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Com a série de cinco entradas que hoje iniciamos chamamos a atenção dos leitores para o trabalho de investigação intitulado Comer e curar no Convento de Santa Ana de Coimbra (1859 a 1871), da autoria da Dr.ª Dina de Sousa.
O Convento de Santa Ana
O primitivo convento situava-se na margem esquerda do Mondego, próximo de um local vulgarmente designado por “Ó da Ponte”. Então conhecido por “Cellas da Ponte”, teve como grande impulsionadora D. Joana Pais, devota de Santa Ana, que fundou o convento numas casas e respetiva quinta que recebera por doação de seus pais, tendo sido aí colocada a primeira pedra a 26 de Julho no ano de 1174, precisamente no dia consagrado a Santa Ana. Devido aos seus parcos recursos, o convento ficou dependente dos bispos de Coimbra, que o sustentavam através das suas esmolas.
Um século após a edificação do convento, “(...) por causa das cheias do Rio Mondego com as quais o dito Convento estava devastado e as ditas freiras por muitas vezes estiveram em perigo de vida”, tornou-se insustentável a continuidade da comunidade naquele espaço.
Coimbra no final do sec. XVI, ruínas das “Cellas da Ponte”. Pormenor da gravura de Coimbra, de Hoefnagel
No “anno de 1561, em que as sucessoras de D. Joanna viram não poder elle continuar a ser habitado”, recorreram ao bispo D. João Soares, tendo-lhes sido feita doação da Quinta de S. Martinho para nela se recolherem, até ser construído um novo edifício.
Quinta de S. Martinho (Vestígios do Convento). In: «Sant’Ana. Três séculos de convento, um século de quartel», pg. 20.
Este seria mandado edificar pelo bispo–conde D. Afonso de Castelo Branco, situado no local outrora conhecido por Eira das Patas, numa colina fronteira à cerca de São Bento e ao aqueduto. O seu domínio estendia-se até ao atual Penedo da Saudade. A 13 de Fevereiro de 1610, as religiosas ingressam no novo convento de Santa Ana, passando a usar o hábito das Eremitas de Santo Agostinho.
Refira-se que esta comunidade acolheu a jovem Josefa de Óbidos. Além dos ensinamentos religiosos, ali recebeu aulas de pintura. Assim, foi nesta cidade que Josefa começou a pintar, pois, parece que a sua obra mais antiga data de 1644, uma série de gravuras de Santa Catarina e São José. Como não seguiu a vida religiosa regressou a Óbidos, em 1653, trabalhando para conventos e igrejas. Mais tarde, foi convidada pela família Real, para fazer os retratos da rainha D. Maria Francisca de Saboia e da sua filha, a infanta D. Isabel.
Josefa de Óbidos. Santa M aria Madalena.1650. Museu Nacional de Machado de Castro. Imagem acedida em:https://www.wikiart.org/pt/josefa-de-obidos/santa-maria-madalena-1650
Josefa de Óbidos, A Anunciação, 1676. Imagem acedida em: https://ilustracaoportugueza.wordpress.com/2016/08/15/josefa-de-obidos-a-anunciacao-1676/
Tal como aconteceu em outros espaços monásticos, em 1810, as religiosas perderam muitos dos seus bens, devido às Invasões Francesas. Poucos anos depois, as guerras liberais vieram agravar a sua frágil situação económica, no contexto da extinção das ordens religiosas masculinas, em 1834. Assim, as ordens femininas ficaram proibidas de receber noviças, pelo que se regista um envelhecimento da comunidade, necessitando de mais cuidados.
O convento é considerado extinto a 6 de Junho de 1885, altura em que a última prelada, D. Maria José de Carvalho, de idade já avançada, e desprovida de bens económicos, abandona Santa Ana, juntamente com mais algumas idosas que com ela viviam, na sua maioria criadas e encostadas. Consigo levou apenas alguns objetos como recordação de um espaço no qual entrara quando tinha sete anos de idade. A sua mudança dá-se para o Real Colégio Ursulino das Chagas, instalado no extinto Colégio de S. José dos Marianos.
Colégio de S. José dos Marianos, atual Hospital Militar
O edifício conventual patenteia uma arquitetura modesta, bem ao espírito dos Eremitas de Santo Agostinho, valorizando a sua fachada dois pórticos que, entretanto, foram retirados e que hoje estão, respetivamente, na Igreja de S. João de Almedina
Pórtico do Convento de Santa Ana, aplicado na Igreja de S. João de Almedina. Imagem acedida em: https://www.bing.com/images/search?view=detailV2&mediaurl=https%3A%2F%2Fimages...
e na fachada do Museu Machado de Castro.
Pórtico do Convento de Santa Ana, aplicado na entrada do Museu Nacional Machado de Castro. Imagem acedida em: https://www.bing.com/images/search?view=detailV2&mediaurl=https …
De estrutura quadrangular, desenvolvida em torno de dois claustros e de dois pátios internos, na sua primitiva construção, no piso térreo encontrava-se a entrada para a Igreja e para o pátio das hospedarias, a roda e as grades, o refeitório, a cozinha e a casa da botica. Existiam outras dependências: casas para criados, celeiro, forno, duas arrecadações e a cerca amuralhada que abrangia a entrada do Penedo da Saudade.
No primeiro andar situavam-se os dormitórios, a casa do noviciado e as enfermarias.
Sousa, D. Comer e curar no Convento de Santa Ana de Coimbra (1859 a 1871). Texto acedido em: https://www.academia.edu/116755957/Comer_e_curar_no_Convento_de_Santa_Ana_de_Coimbra_1859_a_1871_?email_work_card=title
Conclusão do texto assinado pelo Professor Doutor Pedro Dias, publicado na revista Munda em novembro de 1981.
Até 1537, o aglomerado urbano de Coimbra manteve-se sem grandes alterações: pequenas e acanhadas ruelas que serpenteavam nas encostas, adaptando-se às construções que sempre, precediam e definiam os traçados das vias. Nunca a almedina esteve superlotada. Continuando a existir, intramuros hortas e quintais, onde se praticou a horticultura, até à atualidade. O crescimento era moderado e fez-se sem sobressaltos. Mas nesse ano, D. João III reinstalou os Estudos Gerais, na cidade e a sua fácies começou a mudar. Frei Brás de Braga, reformador do mosteiro crúzio, com o beneplácito do monarca, abriu a Rua da Sofia que viria a ser o orgulho dos conimbricenses quinhentistas, cantada mesmo. em versos latinos, por Inácio de Morais. Aí se edificaram os Colégios de S. Miguel e de Todos os Santos, de S. Bernardo, do Carmo, da Graça, de S. Pedro, de S. Boaventura e de S. Tomás, além do Convento Novo de S. Domingos e a nova igreja de Santa Justa. O frade reformador urbanizou outras áreas, como a de Montarroio. incluindo o largo que se viria a chamar Pátio da Inquisição, as ribas de Corpus Christi e das Figueirinhas, o Largo de Sansão, etc. Já antes, o Bispo D. Jorge de Almeida dera maior dignidade ao adro da Catedral, e a Camara arranjara de novo a ponte, os cais do Mondego e algumas ruelas que calcetou.
Mas foi a partir de 1537 que se operou a grande mudança. com a instalação de inúmeros colégios universitários, que todas as ordens religiosas quiseram fundar na cidade, para alojarem os seus religiosos que, em Coimbra, buscavam o Saber e os graus académicos.
Grandes edifícios, planeados por arquitetos de mérito e construídos com apreciáveis meios económicos por construtores hábeis, surgiram, em poucas décadas. em zonas desabitadas do arrabalde ou mesmo na almedina, cabendo salientar os grandes complexos da Companhia de Jesus, e de Santa Cruz.
Os próprios burgos vizinhos de Celas e Santa Clara, que tinham nascido à sombra de mosteiros, desenvolveram-se fornecendo mão de obra para os trabalhos de construção.
Em poucos anos, o número de habitantes de Coimbra duplicou, e aos 5.200 de 1527 opunham-se os 10.000 de 1570. Não eram só estudantes, mas também todo um grupo social que nascera, para garantir a alunos e mestres os serviços necessários para a sua permanência na cidade. No fim do séc. XVI a zona urbana crescera e redefinira-se, para não mais se alterar até ao final do séc. XIX. As zonas agora ocupadas, além das que já o eram em 1537, situavam-se entre o Mondego o a parte final da Rua da Sofia, nos arnados, que foram sendo conquistados para a construção e para pequenas hortas, e na encosta de Montarroio.
Terminou-se a ligação entre os adros de Santa Justa, o largo de Sansão e a Praça Velha, formando-se um aglomerado contínuo.
Largo de Sansão no final do séc. XVIII. Op. cit., pg. 6
No séc. XVII a evolução é lenta e a população aumenta gradual e sistematicamente, mas, para além de construções pontuais, algumas de grande volume, viário ou os limites da urbe não sofrem alterações, o mesmo se passando ao longo de toda a primeira metade do séc. XVIII. Em 1765 os alunos matriculados na Universidade eram já 4.629 que, juntos com os dos colégios, perfaziam o elevado número de cerca de 8.000, ou seja, metade de toda a população de Coimbra. A vocação académica da cidade mantinha-se.
Foi nesta época que o Marquês de Pombal, desejou mudar o aspeto e a estrutura da sua cidade universitária, mas dos seus planos mais não resultou que a criação da praça que hoje tem o seu nome, em terrenos e edifícios da Companhia de Jesus, onde fez levantar dois institutos universitários ao gosto da moderna Europa de além-Pirenéus. Na Quinta dos Bentos levantou também o Jardim Botânico que seria um novo polo de atração e iria fazer a ligação com novos bairros da cidade contemporânea, mas antes, ainda, no séc. XVIII, com o Seminário e o Colégio de S. José dos Marianos.
Durante o séc. XIX a cidade só aumentou o seu número de habitantes em 6.000 e ao ser implantada a República viviam aqui 29.115 almas. Foi a partir de 1880 que a fácies de Coimbra mudou e acompanhou a modernização que também Lisboa conheceu, quem sabe se não influenciada pelas obras que corriam na capital. É o momento em que a malha quinhentista rompe os seus tradicionais limites e se espalha por zonas antes desabitadas ou, quando muito, onde se implantavam algumas moradias rodeadas de quintas de pleno carácter rural.
Junto ao rio, arranjam-se as margens, sobretudo a do lado Norte, alarga-se a Portagem e a avenida e parque juntos, cujas obras se prolongam durante váriasdécadas, a partir de 1888. Aí nasce a estação de caminho de ferro e se instalam as unidades hoteleiras mais importantes da cidade novecentista. Em 1882. na Quinta de Santa Cruz, começa a abrir-se a que haveria de ser a mais larga e bela das novas artérias citadinas, hoje a Avenida Sá da Bandeira. que termina na Praça da República, local onde, já em 1901 os académicos disputavam as suas partidas de um novo desporto importado das Ilhas Britânicas: o futebol. As vias adjacentes, de traçado regular e com largura invulgar para a época. em breve servidas por transportes públicos, são projetadas e começam a ser abertas, a partir de 1889: Rua Castro Matoso, Rua Alexandre Herculano Rua Garret, etc. A ligação da Praça da República com Celas – a rua Lourenço Almeida Azevedo – inicia-se em 1893, e a vizinha Rua Tenente Valadim é traçada entre 1894 e 1903. É toda uma nova zona onde se vão levantar prédios elegantes, uma escola, na esquina da Rua da Manutenção Militar que, em 1901 vai estabelecer a ligação com Montarroio e com a Conchada, e um teatro circo, já inaugurado em 1892.
Em 1918 a zona residencial estende-se a outras áreas, sendo nesse ano regularizada a Alameda do Jardim Botânico. e dois anos depois, a região da Cumeada, com a definição da sua espinha dorsal, a Avenida Dias da Silva.
Só em meados do século. Coimbra conheceria novas alterações em alguns dos seus pontos mais centrais, multo especialmente na Alta, onde. para se construíram novos edifícios universitários, se destruíram grandes áreas de antiga ocupação. incluindo muitos edifícios notáveis, como as igrejas de S. Bento e de S. Pedro, e os Colégios dos Militares e dos Loios.
Planta da Alta com indicação das áreas destruídas, para a construção dos novos edifícios universitários. Op. cit., pg. 10
É também, por outro lado. o momento em que se constrói o primeiro bairro periférico dentro de um plano ordenado e com finalidade de alojar condignamente, em moradias. famílias de recursos médios;
Urbanização inicial do Bairro Marechal Carmona. Op cit., pg. 9
nascia assim o Bairro Marechal Carmona, ao dobrar-se o meado do século.
Dias, P. Evolução do Espaço Urbano em Coimbra. In: Munda, Revista do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, n.º 2, pg. 5-11.
Terceira e última entrada dedicada ao trabalho do Doutor Francisco Pato de Macedo que sobre o retábulo-mor da Sé Velha de Coimbra.
«Evangelista S. Mateus», predela do retábulo da Sé Velha de Coimbra. Op. cit.
O retábulo da Sé Velha de Coimbra, pelas suas dimensões, não apresenta a possibilidade de ser fechado, através de volantes, como era comum nos retábulos do Norte da Europa.
A predela do retábulo da Sé Velha é constituída por seis divisórias encimadas por baldaquinos finamente lavrados. Uma no prolongamento do pano central deste políptico, que se subdivide para albergar dois temas e quatro no prolongamento de cada uma folhas laterais, onde se dispõem os Evangelistas.
No lado direito, na divisória do meio, o Evangelista S. Lucas, em relevo de meia figura, tem a seus pés o boi, seu atributo, que combina, neste retábulo dedicado à Virgem, com outro dos seus atributos, o de retratista da Virgem. A pintura que se vê a executar está colocada num cavalete e voltada para os espectadores a quem é mostrada. Completa esta cena o seu auxiliar, que prepara as tintas, e que é curiosamente um negro…. A representação iconográfica de S. Lucas como retratista da Virgem foi utilizada com frequência pelos artistas flamengos, que assim contribuíram para a sua divulgação. A divisória que se situa no prolongamento da folha exterior do lado direito, é ocupada pelo Evangelista S. Mateus, que quase de costas no ato da escrita, molha a pena no tinteiro, que um anjo, seu atributo, à sua frente, lhe segura. Na folha central, do lado esquerdo, S. João, patrono dos escritores e dos teólogos, sentado numa cadeira ornada com motivos escultóricos, dedica-se à tarefa da escrita numa escrivaninha que lhe é apontada pelo bico da águia, que o simboliza, que está elegantemente colocada com as asas abertas e as patas assentes em livros.
Por último, o Evangelista S. Marcos, a escrever o Evangelho com o leão alado, o seu atributo, aos pés. Completam a predela, nas duas divisórias, que prolongam o pano central, o Presépio que, enquanto glorificação da Virgem, é subsidiário do tema central e que alude também à infância de Cristo. Neste caso, contrapõe-se à cena seguinte a Ressurreição de Cristo, símbolo de transcendência e de um poder sobre a Vida que só a Deus pertence, que é o tema principal do retábulo e que volta a repetir-se na estrutura de coroamento. A Ressurreição reflete a estética flamenga, quer na posição de Cristo com uma perna fora do sepulcro, quer na posição de terror dos soldados e nas suas armaduras.
A estrutura do coroamento é composta de duas partes, uma onde numa estrutura de marcenaria menos trabalhada se destaca a crucificação que aliás é comum encimar este tipo de retábulos. Ao centro, em posição mais elevada Cristo Crucificado, com um semblante de sofrimento e o tórax torneado a mostrar as costelas salientes e o ventre reentrante. Aos pés de Cristo, tal como aos da Virgem, D. Jorge de Almeida mandou colocar o seu brasão…. A mitra, que na sua forma triangular encima o brasão e que com o seu vértice aponta Cristo Crucificado, simboliza a Sua natureza divina. Aos lados da cruz, em pé, à direita, a Virgem, e, à esquerda, S. João, a Mãe e o discípulo favorito. Completam este tema os dois companheiros do drama, o bom e o mau ladrão.
«O Mau ladrão», retábulo da Sé Velha de Coimbra. Op. cit.
À direita, o bom ladrão ergue o olhar para Cristo, à esquerda o mau ladrão com a cabeça pendente torce-se nas cordas. Seguindo a tradição do Norte da Europa não estão pregados na cruz, mas com os braços atados a esta …A estrutura de coroamento é ainda, neste retábulo, composta por outra parte que se liga diretamente à estrutura arquitetónica do edifício românico. A da semicúpula absidal que foi, de uma forma bastante original, inteiramente coberta com uma estrutura de marcenaria semelhante a uma abóbada estrelada, prefiguração do espaço celeste, onde se representa o Juízo Final. Na chave central da abóbada o busto nu de Cristo Juiz, envolto em nuvens, com as mãos erguidas para deixar veras chagas e mostrar-se tal como morreu na cruz. Em cada um dos fechos da abóbada anjos tenentes seguram com as mãos veladas os instrumentos da Paixão que assumem o carácter de brasões de Cristo. Completa o coroamento, abaixo de Cristo Juiz, S. Miguel Arcanjo.
…. Na imposta do arco que encima a cena central vêem-se duas figuras enigmáticas. A do lado direito aponta com um braço demasiado comprido, em direção ao crucificado e no outro leva, provavelmente, as Tábuas da Lei. A do lado esquerdo curvada sobre si própria ergue a cabeça para o crucificado e deve, hipoteticamente, simbolizar um Profeta que, a partir do Antigo Testamento se volta em direção ao Redentor e anuncia a sua segunda vinda.
Merece ainda destaque a moldura, em escultura ornamental, que decora o «Corpus» e a predela, deste monumental retábulo, onde se podem ver dragões, sereias, anjos, cavaleiros, ursos, porcos, macacos, homens selvagens e vários monstros entrelaçados em folhagem. Em termos de conteúdo simbólico podem, entre outros, ser-lhe atribuídos os seguintes significados: elementos moralizadores, evocação do período da desordem, símbolo das forças irracionais. Estes elementos são, por si só, motivo para um estudo detalhado e aprofundado utilizando o método iconológico.
…. Ao longo dos séculos, o retábulo da Sé Velha teve vários restauros documentados. No final do século XVI, mais concretamente em 1582 …. Um século mais tarde, em 1684…. Teve ainda uma grande obra de restauro, em 1899, na qual o mestre António Augusto Gonçalves modelou em barro, o Presépio
O Presépio. Imagem publicada no blogue Nova Portugalidade, em 19 de dezembro de 2018. Acedida em https://www.facebook.com/100069507879227/posts/2204153486509673/
e o Evangelista São Marcos que faltavam na predela, que foram em seguida, reproduzidos em madeira por dois artistas naturais da Carregosa, o mestre António Ferreira Santos e Adelino Teixeira da Silva.
…. Este magnífico retábulo-mor continua na Sé Velha de Coimbra a exaltar a devoção que desde tempos imemoriais aqui se dedica a Santa Maria.
Macedo, F. P. O retábulo-mor da Sé Velha de Coimbra In: Actas do IV Simpósio Luso-Espanhol de História da Arte - Portugal e Espanha entre a Europa e Além-Mar. 1988. Coimbra, Universidade de Coimbra.
Segunda de uma série de 3 entradas dedicadas ao estudo do Doutor Francisco Pato de Macedo que escreveu sobre o retábulo-mor da Sé Velha de Coimbra.
A individualização do trabalho e do estilo de cada um dos artistas que realizaram o retábulo da Sé Velha apresenta, também grandes dificuldades. As obras que são atribuídas a Oliver de Gand, perderam-se na quase totalidade.
…. Acerca de Jean d'Ypres sabe-se só que, em 1510, estava a trabalhar em Santa Cruz de Coimbra, e que deve ter morrido, em 1512.
…. Conserva-se, felizmente, de Oliver de Gand e de Jean d'Ypres, o monumental retábulo de madeira dourada e policromada, nas formas exuberantes do gótico flamejante, que reveste completamente o fundo da abside da Sé Velha de Coimbra. Nele podemos individualizar um «Corpus», que constitui o centro narrativo e que ocupa a parte central da estrutura.
O «Corpus» termina num dossel trilobado e abobadado com nervuras e um remate de cogulhos, cujo centro é ocupado por dois anjos que sustentam o brasão do bispo, encabeçado pela mitra.
Abaixo sob um baldaquino filigranado, dispõe-se a narrativa central de todo o retábulo – a Assunção da Virgem. Esta cena central constitui um conjunto muito característico da escultura do Norte da Europa. A Virgem está envolta numa auréola luminosa, espécie de nimbo de todo o corpo e símbolo de beatitude eterna. Apresenta-se em posição frontal, de pé sobre uma lua crescente, em atitude de oração.
Assunção da Virgem. Retábulo-mor da Sé Velha de Coimbra. Op. cit.
É uma figura de face gorda, cabelos frisados a cair pelos ombros e vestes de duras angulosidades. que está rodeada de anjos que a conduzem ao Paraíso. Aos pés da Virgem os Apóstolos. que vieram testemunhar a sua morte. dispõem-se num relevo em elevação e profundidade. aglomerados. cobrindo-se uns aos outros. gesticulastes, envoltos em roupagens de múltiplas pregas. elevando-se de um lado e do outro numa posição de equilíbrio.
Assunção da Virgem, pormenor do retábulo-mor da Sé Velha de Coimbra. Op. cit.
A Assunção é um dos temas mais importantes da Glorificação da Virgem…. Existiu. desde tempos imemoriais, um templo dedicado à Virgem. no local onde no século XI, o bispo D. Miguel Salomão mandou construir a nova igreja catedral, que também a Ela consagrou. O bispo D. Jorge de Almeida, grande devoto da Virgem, não deixou de a fazer ocupar, neste retábulo, um lugar central e de lhe colocar aos pés o seu brasão.
…. A Assunção da Virgem ocupa o pano central do políptico, que é duas vezes maior que os laterais. dois de cada lado. separados por contrafortes onde se abrem nichos. de diversos tamanhos, destinados a albergar esculturas de vulto. dentro de um espírito de horror ao vazio. Em cada um dos panos laterais. seguindo uma linha quebrada. dispõem-se sob baldaquinos, figuras de santos de vulto redondo. Os baldaquinos da folha seguinte à central que terminam num triangulo rendilhado albergam. o da direita S. Pedro de cabelos encaracolados. barba espessa e curta e vestes de pregas onduladas e com o manto levantado deixando ver os atributos. as chaves e o livro. O baldaquino da esquerda S. Paulo de fronte calva e barba longa e cujo manto é decorado com imitação de. pedras incrustadas. Santos Universais que sustentaram os mesmos combates. que terão caminhado abraçados para a morte e que a Igreja festeja no mesmo dia. Nos panos seguintes. sob baldaquinos que terminam como se fossem uma coroa, os Santos Cosme (p. 308) e Damião, irmãos gémeos …. Além destes Santos, outros deveriam ocupar nichos hoje vazios. No Museu Machado de Castro conservam-se três imagens de S. Jerónimo, S. Gregório e Santa Catarina que, muito provavelmente, pertencem a este retábulo.
«S. Jerónimo» - Museu Nacional Machado de Castro – Coimbra. Op. cit.
«S. Gregório» - Museu Nacional Machado de Castro – Coimbra. Op. cit.
Pelas suas dimensões deveriam ocupar três dos seis nichos, situados nos contrafortes que delimitam os panos do políptico. Os outros três nichos deveriam ser ocupados pelos restantes doutores da Igreja, Santo Agostinho e Santo Ambrósio, e, hipoteticamente, por Santa Catarina que é muitas vezes associada a Santa Bárbara.
Macedo, F. P. O retábulo-mor da Sé Velha de Coimbra In: Actas do IV Simpósio Luso-Espanhol de História da Arte - Portugal e Espanha entre a Europa e Além-Mar. 1988. Coimbra, Universidade de Coimbra.
Nesta entrada e nas duas seguintes, voltamos ao trabalho do Doutor Francisco Pato de Macedo, Professor Aposentado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, no qual é contada, não só a história do retábulo-mor da Sé Velha de Coimbra, bem como feita uma pormenorizada descrição do mesmo.
O interior da Sé Velha de Coimbra revela a quem transpõe o seu portal. um contraste entre as pedras nuas e frias da construção do séc. XII e o brilho dourado do retábulo-mor que, como peça de ourivesaria, refulge no ponto para onde, invariavelmente, converge o olhar.
…. O primitivo retábulo da capela-mor da Sé Velha de Coimbra, dedicado à Virgem. foi mandado executar pelo Bispo D. Miguel Salomão, nos finais do séc. XII, e era composto por uma alma de madeira revestida a prata dourada.
Três séculos depois. o bispo-conde D. Jorge de Almeida não considerou este retábulo digno de uma Sé, com a ascentralidade e a importância da de Coimbra, nem dele próprio, enquanto seu bispo já que é sempre referido pela historiografia como verdadeiro príncipe da Renascença.
…. Enriqueceu a Sé com inúmeros objetos de ourivesaria sacra …. Dentre todos, destaca-se a magnífica custódia, de prata dourada, em estilo gótico, destinada às procissões do Corpo de Deus. Deve-se ainda a D. Jorge de Almeida a introdução do gosto pelos azulejos mudéjares, que mandou comprar em 1508, em Sevilha, e com que mandou revestir totalmente, pilares e muros do interior da Sé Velha. Aí se mantiveram, a deslumbrar os fiéis com o seu brilho, até que as obras de restauro, levadas a efeito de 1893 a 1902, com critérios hoje discutíveis, os retiraram.
…. A construção do retábulo revelou-se de tal modo dispendiosa que o bispo, por carta, de 9 de Novembro de 1499, instituiu uma confraria destinada a obter esmolas para esta obra. A fábrica da igreja catedral, não tinha, como afirma, rendas suficientes e a contribuição que, conjuntamente com o Cabido, havia dado, não era suficiente.
Esta carta determina a concessão de «privillegios, perdões e indulgencias» a todos aqueles que entrassem para a confraria.
…. Para o retábulo-mor da Sé Velha, optou D. Jorge de Almeida pelo gótico flamejante que a época considerava «moderno», por oposição ao novo estilo que se estava a introduzir que se denominava de «antigo» ou «romano».
…. [ao artista flamengo] Jean d'Ypres, vai ficar a dever-se o sumptuoso retábulo-mor da Sé Velha de Coimbra, hoje único entre nós, cuja data de início se desconhece, mas que deve ter sido concluído entre 1502 e 1508.
Os retábulos colocados em locais interditos aos fiéis e tornados invisíveis pela penumbra dos altares não se destinavam a ser contemplados, mas como afirma Germain Bazin «a constituirem como que uma oração permanente, fixa em imagens de que os fiéis só percebiam, ao longe, o brilho vago dos dourados e das cores».
Interior da Sé Velha de Coimbra. Imagem acedida em https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9_Velha_de_Coimbra
Para a Sé Velha de Coimbra foi executado um retábulo do mesmo tipo dos da Europa do Norte.
Retábulo-Mor da Sé Velha de Coimbra. Op. cit.
Macedo, F. P. O retábulo-mor da Sé Velha de Coimbra In: Actas do IV Simpósio Luso-Espanhol de História da Arte - Portugal e Espanha entre a Europa e Além-Mar. 1988. Coimbra, Universidade de Coimbra.
O subúrbio sofreu considerável destruição em 1373, quando as tropas de Henrique II de Castela atacaram a cidade, no decurso das guerras que o rei castelhano sustentou contra D. Fernando. Os castelhanos não entraram na almedina (onde se encontrava D. Leonor Teles, que então deu à luz sua filha, D. Beatriz), mas roubaram e puseram fogo a casas no subúrbio.
…. O ataque castelhano levou D. Fernando a reforçar as muralhas da cidade e a construir uma barbacã. A Judiaria, que ficava fora das muralhas, mas muito perto delas, foi parcialmente abandonada e o rei reinstalou os Judeus numa «rua nova» que saía da rua Direita e ainda hoje conserva o nome.
Reconstituição do castelo de Coimbra. Op. cit., 170
O Infante D. Pedro recebeu de seu pai o ducado de Coimbra em 1415. Através da sua correspondência sabemos que se preocupou com obras em pontes e calçadas da região. Na cidade, talvez o projeto mais relevante do seu tempo tenha sido o de reforçar o abastecimento de água. A obra, todavia, não se concretizou devido à oposição do mosteiro de Santa Cruz.
…. Em 1443, D. Pedro instituiu em Coimbra um «Estudo Geral de todas as sciencias», mas esta nova Universidade foi um projeto gorado.
No tempo de D. Manuel (1495-1521) foram muitas as obras feitas na cidade por iniciativa régia. Reconstruiu-se a ponte, alteando-a. Renovaram-se os Paços da Alcáçova e o mosteiro de Santa Cruz. Quer nos Paços, quer em Santa Cruz, as obras prosseguiram no reinado de D. João III.
Reconstituição hipotética do rossio da Portagem no séc. XVI. Op. cit., pg. 31
Ainda no tempo de D. Manuel construíram-se, na Praça Velha, o Hospital Real e os açougues.
No mesmo reinado, mas pelo bispo D. Jorge de Almeida, fizeram-se obras na Sé e no Paço Episcopal. Foi sob a égide deste bispo, na década de 1520, que se ergueu a famosa Porta Especiosa da Sé.
Sé Velha de Coimbra, Porta Especiosa. Acervo RA
A catedral foi forrada de azulejo hispano-árabes (dos quais hoje pouco resta) e enriquecida com o famoso retábulo flamengo da capela-mor.
Sé Velha de Coimbra, retábulo da capela-mor. Acervo RA
Vários particulares ergueram grandes moradias: o Paço de Sobre-Ribas, a casa do Conde de Cantanhede, a dos Alpoins e a dos Cunhas de Pombeiro. Portas e janelas manuelinas visíveis em muitas casas da cidade provam que foi grande a construção ou reconstrução de prédios particulares no tempo de D. Manuel.
…. Em 1537, D. João III transferiu a Universidade de Lisboa para Coimbra.
…. Pensava o rei na construção de um edifício novo para os estudos universitários.
…. Numa carta dirigida pela Universidade a D. João III, datada de 9 de Maio de 1537, lê-se que «ja nas cassas de dom Graçia dAlmeida Rector saõ feitas cadeiras e bancos em ordenãça em que cada hu dos lentes tem lidas suas prymeiras lições».
Como seria Coimbra em 1537?
A população da cidade talvez andasse entre 5000 e 5500 almas, vivendo intramuros pouco mais de um terço.
Para podermos imaginar a cidade de forma correta ou completa faltam-nos plantas, vistas panorâmicas, documentos escritos.
Plantas de edifícios e de arruamentos podem jazer, inéditas, nos arquivos. Recordaremos
… A vista panorâmica de Hoefnagel, desenhada em 1566 ou 1567, é de três décadas posterior à transferência da Universidade. Ainda assim, e apesar de ser algo fantasista a representação da cidade, não podemos ignorá-la.
Alarcão, J. Coimbra. O ressurgimento da cidade em 1537. Desenhos de José Luís Madeira. 2022. Coimbra. Imprensa da Universidade.
….Fora da muralha, na área da rua do Corpo de Deus, ficava a Judiaria. Junto dela tinha-se aberto, no tempo de D. Afonso Henriques, a Porta Nova.
Finalmente, por uma cumeada, a muralha seguia até reencontrar o castelo.
Na parte baixa, fora da muralha e até ao rio, ficava o arrabalde ou subúrbio, onde se erguiam, no tempo de D. Afonso III, as igrejas de S. Bartolomeu e de Santiago, e os mosteiros de Santa Cruz, Santa Justa e S. Domingos. O arrabalde não ultrapassaria, nessa época, senão ligeiramente, uma linha de água conhecida pelo nome de «runa». Ia desaguar no Mondego, e na foz ficava um porto fluvial que ainda aparece representado nas plantas da cidade do séc. XIX, com o nome de porto dos Oleiros. Os conventos de São Domingos e de Santa Justa ficavam para além da «runa». Junto de Santa Justa haveria já no séc. XII um núcleo de casas.
…. O povoamento do arrabalde foi-se adensando ao longo dos séculos XIII e XIV.
Nestes séculos foram várias as medidas régias para contrariar o despovoamento da almedina, mas, aparentemente, sem grande sucesso.
Em 10 de Fevereiro de 1269, D. Afonso III isentou de hoste e anúduva os que quisessem vir morar dentro de muros e tabelou as aposentadorias. Procurava o rei evitar que fidalgos e clérigos, vindos de fora, se aposentassem abusivamente nas moradas de quem vivia m almedina sem pagarem o alojamento e a alimentação (ou sem pagarem o justo preço).
Poucos dias antes, em 25 de Janeiro, o rei havia obtido do alcaide Vasco Afonso e dos alvazis da cidade, Domingos Peres e Rui Viegas, autorização para que se instalassem as feiras, açougues, fangas e alfândegas na almedina. Isso seria fator de dinamização da área intramuros, mas facilitaria também a cobrança de taxas e impostos.
….Pode ter havido protestos da população local ou dos mercadores que vinham à cidade, porque em 7 de Maio de 1273 D. Afonso III, dirigindo-se ao alcaide e alvazis, mandou que a feira semanal se fizesse «onde vos aprouver». Provavelmente, havia na cidade vários lugares onde se faziam os mercados de levante semanais. Terá sido contra esta imposição de um lugar único que a população se terá insurgido. Pretenderia manter a pluralidade dos mercados. Ignoramos se um deles já se realizava no espaço entre as igrejas de S. Tiago e de S. Bartolomeu (atual Praça Velha ou do Comércio).
D. Dinis, que residiu demoradamente em Coimbra, transferiu para aqui a Universidade que havia fundado em Lisboa e instalou-a junto dos Paços da Alcáçova. Fez também obras nos Paços.
Paços de Coimbra após as obras do séc. XVI. Planta ao nível dos telhados. Op. cit., pg. 240
Mosteiro de Santa Clara, com o paço e hospício isabelinos. Adaptação de desenho de António Vasconcelos. Op. cit., pg. 23
Reconstituição planimétrica da cerca muçulmana do alcácer … ainda … o que ter existido nos sécs. XI e XII e a área construída por D. Dinis. Op. cit., pg. 235.
D. Afonso IV, enquanto Infante e herdeiro, teve em «Coimbra sua molher assento de sua caza». Já rei, escreveu, em 1338, que queria «fazer morada gram parte do ano na cidade de Coimbra ... foi acordado per todos … de nom star mays o dicto studo que na dicta cidade de Lisboa».
A decisão de transferir a Universidade de Coimbra para Lisboa foi revertida poucos anos depois: em 1354, D. Afonso IV voltou a instalá-la em Coimbra.
Em 1358, D. Pedro confirmou aos moradores da almedina os privilégios que por determinações régias tinham desde os tempos de D. Sancho II e mandou que os mercadores que viessem de fora fossem vender ao bairro escolar. Este bairro, cuja localização exata desconhecemos, foi coutado por D. Pedro. O rei definiu também os poderes da justiça civil municipal e da justiça universitária relativamente aos estudantes.
A Universidade manteve-se em Coimbra até ao tempo de D. Fernando, que a deslocou de novo para Lisboa em 1377. Talvez o mal-estar que haveria na cidade devido aos privilégios dos universitários e às tropelias dos estudantes tenha sido o motivo da transferência
O Rei Formoso concedeu isenções e privilégios aos que moravam na almedina e em 1377 instituiu uma feira franca que devia realizar-se, de 15 de Setembro a 15 de Outubro, «dentro na cerca da dicta cidade no cur[r]al dos nossos paaços e arredor deles se dentro nom couberem».
…. Do que temos dito transparece, por um lado, a preocupação dos reis quanto ao despovoamento da área intramuros – despovoamento que pretendiam contrariar – mas, ao mesmo tempo, a inelutável tendência para a fixação de uma parte substancial da população no arrabalde ou subúrbio – e a pressão que os moradores da parte baixa da cidade exerciam não ficarem excluídos ou menosprezados. No subúrbio iam-se estabelecendo cada vez mais, os ofícios mecânicos e o comércio. As ruas iam tomando nomes segundo as profissões: dos Tanoeiros, dos Caldeireiros, dos Pintadores, dos Peliteiros, da Louça ou dos Oleiros, da Moeda...
Não devemos, porém, contrapor o arrabalde à almedina como se nesta não houvesse artesãos e comerciantes. O nome de rua da Ferraria dado no séc. XIV à atual de Fernandes Tomás, ou da Çapataria à área do Pátio do Castilho, é prova de que na almedina também havia artesanato e comércio; e mais: que aqui havia igualmente algum arruamento de mesteres.
Alarcão, J. Coimbra. O ressurgimento da cidade em 1537. Desenhos de José Luís Madeira. 2022. Coimbra. Imprensa da Universidade.
O Professor Doutor Jorge de Alarcão publicou, em 2022, o livro O ressurgimento da cidade em 1537. Desenhos de José Luís Madeira.
Op. cit., capa
Trata-se de um trabalho de síntese dos estudos realizados sobre este tema, onde é apresentada a sua visão da evolução da cidade de Coimbra.
O livro é profusamente ilustrado quer com fotografias, quer com desenhos muito elucidativos e bem conseguidos. Acresce que se trata de uma obra de grande qualidade estética que se encontra dividida por 10 capítulos que abarcam não só o espaço construído adentro da muralha, bem como as áreas do antigo arrabalde.
Se vamos tentar uma reconstituição de Coimbra tal como seria em 1537, quando D. João III transferiu para aqui a Universidade, parece-nos necessária uma história, posto que muito breve, de tempos anteriores, desde a década de 1130, isto é, desde o tempo em que D. Afonso Henriques fez da cidade a principal do reino. Será resumido e imperfeito o que diremos, ignorando acontecimentos memorandos, mas tentando dar rapidamente conta de como se foi organizando o espaço urbano, do séc. XII ao XVI. Se o nosso foco é a cidade de 1537, o que nessa data existia tinha um passado, mais longinco ou mais recente. Por mais recente entendemos o tempo de D. Manuel, em cujo reinado se fizeram notáveis obras.
A cidade de Coimbra teve uma época áurea desde essa década de 1130 até à de 1260, isto é, do reinado de D. Afonso Henriques ao de D. Afonso III.
Se pensarmos que nesse período de quase 150 anos se construíram todas as igrejas românicas da cidade (Sé, S. Pedro, S. João, S. Salvador, S. Cristóvão, S. Tiago, S. Bartolomeu), bem como os mosteiros de Santa Cruz, Santa Justa, Sant' Ana ou Celas da Ponte, S. Domingos e S. Francisco, teremos ideia de quão nobilitado se encontrava o burgo onde os primeiros reis residiram demoradamente. Ausentavam-se muito, é certo, porque a administração do território exigia itinerância e a guerra contra a moirama reclamava saídas, mas sempre os reis regressavam a Coimbra – e os Paços da Alcáçova foram sua principal residência.
Em 1270, D. Afonso III fixou-se em Lisboa e daí pouco saiu até 1279, ano da sua morte.
Nesta última data, já a almedina, isto é, a área intramuros, se ia despovoando, enquanto o arrabalde ou subúrbio, entre a muralha e o rio, crescia e se adensava.
São poucos os vestígios que hoje restam da muralha. Pode facilmente, porém, reconstituir-se-lhe o traçado.
Planta da cidade medieval nos meados do séc. XIII, com representação da muralha, dos principais arruamentos, das igrejas e dos mosteiros, da alcáçova, do paço episcopal e do castelo. Op. cit., pg. 12
Uma das portas principais, a do Sol, ficava junto do castelo, onde D. Afonso Henriques havia edificado a torre de menagem, e D. Sancho I construído, em 1198, uma torre pentagonal.
Da porta do Sol descia a muralha até à de Belcouce, ao fundo da atual couraça de Lisboa. Nesse percurso ficava a porta da Traição ou de Genicoca. Abaixo desta, uma couraça (obra também, provavelmente, de D. Sancho I) arrancava da muralha direita ao rio e terminava numa porta que o desenho de Hoefnagel ainda representa. Quando, na década de 1980, se fizeram obras de saneamento na avenida Navarro, reconheceram-se vestígios dessa porta perto do restaurante D. Pedro (no número 58 da avenida).Gravura publicada em George BRAUN, «Civitatis orbis terrarum», vol. V, Colónia, 1598, a partir de desenho de Hoefnagel
Junto da porta de Belcouce ergueu D. Sancho I, em 1211, uma segunda torre pentagonal que ainda hoje se conserva.
Daqui, a muralha seguia à torre de Almedina e subia depois no sentido da rua do Corpo de Deus. No percurso entre a torre de D. Sancho e a de Almedina ainda se reconhecem hoje alguns torreões. A norte da torre de Almedina encontram-se duas torres: uma incorporada no paço de Sobre-Ribas e outra conhecida como torre d’Anto.
Alarcão, J. Coimbra. O ressurgimento da cidade em 1537. Desenhos de José Luís Madeira. 2022. Coimbra. Imprensa da Universidade.
O tema da “Mantilha Coimbrã”, já foi tratado no blogue “A’Cerca de Coimbra” em 21 e 23 de junho de 2022. Na altura, respigamos um artigo publicado no número 7 da Munda, revista do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro [GAAC], assinado pelo Professor Doutor Nelson Correia Borges.
Posteriormente, aquele conceituado Investigador, publicou no Boletim Informativo da Associação de Folclore e Etnografia da Região do Mondego um texto mais pormenorizado que intitulou “A Mantilha Portuguesa. Glória e declínio de uma peça do trajar das nossas Avós”. Dele extraímos as informações que ora se divulgam.
Como é sabido, não existe em Portugal um trajo nacional, antes, pelo contrário, uma grande variedade devido à diversificação e características próprias das múltiplas regiões e sub-regiões etnográficas. No entanto, ao longo dos tempos, houve algumas formas de trajar e certas peças de vestuário que tiveram implantação praticamente em todo o país. Estão neste caso os resguardos exteriores do corpo, em que podemos incluir o gabão e a mantilha.
A mantilha é, sem dúvida a peça mais interessante e também a mais bem documentada, apresentando-se com inúmeras variantes no que toca à parte que envolvia a cabeça. Referimo-nos obviamente, à que as nossas avós usaram desde tempos ancestrais até meados do século XIX e não à mantilha de rendas de uso mais recente.
…A mantilha de rendas, geralmente de cor preta, de origem espanhola, foi introduzida em Portugal depois de 1900. divulgada de terra em terra por mão dos vendedores ambulantes galegos. Utilizou-se para cobrir a cabeça da mulher quando ia à igreja, até aos tempos do Concílio Vaticano 11 (1962-1965). Finda a sua utilidade, caiu em desuso. As mulheres das classes populares, porém, sempre preferiram usar para o efeito o lenço de seda ou o cachené.
… À velha mantilha feminina surgem as primeiras referências em finais do século XIV e um século depois já ela podia ser incluída entre as muitas “coisas de folgar e gentilezas”, reunidas por Garcia de Resende no seu «Cancioneiro Geral».
… No século XVI o uso da mantilha era, sem dúvida, generalizado e, como peça estimada, deixada em testamento. Encontrámos-lhe o rasto, ocasionalmente, em dois documentos tabeliónicos de 1577, da região de Coimbra, que a referem a par com outros elementos de vestuário. Os séculos XVIl e XVIIl fizeram da mantilha uma peça imprescindível à indumentária barroca, introduzindo-lhe variantes no formato da parte que resguarda a cabeça. adaptada aos elaborados toucados então em moda.
A mantilha era uma espécie de manto ou capa, com alguma roda, que descia até abaixo do joelho, ou mesmo até ao tornozelo. Em cima, abrigando a cabeça, ficava a coca, espécie de arco, amado em papelão e barbas de baleia, terminando ou não em bico. Na sua confeção utilizavam-se tecidos de diversas texturas e materiais: a baeta, o durante, o camelão, o lapim, o "pano fino", ou mesmo tafetá de seda. A cor preferida era o preto, solene, mas havia-as também roxas e cor de pinhão, como a mencionada no «Cancioneiro Geral». Normalmente era debruada com uma tarja de veludo, liso ou lavrado, da mesma cor do tecido, e não tinha colchetes nem botões: fechavam-na à frente com a mão.
Embuçada na mantilha, que lhe podia esconder todo o corpo e mesmo grande parte da face, a mulher tinha a possibilidade de sair tranquilamente à rua sem receio de ser reconhecida. As portuguesas amantilhadas constituíam, por certo, uma nota de pitoresco nas ruas das cidades, captando a admiração dos estrangeiros que passavam pelo nosso país. É o caso de dois embaixadores venezianos, vindos a Lisboa em 1580, que salientam no trajar feminino " o manto grande de lã ou de seda, segundo a qualidade da pessoa. Com ele cobrem o rosto e o corpo inteiro, e vão aonde querem, tão disfarçadas que nem os próprios maridos as conhecem: vantagem esta que lhes dá maior liberdade do que convém a mulheres bem-nascidas e bem morigeradas".
Esta circunstância não podia deixar de ser refreada, tanto mais que os abusos acabariam sempre por surgir. Assim, e em 1644 foi decretado que nenhuma mulher andasse embuçada nas ruas de Lisboa, com graves penas, mas esta resolução não chegou a ser extensiva ao resto do reino onde amantilha continuou q ser usada com honra de proveito da mulher portuguesa.
… “Este adorno está hoje completamente fora de moda, e apenas fazem dele uso algumas mulheres antigas e nobres, ou as beatas de algumas terras da província”. “Eduardo Faria, porém em 1857, afirma que a mantilha era particularmente usada em Coimbra” e não restam dúvidas de que assim acontecia.
Cidade de cunho predominantemente eclesiástico, na sua instituição universitária, onde os colégios monásticos e os conventos se topavam a cada esquina, não admira que a mantilha fosse um correspondente modo de trajar feminino algo freirático. A mulher de Coimbra introduziu-lhe uma coca em bico que faz lembrar certas toucas da Renascença, ampliadas.
Conhecemo-la de gravuras e da descrição de alguns detratores. A representação mais antiga é uma belíssima gravura a "pointillé", incluída na obra de Henry L'Evêque. (The Costume of Portugal, Londres, 1812.), com a legenda que está na imagem,
Op. cit., pg 12
Nela se recorta uma esbelta figura feminina sobre paisagem da cidade, onde se reconhece a Sé Nova e o Mondego. Envolve-se na mantilha com graciosidade, deixando a descoberto parte da "camisa" e da saia preta. Calça sapato de cetim, meias finas e usa um colar de duas voltas. Em segundo plano segue, ao lado do homem, outra mulher também de mantilha. Parece-nos, todavia, que esta gravura não representa com fidelidade a parte envolvente da cabeça – a coca -, a qual. segundo outros testemunhos era de maior dimensão, e a forma, ainda que não se afastando das suas linhas gerais, aparece aqui mais comedida.
Assim a viu, por volta de1834, o oficial do exército britânico Carlos Van Zeller com a sua coca muito saliente, terminando num bico que, pelo que afirma, encurvava quase até ao nível do queixo. Não se poupa ao comentário depreciativo comum a quantos, nesta época,se referem a esta peça de vestuário.
… Van Zeller acompanhou as notas manuscritas de alguns esboços que se revelam preciosos para melhor conhecer esta parte da mantilha coimbrã.
Com efeito o que verdadeiramente aparta e define a mantilha de Coimbra é a coca, só encontrando rivais nas do Porto, Viseu e Braga, que não lhe ficam atrás na singularidade.
Op. cit., pg. 15
Outra representação da mantilha coimbrã é-nos dada pela muito divulgada água-tinta de George Vivian da obra Scenery of Porfugal & Spain, editada em Londres, em 1839.
Op. cit., pg. 11
Esta bela paisagem é um manancial de informações sobre o trajo popular em Coimbra, na época, já que junto à fonte de Santana se agrupam diversas figuras citadinas que vão desde os estudantes, à esquerda; às senhoras de mantilha, à direita. Ali as vemos conversando, uma de frente, outra de costas.
O desenho é em tudo coincidente com a descrição de Borges de Figueiredo. …. Creio que ainda nalgumas partes do nosso Portugal se veem as clássicas mantilhas.
Op. cit., pg. 26.
Mas a mantilha de Coimbra era muito diferente das outras, pelo menos não me consta que em outras partes se usassem do feito daquelas, Compunha-se de uma tira e papelão grossa arqueada e convenientemente coberta de fazenda preta; colocada sobre a cabeça e segura sob o queixo por fitas, caía o pano preto exterior pelas costas e peito a modo de mantéu: até aqui nada de extraordinário; mas dos diversos pontos do papelão que cobria a cabeça partiam algumas barbas de baleia que a distância de dois palmos da testa se uniam formando vértice, tudo isto coberto de fazenda igual à restante.
…. Existe ainda um outro desenho, certamente de autor nacional, desconhecido, e que deverá datar do segundo quartel do século passado.
Op. cit., pg. 14
O traço é desagradável, mas elucidativo, confirmando os testemunhos na anteriores. Nele se vê uma cena matutina. O garotito e a manteigueira descalços, contrastam com a senhora de mantilha que se dirige, possivelmente para a igreja.
A mantilha de Coimbra, reconstituição. Imagem acedida en https://www.facebook.com/grupofolcloricodecoimbra/photos/pb.100047535110552.-2207520000./1279911812121393/?type=3
Acrescentamos uma imagem da reconstituição deste trajo, feita segundo a orientação do Professor Doutor Nelson Correia, que é utlizada nas apresentações do Grupo Folclórico de Coimbra.
Borges, N.C. A Mantilha Portuguesa. Glória e declínio de uma peça do trajar das nossas Avós. Separata do Boletim Informativo da Associação de Folclore e Etnografia da Região do Mondego. Páginas 7 a 26. Sem data. Coimbra, AFERM.
É já na próxima 6.ª feira, dia 26 de maio, pelas 18:00, que irá decorrer no Arquivo da Universidade de Coimbra, na Sala D. João III, a penúltima das Conversas Abertas desta série, como sempre com entrada livre e aberta a participação de todos.
A palestrante será a Arquiteta Isabel Anjinho, que vem realizando uma notável obra da investigação sobre o passado da nossa Cidade e que, desta vez, falará sobre o CASTELO DE COIMBRA.
Além da exposição oral, as imagens em 3D permitirão conhecer o que era o castelo e como o mesmo se inseria na malha urbana de então.
Apresentamos a folha de sala que estará à disposição de todos os participantes.
Folha de sala
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Rodrigues Costa
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