou morrer em Coimbra o legado de Artur Paredes, que de contrário seria, na minha opinião, mais um génio esquecido no tempo.
Identifica como seus mestres, Fernando Rodrigues (irmão de Flávio), José Rodrigues, bem como os estudantes Octávio Sérgio, Arménio Serrão Assis e Santos, a que se somavam também alguns outros guitarristas com quem convivia.
O instrumento que hoje possui, foi-lhe vendido em 1959 por Octávio Sérgio, que o tinha comprado na casa de Olímpio Medina. É uma Guitarra de Coimbra em pau-santo da Baía, da lavra do mestre guitarreiro João Pedro Grácio Júnior, sua companheira de incontáveis serenatas e gravações, que o acompanhou durante a comissão militar em Angola e que iria mais tarde emprestando a alunos de sucessivas gerações, que ainda não tinham guitarra própria, possibilitando-lhes assim a aprendizagem e o uso em eventos especiais.
Integrou como instrumentista vários grupos de canção de Coimbra, a começar pelo grupo em que se estreou, tocando viola, numa serenata realizada no antigo colégio Camões (à Av. Dias da Silva), acompanhando os guitarristas Manuel Pais e Frias Gonçalves, com Fernando Ermida no canto, até ao Grupo Folclórico de Coimbra, passando também por muitos outros agrupamentos de destaque.
Para referir apenas alguns grupos que Jorge Gomes integrou no seu extenso percurso musical, destaco um com David Leandro, outro com o guitarrista/cantor Manuel Branquinho (com quem gravou em estúdio), mas também com os amigos António Ralha e Manuel Dourado, acompanhando regularmente cantores como Serra Leitão, Raúl Diniz, José Manuel dos Santos, Armando Marta, ou também, de forma pontual, Fernando Rolim, ou Glória Correia, entre muitos outros intérpretes.
Durante vários anos, foi 2º guitarra no grupo liderado por António Pinho Brojo, com Aurélio Reis e Manuel Dourado nas violas, acompanhando o cantor José Mesquita, em espetáculos e gravações de estúdio.
Gravou como violista os discos, Fogueiras de São João I e II, editados pelo Grupo Folclórico de Coimbra,
Grupo Folclórico de Coimbra, com Jorge Gomes na guitarra de Coimbra. Comemorações dos 500 anos da descoberta. do Brasil, junto ao monumento a Pedro Alvares Cabra, em Passo Fundo, Brasil. 2000.
mas também outros editados pela Secção de Fado da AAC, como “Olhar Coimbra”, integrando à guitarra o grupo “Árreum Pórreum” com temas de música futrica ou ainda o disco da Secção de Fado “Coimbra, Baladas Fados e Guitarradas”, em que gravou a peça de sua autoria “Maio de 78“, composta no edifício Chiado em homenagem ao retomar das tradições académicas, que resultou das conclusões extraídas do primeiro seminário do fado, realizado naquela data no auditório da reitoria da UC.
Jorge Gomes com alunos da Secção de Fado da AAC. Abril de 2005.
Jorge Gomes com alunos da Secção de Fado da AAC, no café de Santa Cruz. Inícios dos anos 2000.
A sua dimensão pedagógica, é sem sombra de dúvida a que mais se destaca, pelo enorme talento natural para a transmissão de conhecimentos, mas essencialmente porque ensinou sempre de forma dedicada, com um visível gosto pessoal e verdadeira vocação, quer a música quer a História, disciplina em que é licenciado pela FLUC e que lecionou durante anos no colégio de S. Teotónio.
Pude testemunhar em frequentes ocasiões, a grande cumplicidade que se estabelece naturalmente com os jovens e adolescentes com quem se relaciona, acrescentando ao trabalho técnico, alguns episódios de sã brincadeira, que contribuem de forma decisiva para o fortalecimento dos laços de amizade para a vida.
Os seus alunos de guitarra, para além da aprendizagem técnica e estética da música de matriz coimbrã, absorveram quase sem dar conta, com frequência à volta de uma mesa de lanche ou refeição, conceitos absolutamente essenciais para a correta compreensão e o indispensável enquadramento histórico-cultural das atividades artísticas, promotores de uma formação de base sólida, que estimula de forma decisiva, o sentimento coletivo de pertença.
Mestre Jorge Gomes é, na minha opinião e na de muitas dezenas de cultores, o maior vulto do ensino da guitarra de Coimbra de sempre. Pelo abrangente conhecimento da cultura, da história, pela consciência da grande importância do contributo para a arte, daqueles que foram passando pela cidade em busca de conhecimento e por cá deixaram as mais diversificadas influências e que muito contribuíram para o enriquecimento deste “caldo de cultura” que se chama Coimbra, influenciando de forma muito particular a música, nas suas vertentes académica e futrica, elas próprias, verdadeiramente indissociáveis.
O cerne do ensino de Jorge Gomes na arte de bem tocar a Guitarra de Coimbra, reside na transmissão rigorosa de uma técnica de dedilhação apoiada da mão direita, em que polegar e indicador percutem as cordas utilizando em simultâneo a unha (que não deverá ser demasiado comprida, nem ter forma de palheta) e a polpa dos dedos, ficando estes, ato contínuo, apoiados nas cordas imediatamente adjacentes, quase sempre no uso do polegar e na flexão do indicador, favorecendo desta forma a consistência, a intensidade e a qualidade das notas musicais, o que, aliado à destreza da mão esquerda, contribui de forma decisiva para a qualidade do som extraído da guitarra, que é uma das principais características diferenciadoras no toque da guitarra de Coimbra, em que Jorge Gomes é exímio.
Importa esclarecer, que não foi Jorge Gomes o “inventor” destas técnicas, mas sim Artur Paredes, como se poderá constatar pela leitura da obra do amigo e 2.º guitarra, Dr. Afonso de Sousa: “O canto e a guitarra na década de oiro da Academia de Coimbra (1920-1930)” – Coimbra Editora 1986.
Conclusão na entrada seguinte.
Coimbra, 28 de janeiro de 2024
Manuel Campos Coroa
Conheço Jorge Gomes há largos anos. A sua personalidade assenta em duas vertentes, a de um homem vertical e forte nas suas convicções e um acrisolado amor ao ensino e preservação do Fado de Coimbra. Lembro o tempo em que tantos “meteram a viola no saco” e ele continuar firme e destemido na defesa de uma das razões de ser da sua vida.
È, de inteira justiça, integrar a galeria das Personalidades de Coimbra.
O texto de hoje da autoria de Manuel Campos Coroa, é o primeiro de uma série de três entradas, sobre um percurso de vida ímpar.
Falar sobre o Dr. Jorge Gomes, é falar num bom amigo e mestre, com quem mantenho há várias décadas uma proximidade diária, numa relação que extravasa em muito o universo da Guitarra de Coimbra, mas não existiria sem ela.
Fazê-lo para corresponder a um desafio do Dr. António Rodrigues Costa, transforma estas linhas numa tarefa tão irrecusável quanto difícil, porque apela a um exigente poder de síntese, que confesso não ter.
Jorge Gomes
Não me é possível falar do Mestre, sem um olhar pluridimensional sobre o Homem, o Professor e o Músico, na sua relação afetiva com o universo histórico-cultural da sua Coimbra natal.
Jorge Luiz da Costa Gomes, nasceu em Coimbra no dia 19 de julho de 1941 e cá vive desde sempre, com exceção do período em que cumpriu o serviço militar obrigatório, com passagem por Angola. Mantém uma memória remota notável, com grande capacidade de evocação de factos e personalidades do passado, identificando os protagonistas e acontecimentos com grande clareza.
Viveu a sua infância e adolescência na travessa de Moura e Sá, em Montes Claros, na companhia de seus pais e irmã, de onde posteriormente se mudariam para a rua Verde Pinho.
Foi neste ambiente, onde pontificou a influência familiar, que se forjou Homem de honestidade a toda prova, verdadeiramente desprendido de interesses materiais e convictamente avesso ao elogio da própria personalidade.
Na Escola Primária de Almedina, foi colega de carteira e amigo, do malogrado Fernando Frias Gonçalves, que seria também um talentoso guitarrista com quem partilhava o interesse e a aptidão para a música, em particular para os instrumentos de corda, em que o genial guitarrista Artur Paredes era referência maior.
Fernando Frias Gonçalves na viola, Jorge Godinho e Eduardo Melo na guitarra e José Miguel Batista, no canto. Finais dos anos 60. Imagem acedida em: https://www.facebook.com/photo/?fbid=2040525446055952&set=pcb.2040525472722616
Jorge Gomes, revelou desde jovem uma grande habilidade manual, começando mesmo por fabricar os seus próprios instrumentos, ainda que muito rudimentares, usando para isso (às escondidas), tábuas e fios metálicos, que o pai usava no fabrico de resistências para fogões elétricos. Eram “instrumentos-brinquedo”, que embora muito primários, permitiam já a afinação das “cordas” e a formação de acordes musicais, no que seriam os primeiros passos para mais tarde construir as suas próprias guitarras e sobretudo uma viola toeira de Coimbra, que ofereceu ao Dr. Manuel Louzã Henriques, depois do desaparecimento (em 1981) do guitarreiro Raúl Simões, último construtor e tocador conhecido de violas toeiras, de que já não havia na época qualquer exemplar tocável .
Viola toeira construída por Jorge Gomes, 2003 c.
Esta viola toeira construída por Jorge Gomes, pode ainda hoje ser vista na coleção de instrumentos populares do Dr. Lousã Henriques.
A necessidade de aprender a tocar de forma mais sistematizada a guitarra de Coimbra e o violão de acompanhamento, rapidamente se impôs.
A primeira guitarra que teve, foi-lhe oferecida por uma tia, que, notando o entusiasmo e o talento do rapaz para a música, a decidiu comprar na casa Olímpio Medina, por ocasião da conclusão do ensino primário e ingresso no Liceu.
Só que o Pai, Joaquim Flório Gomes, homem dedicado ao trabalho, eletricista muito solicitado pela sua competência técnica e honestidade, via na guitarra uma grande fonte de distração do filho e pensava que o largo tempo que lhe dedicava, o iria prejudicar no cumprimento das obrigações escolares.
Nestas circunstâncias, não lhe sendo possível treinar em casa, restou a solução de levar o instrumento para casa do amigo Frias Gonçalves, no Tovim, para que este lhe fosse dando uso durante a semana.
Aos fins de semana, principalmente aos sábados de tarde, lá ia o Jorge sempre a correr até ao Tovim, o mais depressa que podia, ausentando-se muitas vezes (sorrateiramente) das atividades desportivas da mocidade portuguesa, para aproveitar também a sua guitarra com o Frias.
Ouviam ambos, repetidamente, nos discos de 78 rpm e nas fitas magnéticas, as variações do ídolo, Artur Paredes, usando “apenas” os ouvidos para tentar descobrir os segredos da execução, tentando aperfeiçoar o mais possível a própria técnica, na busca da maior aproximação possível à excelência interpretativa do Mestre.
Artur Paredes. Acedido em: https://www.bing.com/images/search
Tarefas exigentes e trabalhosas aquelas, em que era preciso distinguir o que era tocado pelo solista (1ª guitarra), do que provinha da guitarra de acompanhamento (2ª guitarra) ou mesmo de cada um dos violões (normalmente 2). É de salientar, que as gravações que normalmente usavam eram de muito baixa qualidade e não dispunham de quaisquer recursos técnicos adicionais.
Devemos ao Jorge Gomes e a alguns outros jovens da mesma geração, o podermos hoje usufruir de verdadeiras obras primas da guitarra de Coimbra, de grande rigor técnico na execução.
Mesmo os jovens do século XXI, que se ora dedicam ao estudo da guitarra e da vasta obra de Artur Paredes e outros autores, recorrem a avançados programas informáticos e aplicações de telemóvel, que possibilitam a rigorosa audição de cada nota, ou de pequenas frases musicais de forma repetida, lenta e sem qualquer desafinação tonal, o que possibilita identificar rigorosamente muitos detalhes e mesmo “erros” de transcrição por vezes apontados ao mestre, mas que eram virtualmente impossíveis de perceber sem estes recursos.
Coimbra, 28 de janeiro de 2024
Manuel Campos Coroa
Continua na entrada da próxima 3.ª feira.
No início desta pequena série de três entradas, dedicadas à viola toeira de Coimbra, escrevemos que a mesma seria terminada recordando “o que, em 1983, quando era Vereador da Cultura da Câmara Municipal de Coimbra o saudoso Fausto Correia e eu tinha a honra de chefiar o Departamento de Cultura, se implementou relativamente a este instrumento”.
Começo por citar uma notícia publicada no Diário de Coimbra de 9 de maio de 1983 – que Rui Marques, a quem agradeço, me disponibilizou – e onde se pode ler o seguinte:
Câmara cedeu violas toeiras a grupos folclóricos do Concelho
Viola toeira construída por Raúl Simões. Imagem acedida em: https://www.muralsonoro.com/mural-sonoro-pt/2014/3/4/viola-toeira
A Câmara Municipal de Coimbra entregou anteontem sete violas toeiras a grupos folclóricos do concelho.
O vereador do Pelouro, Fausto Correia, disse ao nosso jornal que esta medida vem na sequência de um processo de recuperação do instrumento musical, tradicional de Coimbra.
«O processo – salientou – iniciou-se com a aquisição dos instrumentos e da técnica, a Raul Simões, último fabricante, em Coimbra, da viola toeira».
Raul Simões, construtor e exímio tocador de viola toeira
«A partir daí – acrescentou – o professor Luís Filipe construiu 10 violas, sete das quais foram cedidas a grupos folclóricos, duas ficaram ao cuidado a Câmara e uma foi doada ao Instituto Português do Património Cultural».
Na sessão, que decorreu nos Paços do Concelho sob a presidência de Mendes Silva, presidente da Câmara, ficou ainda decidida a organização de um curso de aprendizagem de viola toeira.
O curso vai realizar-se no edifício Chiado em Coimbra, na próxima semana.
In: Diário de Coimbra, de 9 de maio de 1983
Uma outra notícia, saída no mesmo periódico, informa que no ato atrás referido estavam ainda presentes as Pessoas que então integravam a Comissão de Análise dos Grupos Folclóricos, constituída pelo Presidente da Federação do Folclore Português, Sr. Augusto Gomes dos Santos, pelo Doutor Nelson Correia Borges e pelo Dr. Francisco Faria responsáveis pelo reconhecimento “de interesse folclórico” dos grupos do Concelho de Coimbra.
O jornal O Despertar de 13 de maio do mesmo ano deu a conhecer o nome dos grupos a quem foi oferecida uma vila toeira: Camponeses do Mondego, de Ribeira de Frades; Típico da Palheira; Rancho de Vila Nova de Cernache; Vigor da Mocidade, de Fala, S. Martinho do Bispo; Rancho Típico do Bordalo; Rancho de Assafarge; e Casa do Povo de Ceira.
De memória, acrescento ainda as seguintes notas:
- O Município de Coimbra adquiriu aos herdeiros de Raul Simões, o último construtor de violas da cidade e homem que também tocava viola toeira, todo o material existente na sua oficina. Seguidamente, estabeleceu um acordo com o Museu Nacional de Etnologia, a fim de este levar a cabo a identificação e a catalogação dessas peças, cedendo-lhe, como contrapartida, alguns artefactos. Na altura, esse material destinava-se a reconstituir, no âmbito do projetado Museu da Cidade, a oficina do mestre violeiro.
- Algum tempo depois, cessei as minhas funções na Câmara de Coimbra e, por isso, desconheço o destino dado a esse precioso material. É evidente que o projeto da sua musealização, tal como a instalação do Meseu da Cidade, foram abandonados. Parece-me premente saber onde se encontra esse material, do qual faziam parte madeiras, moldes, ferramentas e produtos químicos que eram utilizados na sua oficina pelo último violeiro de Coimbra.
Após ter partilhado com os leitores estas informações talvez seja possível compreender melhor o espanto e a tristeza, para não dizer a revolta, que expressei na primeira destas entradas.
Rodrigues Costa
Concluímos, nesta entrada, a divulgação da publicação onde se relata o trabalho que está a ser desenvolvido na Miami University, relacionado com a revitalização da viola toeira.
A viola toeira e Coimbra
A viola de Coimbra tinha duas denominações distintas: a “Banza” e a “Farrusca,” sendo que o termo Banza descende provavelmente do instrumento africano “Mbanza” levado na memória dos escravos para o Brasil e daí o termo ser utilizado para denominar um instrumento de corda.
Coimbra foi, até às invasões francesas, a universidade do Brasil, os estudantes que vinham estudar na universidade traziam consigo a sua musicalidade, com ritmos, melodias e ambientes harmónicos dos “lundus,” combinando harmonia europeia e ritmos africanos, e a modinha brasileira, baseado na moda portuguesa e sempre acompanhada pela viola. A modinha ficou tão popular que o Jornal de Modinhas foi publicado em Lisboa entre 1792 e 1795. José Ramos Tinhorão confirma que “o costume dos estudantes, tanto de Lisboa quanto em Coimbra, de preencherem as suas horas de lazer com tocatas e cantorias chamadas de estudantinas, levava-os a compor canções.”
Quando um estudante se enamorava era costume convencer alguns dos seus colegas para o acompanhar nas noites mais claras, iluminadas pela lua cheia, pois não existia iluminação publica nas ruas, a cantar à janela da sua amada. Ouvia-se uma serenata deliciosa. Cantando versos como “menina vinde ao luar, vinde ver quem está a cantar,” o instrumento que acompanhava a sua voz era a viola de Coimbra, conhecida agora como viola toeira. Assim nasceu a Serenata, assim nasceu o Fado de Coimbra. Francisco Faria, em Fado de Coimbra ou Serenata Coimbrã?” interroga-se: “Por que chamar a isto fado? Canção coimbrã é uma música de ar livre, a estiolar em ambientes fechados, nos quais perde força expressiva e significado social, para se tornar canção-espetáculo...”
Provavelmente aprenderiam a cantar com familiares e tutores que sorviam a estética parisiense e, no caso da música, a italiana e a austríaca. Por esta razão ouve-se cantar na canção das ruas de Coimbra, a técnica operática do canto lírico que persiste na atualidade e que muito a diferencia do fado de Lisboa. A viola que acompanhava os estudantes era denominada de banza (muito raramente ainda se utiliza hoje expressão como “profissional da banza”). Era semelhante à farrusca a viola dos futricas e tricanas, mas ao nível das decorações era bastante ornamentada e rica segundo a estética barroca, com a utilização de madeiras nobres, madrepérola e marfim.
Quando um estudante se enamorava era costume convencer alguns dos seus colegas para o acompanhar nas noites mais claras, iluminadas pela lua cheia, pois não existia iluminação pública nas ruas, a cantar à janela da sua amada. Ouvia-se então uma serenata deliciosa.
Eduardo Loio a tocar uma réplica da viola de Bento Martins Lobo. Op. cit.,
Provavelmente aprenderiam a cantar com familiares e tutores que sorviam a estética parisiense e no caso da música a Italiana e austríaca. Por esta razão ouve-se cantar na canção das ruas de Coimbra, a técnica operática do canto lírico que persiste na atualidade e que muito a diferencia do fado de Lisboa. A viola que acompanhava os estudantes era denominada de banza (muito raramente ainda se utiliza hoje expressão como “profissional da banza”). Era semelhante à farrusca a viola dos futricas e tricanas, mas ao nível das decorações era bastante ornamentada e rica segundo a estética barroca, com a utilização de madeiras nobres, madrepérola e marfim.
Revitalização e construção
A viola toeira está a passar por uma revitalização nos últimos anos, com muito interesse nas comunidades académicas e musicais, reconhecendo o potencial de um instrumento com possibilidades expressivas. Com o movimento de early music e o desejo de voltar a usar instrumentos originais na música histórica, vários instrumentos extintos ou esquecidos estão a ser reutilizados em tipos de música antiga e folclórica. A viola toeira cai nesse movimento, e a canção coimbrã.
Em termos acadêmicos, investigadores estão explorando a história e desenvolvimento da viola toeira e música composta para o instrumento, pesquisando a música em arquivos e museus em Portugal e no exterior. Várias teses e dissertações foram escritas recentemente, explorando música disponível como o “Coimbra Codex” em arquivos como a Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, a Biblioteca Nacional e a Fundação Gulbenkian, em Lisboa. Outras fontes estão a ser descobertas, e muita informação está disponível na internet. Instrumentos antigos estão a ser estudados também, com exemplares de violas portuguesas de 12 cordas do século XVIII acessível em museus em Portugal e outros países, construídas por António dos Santos Vieira, de Lisboa, exposta no Ashmolean Museum, em Oxford, Inglaterra, a de Pedro Ferreira de Oliveira (Lisboa, c. 1790), da antiga coleção de Arnold Dolmetsch, actualmente no Horniman Museum, em Londres, outra de José Pereira Coelho (Lisboa, c. 1785) no Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa.
Uma parte dessa revitalização é a construção de instrumentos, principalmente nas últimas décadas. Construtores redescobriram o instrumento e começaram a construir instrumentos baseados nos exemplares históricos, alguns muito elaborados, outros mais simples. Ultimamente, ateliers e fábricas começaram a produzir instrumentos em número significativo.
A construção da viola toeira respeita as técnicas de construção ibéricas que remontam ao século XVI, em que o braço e o cepo ou bloco da quilha são uma peça única, onde as laterais, ilhargas ou costilhas são coladas em duas ranhuras perpendiculares à mediana do braço, previamente serradas. Este método de construção é muito diferente do utilizado em França e Itália, que emigrou para os Estados Unidos onde a caixa acústica é construída separadamente do braço sendo unidos posteriormente através de um encaixe ou malhete.
A cidade de Coimbra é uma parte essencial da revitalização e a construção da viola toeira, com estudantes, músicos e luthiers amadores e profissionais interessados em construir e tocar o instrumento.
Há muitos websites dedicados às violas portuguesas e à viola toeira, e é possível comprar instrumentos, estojos e cordas em vários países do mundo. Projetos como EcoMusic na Universidade de Aveiro estão a investigar a história e revivalismo do instrumento e outros aspetos da música portuguesa.
A viola toeira tem um passado interessante e variado, e será fascinante ver o que o futuro reserva para esse instrumento.
Thomas Garcia a construir uma viola toeira na Coimbra Luthier School. Op. cit.,
Garcia, T.G.C. e Loio, E. A Viola Toeira: História, Desenvolvimento, Revitalização e Construção. Acedido em: https://veduta.aoficina.pt/14/a-viola-toeira/
Francisco de Assis Ferreira de Faria (S. Paio de Seide, 1926 – Coimbra, 2022) numa entrevista realizada 15 de Setembro de 2009 (https://ria.ua.pt/bitstream/10773/1227/1/2010000612.pdf) recorda que já tinha nascido em S. Paio e os nossos pais passaram de S. Miguel para S. Paio por necessidade de vida. Eles eram “agrários”, o trabalho deles era o campo e em S. Miguel de Ceide não havia proprietários que dessem trabalho, então S. Paio de Ceide é que era a freguesia dos lavradores, por isso também era uma Freguesia de gente mais abastada. S. Miguel era uma freguesia de gente mais pobre.
Estas origens humildes não impediram um percurso notável. Sem nunca esquecer de onde vinha, tonou-se num conimbricense por adoção, figurando com inteira justiça na lista das Personalidades de Coimbra.
Francisco Faria, maestro
Na edição do “Campeão das Províncias” de 14 de novembro de 2022, é recordado como “um homem extraordinário que merece toda a nossa consideração e respeito”, conforme afirmou Paulo Oliveira, presidente do Coro dos Antigos Orfeonistas da UC. Também Manuel Rebanda sublinhou que Francisco Faria era “uma referência da advocacia em Coimbra”.
Francisco Faria, advogado
Na página da net https://www.meloteca.com/portfolio-item/francisco-faria/ é assim recordado por Gil Tocantins Figueiredo. A sua personalidade e temperamento marcaram todos aqueles que com ele conviveram. O Humanismo e o Cristianismo que ele cultivava fizeram-no abraçar muitas causas em vários setores tendo-se isso refletido também no plano profissional onde atingiu níveis de excelência – Distinto Advogado (primus inter pares) durante alguns anos integrou o Conselho Superior da Magistratura.
Francisco Faria, membro do Conselho Superior da Magistratura
Como musicólogo de reconhecida competência foi professor de História da Música na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e, para muitos um dos melhores diretores artísticos de música coral – nas suas mãos os coros não cantavam, interpretavam. Coimbra bem pode agradecer tudo o que ele fez pela música coral e também pela etnomusicologia (que o digam os Grupos Folclóricos do Concelho de Coimbra).
Nesta área sou testemunha do trabalho que desenvolveu em prol da música e, em particular, do seu esforço permanente na divulgação da música do patrono do Grupo, D. Pedro de Cristo, bem como em situar a música de seu irmão o compositor P.e Manuel Faria, no lugar a que, por direito próprio, lhe é devido. Sempre aberto a responder graciosamente aos pedidos de ajuda que lhe fizemos para diversas iniciativas, há a destacar a sua participação na Comissão de Analise dos Grupos Folclóricos, onde foi figura de destaque quer no separar o tripo do joio, quer em passar para pautas as músicas recolhidas pelos grupos.
A atribuição, em 1986 da medalha de vermeil da Cidade de Coimbra de mérito cultural, sempre achei pouco para agradecer o muito trabalho realizado, pelo que considero que a Autarquia ainda tem uma dívida de gratidão a saldar para com esta Personalidade de Coimbra.
Sendo polifacetada a atividade desenvolvida por Francisco Faria, aquela pela qual ficou mais conhecido pelos conimbricenses, como recorda o próprio Coro na já referida página https://www.meloteca.com/portfolio-item/francisco-faria/, O Dr. Francisco Faria não foi só o fundador do Coro D. Pedro de Cristo e o seu extraordinário Diretor artístico durante 39 anos, mas também um Homem carismático, de princípios, com uma generosidade intrínseca, reconhecida por todos quantos o conheceram de perto. Ele foi o “rosto”, a marca de qualidade do Coro D. Pedro de Cristo durante 39 anos.
Francisco Faria, fundador e maestro do Coro D. Pedro de Cristo
Coro que continua a ser um grupo de referência não só a nível nacional, como mesmo internacional e que tanto tem honrado o País pela qualidade que, sempre, apresenta.
Rodrigues Costa
Relembramos um trabalho do Dr. Mário Nunes, editado no ano de 2000, sob a chancela do Grupo de Arte e Arqueologia do Centro.
Cataventos de Coimbra, capa
Nos livros antigos de "Horas" e "Cronicões", as iluminuras quando representam castelos ou palácios, mostram os cumes dos torreões encimados de bandeiras em toda a sua grandeza.
As bandeiras e o seu uso associavam-se à nobreza.
Castelo de Miranda do Douro. Imagem acedida em; https://pt.wikipedia.org/wiki/Livro_das_Fortalezas#/media/Ficheiro:Livro_das_Fortalezas_83-_Miranda_do_Douro.jpg
…. As bandeiras, de diversos panos e cores, a drapejar, permanentemente, ao vento, deterioravam-se com facilidade. Surgiram a remediar os efeitos negativos e a substituir o pano, bandeiras de ferro, reduções das de pano, e que passaram a ocupar, também, os pináculos dos castelos, palácios e mosteiros. Avistavam-se ao longe e mostravam o brasão do seu proprietário. Porém, como aquelas bandeiras eram rígidas, houve necessidade, de as tornar móveis em torno de um eixo, para não se danificarem ou caírem quando sopravam ventos mais fortes. E, desta maneira, as bandeiras transformaram-se, de simples ornamentos em indicadores da direção do vento, retomando o préstimo que os gregos e os outros povos lhes tinham dado.
Lanternim do zimbório da Sé Nova. Op. cit., pg. 75
Op. cit., Pg. 21
O cata (procura) vento, é, como referimos nos dados históricos, um instrumento que serve para indicar a orientação do vento, e que atua, também, como motivo ornamental dos edifícios.
… O FERRO FORJAD0 E OS CATAVENTOS DE COIMBRA
Op. cit., pg. 33
Coimbra, a "cidade das grades", na designação de Vergílio Correia, acolheu a arte e a beleza do ferro forjado. Executaram-se "autênticos monumentos", que consagraram o pendor criativo daqueles que lhe deram forma.
Op. cit., pg. 37
António Augusto Gonçalves ao criar, em 1878, a Escola Livre das Artes do Desenho, lançara os alicerces da arte que fez nascer alfobres de artesãos e de artistas.
Op. cit., pg. 71
Em 1900, ao deslocar-se à Exposição Universal de Paris e ao confrontar os trabalhos expostos, rendeu-se à serralharia, um ofício que fornecia objetos aplicados na arquitetura, quer fosse ferro fundido, quer ferro forjado.
Op. cit., pg. 45
Ao regressar à Lusa-Atenas não hesitou em introduzir na Escola, juntamente com Joaquim Martins Teixeira de carvalho e João Machado, a arte que o fascinara em Paris. E, a primeira obra saída desta temática foi para o monumento funerário de Olímpio Nicolau Rui Fernandes.
Base do monumento funerário de Olímpio Nicolau Rui Fernandes. Col. RA
Nunes, M. Cataventos de Coimbra. Fotografia de António Quinteira, João Azevedo, Mário Afonso Nunes, Coimbra, Grupo de Arte e Arqueologia do Centro.
No início do passado mês de dezembro, a nova direção do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro (GAAC) anunciou o regresso da Munda.
A primeira série que tinha como diretor o Dr. Mário Nunes, foi editada entre 1981 – aquando do surgimento do GAAC – e 2007, tendo sido publicados 52 números. Há que saudar não só o renascimento do Grupo, bem como da sua revista científica que teve um papel relevante, no panorama cultural da Cidade. Renascimento que foi assim noticiado pela Direção em exercício.
A retomada da publicação da revista Munda, que durante longos anos marcou a vida editorial coimbrã, constituía um dos maiores desafios que se colocavam à atual direção do GAAC.
Esse objetivo acaba de ser concretizado, com a publicação do n.º 1 de uma nova série, a 2.ª, com um vasto leque de artigos centrados na vida cultural e artística da região centro e, em especial, da cidade de Coimbra.
São 170 páginas que proporcionamos aos sócios e ao público em geral, com a consciência de que tudo foi feito para honrar o grandioso passado da revista,
Munda. N.º 1 – 2 série. Novembro de 2013, capa
O índice da revista permite-nos aquilatar da qualidade e interesse dos artigos ora publicados.
SECÇÃO TEMÁTIVA: RETRATOS HISTÓRICOS DE COIMBRA
- Coimbra, 1901, A Primeira Viagem de Manuel Gómez-Moreno a Portugal, de Josemi Lorenzo Arribas e Sérgio Pérez Martin.
- Martin Wdser em Coimbra: Um Escritor Alemão Esquecido. Entre Helmut Helling e Karl Heinz Delille, de Pedro Miguel Gon.
- Lusitania, Viaje por un País Romântico. Coimbra pelos Passos de Rogelio Buendía, de Ana Marques.
- Viajar no Mondego com Fotografias de Época, de Alexandre Ramires.
VÁRIA
- Monforte de Ribacôa, um castelo Leonês na posse de Portugal, de Carlos D’Abreu e Román Hernández Rodriguez.
- Moinhos Hidráulicos no Río Ocreza, de Lois Ladra.
- O Moinho do Meligioso e a Batalha do Bussaco. Esforço de Preservação do Património Histórico-Militar, de João Paulo Almeida e Sousa.
Destes artigos chamamos, nomeadamente, a atenção para o da responsabilidade de Alexandre Ramires, intitulado Viajar no Mondego com Fotografias de época, onde são apresentadas 21 recuperações de fotografias do início do seculo passado, das quais selecionamos as seguintes.
Barracas no Mondego, autoria não identificada, Maio1905. Op. cit., pg. 77
Barca de lenha, autoria não identificada, 1906. Op. cit., pg. 81
Crescer no Rio, autoria não identificada, 1906. Op. cit., pg. 85
À beira-rio, autoria não identificada, 1906.Op. cit., pg. 89
Ponte do Modesto, autoria não identificada, c.1930. Op. cit., pg. 95
Munda. N.º 1 – 2 série. Novembro de 2013. Coimbra. Grupo de Arqueologia e Arte do Centro.
Continuando a debruçar-nos sobre a obra Coimbra e a República. Da propaganda à proclamação, de Carlos Santarém Andrade, abordaremos de seguida o último capítulo dedicado à Proclamação da República em Coimbra.
Segunda parte.
Na tarde do dia 13 de Outubro teria lugar a tomada de posse da Comissão Administrativa Municipal. Leia-se, sobre o acto, «A Defesa", do dia seguinte: "Foi ontem aclamada e tomou posse a comissão administrativa que há-de gerir os negócios municipais até às próximas eleições. Pelas 2 horas e meia da tarde, a convite do administrador do concelho, reuniu-se na sala nobre dos Paços Municipais o povo desta cidade". O jornal prossegue a descrição do acto, com a relação dos membros efectivos, constituída, entre outros vultos republicanos, pelo Dr. Sidónio Pais e António Augusto Gonçalves, respectivamente presidente e vice-presidentes da comissão, acrescentando: "Uma estrondosa salva de palmas acolhe a leitura desta lista, que se prolonga à medida que o Sr. Secretário da Câmara vai proclamando cada um dos nomes dos escolhidos e estes vão tomando o lugar que lhes é reservado".
Sidónio Pais, 1.º Presidente da Comissão Administrativa Municipal. Op. cit., pg. 151
António Augusto Gonçalves. Vice-Presidente da Comissão Administrativa. Op. cit., pg. 151
Seguem-se vários discursos: "Todos os oradores são muito aplaudidos, e entusiasticamente correspondidos os vivas soltados à República Portuguesa, à Pátria, ao Exército, à Marinha, ao Povo de Lisboa, à Câmara Republicana". Continua o jornal: “Encerrada a sessão, repetem-se os aplausos e os vivas à nova vereação, que se prolongam por vários minutos". E a terminar, "A banda do 23 tocou a «Portugueza» no átrio dos Paços Municipais.
A proclamação da República em Coimbra, que decorrera com normalidade, viria a ter um incidente que ocorreu na Universidade, quando um grupo de estudantes radicais, auto-denominado de ”Falange Demagógica'', provocou, no dia 17 de Outubro, distúrbios nas instalações universitárias, partindo peças de mobiliário, rasgando algumas vestes doutorais, destruindo mesmo diversos adereços na Sala dos Capelos, em que foram disparados tiros que atingiam os retratos de D. Carlos e de D. Manuel II.
Distúrbios na Universidade. Op. cit., pg. 150
O acto, reprovado geralmente, incluindo a imprensa republicana, foi justificado pelos seus autores, num manifesto "Aos Espíritos Livres», no dia 18, em que declaravam: "Eis porque meia dúzia de caracteres impolutos que não se deixaram arrastar por essa onda de corrupção ignominiosa, vêm agora, impelidos por um nobre e altivo sentimento, livres das peias de preconceitos atávicos, quebrar os grilhões malditos que arroxeavam os pulsos de centenas de gerações".
Entretanto é nomeado Reitor da Universidade Manuel de Arriaga, que chega a Coimbra acompanhado por António José de Almeida, Ministro do Interior, sendo recebidos por uma enorme multidão na Estação Nova.
Chegada de António José de Almeida e de Manuel de Arriaga à estação de Coimbra. Op cit., pg. 153
E no dia 19 de Outubro reabria a Universidade, sendo o novo Reitor empossado no cargo por António José de Almeida. O acto, que decorreu sem as tradicionais praxes académicas, foi relatado, no dia 27 de Outubro, pelo jornal "A Tribuna": "Usando da palavra, o Sr. Dr. António José de Almeida, começa por dizer que veio expressamente a Coimbra para, em nome do Governo Provisório da República, apresentar aos professores e alunos da Universidade o novo Reitor Manuel de Arriaga, a quem se faz uma entusiástica manifestação de carinho e respeito que profundamente o comove".
Manuel de Arriaga. Op. cit., pg. 153
Usou da palavra em seguida o novo Reitor, que agradeceu com um discurso, findo o qual, como acrescenta o jornal: “Muitos lentes, seus condiscípulos e amigos, correm a abraçar o venerando velhinho cuja suave figura todos infunde um respeito profundo, uma carinhosa simpatia. O público dispensa-lhe uma carolíssima manifestação em que os vivas e as palmas se sucedem e se prologam”.
Em favor das vítimas da revolução em Lisboa, tem lugar no dia 1 de Novembro, em Coimbra, um bando precatório para angariar fundos, que saiu dos Paços do Concelho, percorrendo várias ruas da Cidade.
Bando precatório para angariar fundos. Op. cit., pg. 154
ambém no dia 6 de Novembro, comemorando o 30.º dia da proclamação, é descerrada a lápide dando o nome de Praça da República ao largo até então denominado D. Luís.
Convite comemorativo do 30.º dia da proclamação da República. Op. cit., pg. 154
Andrade, C.S. Coimbra e a República. Da propaganda à proclamação. 2022. Coimbra, Edição Lápis da Memória.
Continuando a debruçar-nos sobre a obra Coimbra e a República. Da propaganda à proclamação, de Carlos Santarém Andrade, abordaremos de seguida o último capítulo, dedicado à Proclamação da República em Coimbra. Primeira parte.
No dia 4 de Outubro, o jornal "Defeza", de Coimbra, dá-nos uma curta, embora destacada, notícia sob o título "Revolução em Lisboa?", sem adiantar desenvolvimentos.
"A Tribuna", do dia 5, dá mais pormenores, no artigo "A revolução de Lisboa", sobre os sucessos na capital, descrevendo vários episódios da luta travada no dia anterior, mas cujo desfecho era ainda desconhecido. Sobre o assassínio de Miguel Bombarda, no dia 3, por um dos seus doentes do foro psiquiátrico, tenente do exército, informa-nos ser o seu autor natural de Coimbra, onde fez os Preparatórios para a Escola do Exército, tendo prestado serviço como alferes no Regimento de Infantaria 23, aquartelado nesta cidade. Sem conhecimento do rumo dos acontecimentos, os republicanos viveram horas de angústia e ansiedade, decidindo enviar a Lisboa um emissário para se inteirar do que se passava.
Jornal “Defeza”, de Coimbra. Op. cit., pg. 147
No dia 5, à noite, corre em Coimbra que a República fora proclamada, o que provoca que, na Praça do Comércio (onde se situava o Centro José Falcão) se juntasse muita gente. E quando, cerca das 3 horas da manhã do dia 6 de Outubro, um emissário do governo republicano, entretanto formado, confirma a proclamação da República, há grandes manifestações de regozijo, acompanhadas do lançamento de foguetes, sendo arvorada no edifício da Câmara e na Universidade a bandeira republicana, como nos informa o "Notícias de Coimbra", do dia 8 de Outubro. O mesmo jornal descreve que "a filarmónica «Boa União» toca a «Portugueza», formando-se um cortejo em direcção ao Governo Civil, aonde se encontra já o novo Governador Sr. Dr. Fernandes Costa".
O alferes medico sr. João Augusto Ornellas, falando ao povo das janellas da Camara de Coimbra, após a notificação da proclamação da Republica. In: Illustracção Portugueza, II-1910, n.º 224, Lisboa, 1910.10.24, p.539.
Dr. Fernandes Costa. 1.º Governador Civil de Coimbra após a implantação da República-Op- cit., pg. 148
Na sede do Governo Civil (então, na Rua Larga, onde hoje se encontra a Faculdade de Medicina) a passagem do testemunho do até então governador, Dr. José Jardim, faz-se com toda a urbanidade, sendo mesmo cumprimentado à saída do edifício. O extenso cortejo regressa à Baixa, ao som de vivas à Liberdade e à República, terminando na Praça do Comércio, cerca do meio-dia.
À uma da tarde desse dia 6 de Outubro estava prevista a proclamação da República nos Paços do Concelho. E essa tem lugar perante o Dr. Fernandes Costa e a vereação que até aí gerira o município, e que então pede a demissão. Como informa o mesmo jornal, no Salão Nobre completamente cheio, "esta cerimónia termina por constantes vivas à Pátria, a Portugal, ao exército e armada e à República, no meio do maior e mais indiscritível entusiasmo", que acrescenta: "Duas bandas de música, a «Boa União» e a «Conimbricense», tocam em frente, no largo, formando-se, em seguida novo cortejo, composto por milhares de pessoas que percorre, com as duas filarmónicas, várias ruas da cidade".
O povo depois do discurso do sr. João Ornellas a caminho do quartel de infantaria 23. In: Illustracção Portugueza, II-1910, n.º 224, Lisboa, 1910.10.24, p.539.
Auto da Proclamação da República em Coimbra em 6 de Outubro de 1910. Op. cit., pg. 150
Também o quartel do Regimento de Infantaria 23, então na Rua da Sofia, pelas quatro da tarde, se associa à proclamação, hasteando no seu mastro a bandeira do novo regime. Momento registado pelo referido periódico: "Há então um indiscritível entusiasmo, a que se associam os soldados, erguendo vivas à República e confraternizando com o povo. Ouvem-se pouco depois os primeiros acordes da «Portugueza»”. É a banda militar que a toca. Novas manifestações, igualmente calorosas, se ouvem, com vivas ao exército e à armada". À noite seriam iluminados os edifícios públicos e mesmo casas particulares, percorrendo as ruas da cidade grupos de populares em marchas «aux flambeaux». No dia seguinte novas manifestações de alegria teriam lugar em vários pontos de Coimbra.
Uma nota muito curiosa é-nos ainda revelada pelo jornal: "É agora cumprida a disposição testamentária do falecido Dr. Inácio Roxanes, em virtude da qual, no dia da implantação da República, devia ser distribuída a quantia de 100$000 réis pelos pobres da freguesia de Santa Cruz, desta cidade. O respectivo testamenteiro anda cumprindo já a referida disposição".
Andrade, C.S. Coimbra e a República. Da propaganda à proclamação. 2022. Coimbra, Edição Lápis da Memória.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.